A manutenção da atividade empresarial sobre a perspectiva da função social: uma análise do instituto da recuperação judicial à luz do decreto-lei nº 7.661 de 1945, lei nº 11.101/05 e proposições do projeto de lei nº 10.220/2018

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11/08/2019 às 17:54
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Estudo sobre o instituto da recuperação judicial à luz do decreto-lei nº 7.661 de 1945, lei nº 11.101/05 e proposições do projeto de lei nº 10.220/2018.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo estudar o procedimento de recuperação judicial, através de método histórico, comparado e dialético dos regramentos legais, a doutrina e o entendimento mais atual dos juízes e tribunais brasileiros, assim como as proposições do Projeto de Lei nº 10.220/2018, que versa sobre propostas de reforma à Lei nº 11.101/2005 e contém uma disciplina específica para a regulamentação da recuperação de empresas. Primeiramente, será explorado o conceito e instituto da concordata no Decreto-Lei nº 7.661 de 1945, suas classificações e requisitos. Em seguida, tratar-se-á do instituto da recuperação judicial à luz da Lei nº 11.101/05, expondo-se os principais efeitos e mudanças com seu advento. Ato contínuo, abordar-se-ão as principais proposições empreendidas no Projeto de Lei nº 10.220/2018, que prevê atualização na lei de falência e recuperação judicial brasileira.  Por fim, proceder-se-á à análise crítica dos dispositivos, em especial aos princípios regentes que norteiam o instituto, notadamente considerando a manutenção da atividade empresarial como premissa básica.

Palavras-chave: Concordata; Recuperação Judicial; Função Social da Empresa; Projeto de Lei nº 10.220/2018

 

ABSTRACT:The purpose of this paper is to study the judicial recovery procedure, through a historical, comparative and dialectical method of legal regulations, the most current doctrine and understanding of Brazilian judges and courts, as well as the proposals of Law 10.220/2018, which deals with reform proposals to Law 11.101/2005 and contains a specific discipline for the regulation of business recovery. First, the concept and institute of concordata will be explored in Decree-Law No. 7.661 of 1945, its classifications and requirements. Next, it will be the institute of the judicial recovery in light of the Law nº 11.101/05, exposing itself the main effects and changes with its advent. The main proposals made in Law 10.220/2018, which provides for an update on the bankruptcy law and Brazilian judicial recovery, will be discussed below. Finally, a critical analysis of the devices will be carried out, in particular the regulative principles guiding the institute, especially considering the maintenance of business activity as a basic premise.

Keywords: Concordata; Judicial recovery; Social Function of the Company; Draft Law 10.220/2018


1.INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, muitas mudanças ocorreram no ciclo evolutivo do tema Direito Falimentar, sendo a lei de falências em vigor (Lei nº 11.101/05) mais um grande passo. No Brasil, desde 1945 estávamos sob o manto da Lei de Falência e Concordata, que disciplinava o processo de extinção da empresa que se encontrava em dificuldade econômica para adimplir suas obrigações perante os credores. Entretanto, observou-se que o decreto-lei 7.661 de 1945 se tornou ultrapassado na medida que não conseguia mais atender seus objetivos iniciais.

A promulgação da Lei nº 11.101/05 trouxe, em sua base, a consagração da empresa em seu contexto social, em face do interesse comum. A nova lei trouxe a novidade do instituto da recuperação judicial, a qual visa a superação da crise financeira-econômica do devedor, estimulando a atividade econômica, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores (Art. 47 da Lei 11.101/05), o qual será objeto do estudo de análise.

Neste trabalho, busca-se explorar a conexão entre a antiga legislação falimentar e a lei vigente, trazendo aspectos positivos e negativos desta, considerando, ainda, os entendimentos dos juízes e tribunais pátrios. Inicia-se através de breve histórico dos institutos anteriores, sua forma de funcionamento e classificações principais, migrando ao atual sistema vigente e aspectos polêmicos e introduzidos pela Lei nº 11.101/05, a exemplo do “Cram Down”.

Desse modo, conjecturando os fundamentos dos instrumentos, a análise recairá sobre o Projeto de Lei nº 10.220/2018, proposta de reforma legislativa bastante extensa, que interfere em dezenas de dispositivos de lei atual falimentar, de forma a melhor relacionar e refletir algumas das mais importantes alterações contidas em referido projeto de lei.

 


2.BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DO INSTITUTO DA CONCORDATA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO

O ano de 1945 foi marcado, no âmbito do Direito Comercial, pela edição do Decreto n. 7.661, projetado durante a época predominante das empresas individuais e familiares em que o ordenamento ofertava aos empresários em crise as opções da falência ou da concordata.

Quanto ao primeiro instituto, temos que a falência se definia como o instrumento judicial apto para lidar com as empresas insolventes, ao passo que a concordata era tida como instrumento para lidar com empresas em dificuldades transitórias de crise financeira, viáveis à recuperação.

Nesse contexto, destaca Amador Paes de Almeida (2013, 27ªed, cap.XXIX) que:

“(...) a falência tinha, nos primórdios, manifesto caráter punitivo, cercando o falido de infâmia e expondo-o à degradação pública. Daí o velho refrão – Falliti sunt fraudatores (Os falidos são fraudadores). (...) Ainda hoje, em que a falência já não mais se ressente de caráter repressivo, constituindo-se, antes de tudo, num processo de execução coletiva, com nítido objetivo patrimonial, observam-se consequências morais que se refletem fatalmente no conceito do devedor. Vista a falência como um delito, ou apenas como um processo de execução patrimonial, estabelecida a distinção entre bons e maus pagadores, procurou-se evitar, para os primeiros, as desastrosas consequências da quebra, possibilitando-lhes composição com os credores, por meio da chamada moratória – a prescriptio moratoria –, dilação concedida ao devedor para solver suas obrigações, sucedâneo do que viria a ser posteriormente a concordata.”

Nesse contexto, a concordata seria um instituto que objetivava regularizar a situação econômica do devedor comerciante, evitando (concordata preventiva), ou suspendendo (concordata suspensiva), a falência. O instrumento permitia a continuidade das atividades empresariais, ainda que em caráter precário, de forma a afastar ou suspender a medida extrema da falência, desde que atendidos os requisitos legais. Outrossim, vê-se que as obrigações do devedor eram abrandadas, a fim de que se tornassem passíveis de cumprimento.

A natureza jurídica da concordata, por sua vez, não deve ser considerada como contrato, tampouco negócio jurídico entre comerciante e credor, mas sim uma pretensão jurídica. Explique-se: é dado o direito de pleitear ao devedor comerciante, através da prestação jurisdicional do Estado (concretizando um remédio legal e jurídico) uma forma de reorganização e a restruturação econômica e financeira.

Dentre as principais críticas ao instituto anterior, citamos a visão de que a concordata, no caso concreto, atuava como égide para postergar a Falência e enriquecer devedores perspicazes e inescrupulosos, posto que, no momento de concessão do benefício, não havia análise econômica, financeira ou administrativa que verificasse a viabilidade de continuação das atividades do negócio. Não havia a preocupação quanto aos motivos de insolvência, ou se o plano de soerguimento da empresa era viável, o que dava pouca chance de recuperação e pagamento das dívidas.

No Brasil, a concordata foi extinta pela Lei nº 11.101, promulgada em 2005 e substituída pela recuperação judicial ou extrajudicial, a qual será objeto de análise nos tópicos a seguir. Passamos, então, a decodificação do procedimento da concordata à luz do Decreto-Lei nº 7.661/45.

2.1 PROCEDIMENTO DA CONCORDATA CONFORME DECRETO-LEI Nº 7.661 DE 1945

 

Conforme dito alhures, a concordata difere visceralmente da falência, tendo em vista que não submete o devedor às restrições em sua liberdade, nem lhe tira a administração de seus bens. Com a concessão da concordata, o empresário comercial continua praticando seus negócios, dirigindo a empresa sob a fiscalização de um comissário nomeado pelo juiz.

Para que ocorresse a obtenção da concordata era necessário o preenchimento de alguns requisitos, tais como: a) regularidade no exercício do comércio (ou seja, sociedade empresária, para ter direito à concordata, deveria ter os seus atos constitutivos registrados na Junta Comercial e os seus livros devidamente autenticados); b) não ter título vencido ou a falência requerida há mais de 30 dias; c) não ter impetrado concordata nos 5 anos anteriores; d) não possuir dívidas com Fisco e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Satisfeitos os requisitos, o devedor tinha acesso ao favor legal, com proposta de recuperação limitada a escolha de formas de pagamento e prazos.

Com efeito, destacam-se, no direito falimentar normalizado pelo Decreto-lei n.° 7.661/45, duas espécies de concordata: a suspensiva, com condão de suspender a falência, e a preventiva, cuja função seria de prevenir o estado falimentar.

 

2.2 DA MORATÓRIA E DAS ESPÉCIES DE CONCORDATA

 

Iniciamos a análise desta espécie não por um acaso: a primeira concordata a ser introduzida no direito brasileiro foi a de caráter suspensivo, cuja concessão ocorria no decorrer do próprio processo falimentar. A sua finalidade era evitar a liquidação da empresa e devolver ao falido a administração de determinada atividade empresarial, restituindo, assim, a livre administração de seus bens.

Nesse diapasão, devemos dar destaque, de forma paralela à concordata suspensiva, a moratória, uma espécie de dilação de prazo para solução de obrigações decorrentes de acidentes de força maior ou de cunho extraordinário e imprevisível. Repise-se que, até então, não se falava em o que viria ser concordata preventiva.

O Decreto-Lei nº 7.661 de 1945, objeto central de estudo em conjunto com a Lei nº 11.101 e o PL nº 10.220/2018, foi responsável pelo fim da exigência de aprovação prévia dos credores, modulando a concordata feição de favor judicial concedido pelo juiz, e não pelos credores, conforme ocorria. A concordata preventiva veio a ser injetada no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 917, de 1890, possuindo como principais características o requerimento prévio como forma de se evitar a declaração da falência.

2.3 A (IM)POSSIBILIDADE DA CONCESSÃO DA CONCORDATA SUSPENSIVA NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 11.101/05 À LUZ DO RECURSO ESPECIAL Nº 97125/RJ

 

Com o advento da Nova Lei de Falências, questões interessantes foram suscitadas perante o Superior Tribunal de Justiça, notadamente sobre dispositivos que tratam de direito intertemporal.

 

A redação do art. 192 da Lei 11.101/05 dispõe que:

 

Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Dec. Lei n 7.661, de 21 de junho de 1945.

 

Ato contínuo, em seu parágrafo primeiro, temos:

 

§ 1º: Fica vedada a concessão de concordata suspensiva nos processos de falência em curso, podendo ser promovida a alienação dos bens da massa falida, assim que concluída a arrecadação, independentemente da formação de quadro-geral de credores e da conclusão do inquérito judicial.

 

Nota-se, assim, um possível conflito aparente de normas sediado no referido artigo. Enquanto o caput induz o leitor que os processos de falência ou concordata ajuizados anteriormente ao início da vigência da Lei não sofrerão seus efeitos, mas sim do Decreto nº7.661/45, o dispositivo do primeiro parágrafo traz vedação a concessão de concordata suspensiva nos processos de falência em curso. Afinal, a concordata ainda pode ser concedida na vigência da Nova Lei?

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Ora, se os processos em curso continuam a observar o velho estatuto do Decreto nº 7.661/45, é porque falidos e concordatários continuam expostos às exigências e sanções nele previstas e titulares dos benefícios por ele concedidos, de modo que não faria sentido mantê-los expostos às sanções e, ao mesmo tempo, quitar-lhes as benesses. Tal interpretação seria de grande injustiça às empresas, quebrando o princípio da igualdade.

No entanto, a dúvida maior a ser dirimida é que tal interpretação levaria à inconstitucionalidade da Lei. Nesse sentido, a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça[1] parece ser a mais viável e adequada ao caso. Entendeu a Corte, com razão, que o caput refere-se aos processos de falência ou de concordata “ajuizados anteriormente ao início de sua vigência”, já o § 1º dirige-se aos processos de falência “em curso”, ou seja, as falências decretadas antes da Lei nova regem-se integralmente pela lei velha; as falências em curso (não decretadas antes do estatuto novo) não podem resultar em concordata.

A medida adotada e guiada pelo Min. Humberto Gomes de Barros aparenta estar em consonância com as diretrizes e princípios inerentes ao Direito Comercial, notadamente o princípio da preservação das empresas que traz o valor básico da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste (COELHO, Fábio Ulhoa, 2008, p.13).

Não obstante, além da preservação da empresa, inolvidável o escopo do art. 47 da lei 11.101/05, já citado, que dissocia o interesse do sócio do interesse social que prestigia a função social da empresa, a qual beneficia credores, empregados, consumidores, fisco, dentre outros. Desse modo, acertado se mostra o entendimento firmado pelo STJ.

 


3.DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI Nº 11.101/05

 

Revela destacar que a Lei nº 11.101, de 2005, que disciplina e regulamenta a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, não só ab-rogou e substituiu a antiga Lei de Falências (que se encontrava em vigor pelo sexagenário Decreto-Lei nº 7.661 de 1945), promovendo, em verdade, uma extensa reforma na regulação de falência e recuperação judicial brasileira.

Inspirada na legislação americana, pretendeu-se, com a nova lei, adequar o regime falimentar brasileiro às numerosas e profundas alterações que ocorreram nas práticas empresariais no Brasil e no mundo nas últimas seis décadas.Antes da entrada em vigor da Lei nº 11.101, de 2005, o devedor empresário, para recuperar judicialmente o seu empreendimento, valia-se apenas da concordata, em sua forma preventiva ou suspensiva, conforme explicitado no tópico anterior.

A prática das concessões das concordatas demonstrou, no decorrer dos anos, ser ineficiente para recuperação da empresa, incapaz de soerguer devedores em dificuldades pelos motivos outrora expostos, os quais giram precipuamente entorno da concepção da concordata como “favor” a ser concedido pelo juiz, sem análise econômica, financeira ou administrativa que verificasse a viabilidade de continuação das atividades do negócio. Nesse sentido, no intuito de suprimir tais omissões, surge a recuperação judicial e extrajudicial da sociedade empresária ou do empresário que exerça profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, a qual será exposta a seguir.

3.1 DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial é uma permissão legal que concede ao devedor empresário ou sociedade empresária a possibilidade de negociar diretamente com todos os seus credores ou tão somente parte destes, de acordo com suas reais possibilidades, ampliando o seu universo de medidas eficazes e suficientes à satisfação dos créditos negociados, mantendo os direitos dos credores não incluídos no plano, garantindo o controle do poder judiciário e dos credores por instrumentos próprios, com a finalidade de recuperar e preservar a empresa viável com a reorganização.

 A Recuperação Judicial substituiu a antiga concordata, prevista no DL 7.661/45. A concordata era um instituto que pouco ajudava efetivamente na recuperação do devedor em dificuldades, conduzindo quase sempre à falência da empresa. A finalidade primordial da recuperação judicial é a chamada preservação da empresa (função social da empresa), que está ligada a manutenção de empregos, manutenção da fonte produtora, preservação dos interesses dos credores e manutenção do desenvolvimento na região, conforme se extrai do art. 47 da lei:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Quantos aos requisitos e legitimados, a teor do art. 48, poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda requisitos cumulativos de: a) não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; b) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; c) não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial; d) não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes falimentares.

Dentre os meios para recuperação judicial da empresa, com o advento da Lei nº 11.101/05 foram dispostos diversas formas que não são excludentes, tampouco rol taxativo de medidas. Há, em verdade, uma relação de interação, o que tem que ser observado caso a caso, o que pode ocorrer a combinação de uma ou mais modalidades, mas que estejam alinhadas e compatíveis. A título de exemplo, destaca-se: a concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas, alteração do controle societário, aumento de capital social, redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva e a venda parcial dos bens.

Com efeito, estando devidamente instruída, o juiz deferirá o processamento da recuperação. Tal despacho, cuja previsão se encontra no art. 52 da Lei de Falências, chama atenção em dois aspectos relevantes: 1) aqui não se deferiu, ainda, a recuperação propriamente dita, apenas autorizou-se o seu processamento, pois a análise da viabilidade em manter a empresa ativa será feita em outro posterior; 2) há uma ordem de suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações que versem sobre quantia ilíquida, de natureza trabalhista, execuções de natureza fiscal e das ações e execuções movidas por credores que não se sujeitam à recuperação judicial.

 

3.2JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DA MATÉRIA

A jurisprudência, notadamente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a respeito da matéria, assentou que o deferimento do processamento da recuperação judicial não atinge o direito material dos credores, não havendo, pois, o que se falar em exclusão dos débitos, sendo mantidos, por conseguinte, os registros do nome do devedor nos bancos de dados e cadastros dos órgãos de proteção ao crédito, assim como nos tabelionatos de protestos. Senão, vejamos:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.374.259 - MT (2011/0306973-4) RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE: DESTILARIA DE ÁLCOOL LIBRA LTDA - EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL ADVOGADO : EUCLIDES RIBEIRO S JUNIOR E OUTRO(S) RECORRIDO : PIRAN- SOCIEDADE DE FOMENTO MERCANTIL LTDA ADVOGADO : MARCELO ALVES DE OLIVEIRA E OUTRO(S).

DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO DE PROCESSAMENTO. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. STAY PERIOD. SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO, MANTIDO O DIREITO MATERIAL DOS CREDORES. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES E TABELIONATO DE PROTESTOS. POSSIBILIDADE. EN. 54 DA JORNADA DE DIREITO COMERCIAL I DO CJF/STJ. 1. Na recuperação judicial, apresentado o pedido por empresa que busca o soerguimento, estando em ordem a petição inicial - com a documentação exigida pelo art. 51 da Lei n. 11.101/2005 -, o juiz deferirá o processamento do pedido (art. 52), iniciando-se em seguida a fase de formação do quadro de credores, com apresentação e habilitação dos créditos. 2. Uma vez deferido o processamento da recuperação, entre outras providências a serem adotadas pelo magistrado, determina-se a suspensão de todas as ações e execuções, nos termos dos arts. 6º e 52, inciso III, da Lei n. 11.101/2005. 3. A razão de ser da norma que determina a pausa momentânea das ações e execuções - stay period - na recuperação judicial é a de permitir que o devedor em crise consiga negociar, de forma conjunta, com todos os credores (plano de recuperação) e, ao mesmo tempo, preservar o patrimônio do empreendimento, o qual se verá liberto, por um lapso de tempo, de eventuais constrições de bens imprescindíveis à continuidade da atividade empresarial, impedindo o seu fatiamento, além de afastar o risco da falência. 4. Nessa fase processual ainda não se alcança, no plano material, o direito creditório propriamente dito, que ficará indene - havendo apenas a suspensão temporária de sua exigibilidade - até que se ultrapasse o termo legal (§ 4° do art. 6°) ou que se dê posterior decisão do juízo concedendo a recuperação ou decretando a falência (com a rejeição do plano). 5. Como o deferimento do processamento da recuperação judicial não atinge o direito material dos credores, não há falar em exclusão dos débitos, devendo ser mantidos, por conseguinte, os registros do nome do devedor nos bancos de dados e cadastros dos órgãos de proteção ao crédito, assim como nos tabelionatos de protestos. Também foi Documento: 1410753 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 18/06/2015 Página 1 de 16 Superior Tribunal de Justiça essa a conclusão adotada no Enunciado 54 da Jornada de Direito Comercial I do CJF/STJ. 6. Recurso especial não provido.

No que pertine as ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, firmou-se o entendimento de que a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei 11.101/2005.[2] Em igual sentido, se posiciona o Enunciado 43 da I Jornada de Direito Comercial do CJF/STJ[3].

Por fim, considerando a suspensão das ações e execuções por 180 dias, tal como previsto no artigo 6º[4], o STJ tem flexibilizado o prazo para estendê-lo, nos casos em que o atraso do processo não se dê por culpa do devedor. Frise-se que igual entendimento foi exposto no Enunciado 42 da I Jornada de Direito Comercial[5].

Na mesma medida, a Corte assentou o entendimento de que o deferimento do processamento de recuperação judicial não suspende o curso das execuções fiscais, visto que o art. 174 do CTN prevê que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. No entanto, destacou-se que os atos de constrição direcionada ao patrimônio da empresa devem ser submetidos à análise do juízo universal, em homenagem ao princípio da preservação da empresa[6].

 

3.3O PODER DE ATUAÇÃO DO JUIZ NO ÂMBITO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O INSTITUTO DO “CRAM DOWN”

Como vimos acima, o magistrado é quem homologa o plano e concede a recuperação judicial (art. 58 da Lei n.° 11.101/2005). Outrossim, questiona-se: poderia o juiz pode recusar-se a homologar o plano de recuperação judicial alegando que ele não tem viabilidade econômica, mesmo já tendo sido aprovado em assembleia e estando formalmente perfeito? Entendemos que não. Se o plano cumpriu as exigências legais e foi aprovado em assembleia, o juiz deve homologá-lo e conceder a recuperação judicial do devedor, não sendo permitido ao magistrado se imiscuir no aspecto da viabilidade econômica da empresa.

A aprovação do plano pela assembleia representa uma nova relação negocial que é construída entre o devedor e os credores. Se os credores aceitaram a proposta e ela preenche os requisitos legais, não cabe ao juiz indeferir a recuperação judicial. Além disso, de certo, o magistrado não é a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica do plano de recuperação judicial. Isso porque a análise do possível sucesso ou não do plano proposto é não é uma questão jurídica propriamente dita, mas sim econômica e que está inserida na seara negocial da recuperação judicial, o que deve ser tratado entre devedor e credores.

O juiz, na realidade, deve exercer o controle de legalidade do plano de recuperação, analisando se há fraude ou abuso de direito. No entanto, não cabe a ele fazer controle sobre a viabilidade econômica do plano. No mesmo sentido são os enunciados 44 e 46 da I Jornada de Direito Comercial do CJF/STJ[7].

De outro giro, poderia o magistrado conceder a recuperação judicial mesmo tendo o plano sido recusado pela assembleia? A Lei 11.101/05[8] expressamente autoriza, instituto denominado no direito americano como “Craw Down”. No entanto, entendemos que o contrário não é possível, ou seja, o juiz não pode indeferir a recuperação judicial cujo plano foi aprovado pela assembleia, considerando que isso significaria a quebra (falência) da empresa, o que vai de encontro com o objetivo fundamental da Lei n.° 11.101/2005, que é o de que reerguer a sociedade empresária.

Além de tais hipóteses, indaga-se corriqueiramente se seria possível ao Poder Judiciário reconhecer a ineficácia, em relação ao prejudicado, de uma cláusula constante de plano de recuperação judicial aprovado em Assembleia Geral de Credores, ou as deliberações tomadas nessa assembleia não são passíveis de controle judicial.

De certo, a apresentação, pelo devedor, de plano de recuperação, bem como sua aprovação, pelos credores, seja pela falta de oposição, seja pelos votos em assembleia de credores (arts. 56 e 57) consubstanciam atos de manifestação de vontade. Disso decorre que, de fato, não compete ao juízo interferir na vontade soberana dos credores, alterando o conteúdo do plano de recuperação judicial, salvo em hipóteses expressamente autorizadas por lei (v.g. art. 58, §1º).

A obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade, no entanto, não implica impossibilitar ao juízo que promova um controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia. Qualquer negócio jurídico, mesmo no âmbito privado, representa uma manifestação soberana de vontade, mas que somente é válida se, nos termos do art. 104 do CC, provier de agente capaz, mediante a utilização de forma prescrita ou não defesa em lei, e se contiver objeto lícito, possível, determinado ou determinável. Na ausência desses elementos, o negócio jurídico é inválido.

Observe-se, ainda, que a decretação de invalidade de um negócio jurídico em geral não implica interferência, pelo Estado, na livre manifestação de vontade das partes. Implica, em vez disso, controle estatal justamente sobre a liberdade dessa manifestação, ou sobre a licitude de seu conteúdo. Assim, a vontade dos credores, ao aprovarem o plano, deve ser respeitada nos limites da Lei, somente podendo ser controlada judicialmente se não forem atendidos os requisitos de validade dos atos jurídicos em geral.

Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que embora a assembleia de credores seja soberana em suas decisões, as deliberações desse plano estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral, requisitos esses que estão sujeitos a controle judicial[9].

 

3.4DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL

 

Além da recuperação judicial, com introdução da Lei nº 11.101/05, foi facultada ao devedor a possibilidade de propor e negociar com os credores um plano de recuperação extrajudicial, desde que preencha os requisitos definidos em lei, que são os mesmos em relação ao plano de recuperação judicial.

A Lei nº 11.101/2005 traz duas modalidades de recuperação extrajudicial: a do art. 162, voluntária, na qual somente os credores que expressamente aderirem ao plano de recuperação estarão submetidos a ele; e a do art. 163, que prevê a submissão da minoria no caso adesão por três quintos dos créditos de “cada espécie” abrangida pelo plano.

Para que seja homologado o plano extrajudicial, é fundamental que o devedor apresente a sua justificativa e o documento que contenha seus termos e condições, com as assinaturas dos credores que a ele aderiram, bem como deverá juntar: 1) exposição da situação patrimonial do devedor; 2) as demonstrações contábeis relativas ao último exercício social e as levantadas especialmente para instruir o pedido confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente do balanço patrimonial, demonstração de resultados acumulados, demonstração do resultado desde o último exercício social; relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; 3) os documentos que comprovem os poderes dos subscritores para novar ou transigir, relação nominal completa dos credores, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente.

No entanto, uma peculiaridade é a de que o pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial não acarretará suspensão de direitos, ações ou execuções, nem a impossibilidade do pedido de decretação de falência pelos credores não sujeitos ao plano de recuperação extrajudicial. Recebido o pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial previsto, o juiz ordenará a publicação de edital no órgão oficial e em jornal de grande circulação nacional ou das localidades da sede e das filiais do devedor, convocando todos os credores do devedor para apresentação de suas impugnações ao plano de recuperação extrajudicial, tratadas no artigo 164 § 3º da Lei 11.101/2005.

Evidente, assim, que o escopo de uma recuperação de natureza extrajudicial remete a um procedimento simplificado. Contudo, essa simplificação não deveria importar perda de segurança, possibilidade de manipulações e fraudes ou injusto prejuízo aos credores. A facilitação procedimental há de ser balizada com requisitos e consequências mais rigorosos, bem como pela maior transparência e pela definição mais explícita das etapas a serem vencidas no processo, haja vista o menor controle pelo Judiciário e pelos credores.

Ademais, alguns autores tecem críticas a respeito da matéria, a qual seria uma via de solução que não abarca todos os problemas da empresa em crise. Diferentemente da recuperação judicial, esta não engloba créditos de natureza tributária, derivados da legislação trabalhista ou que decorram de relações de trabalho, dívidas como garantia fiduciária de móveis ou imóveis, arrendamento mercantil, compra e venda de imóveis com determinadas características, compra e venda com reserva de domínio e adiantamento de contrato de câmbio, como elenca o artigo 161, § 1º.

Não obstante, em que pese a simplificação do procedimento, a lei eliminou quase todos os mecanismos que, na recuperação judicial, foram desenvolvidos para evitar abusos pelos devedores são mitigados nessa modalidade de recuperação, como: a) divulgação de informações aos credores bastante restrita (especialmente se comparada à recuperação judicial) e insuficiente para permitir objeções ao plano; b) não há um procedimento de habilitação de créditos; c) não é exigida comprovação de regularidade fiscal; d) não há participação de um administrador judicial; e) não é prevista a possibilidade de formação de Comitê de Credores; f) o Ministério Público fica totalmente excluído do procedimento; g) não há o período de observação de dois anos após a homologação do plano; h) não há obrigação de prestar contas por parte do devedor; i) não há qualquer outro tipo de fiscalização ou controle do cumprimento do plano; j) não há previsão de hipótese alguma de afastamento dos administradores da empresa devedora, nem mesmo em casos de má-fé ou de graves violações à lei ou ao direito; k) a rejeição ou o descumprimento do plano não acarretam a falência do devedor; e, por fim, l) o devedor pode reiterar, a cada dois anos, o pedido de recuperação, com nova sujeição da minoria discordante.

Conclui-se, portanto que a recuperação extrajudicial, é simplificação temerária de uma matéria de grande complexidade, que influencia todo o delicado equilíbrio das relações jurídicas privadas no Brasil. Como se tolhendo direitos e prerrogativas dos credores pudesse afastar a real dificuldade de constituir uma sólida opção institucional que, de fato e organizadamente, permita a efetiva solução das situações de dificuldades de empresas sólidas.

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W. A.Lima

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