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Da possibilidade de alienação do usufruto ao proprietário.

Análise do art. 1.393 do novo Código Civil

11/11/2005 às 00:00
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            Uma das mais comentadas inovações previstas para o usufruto no Código Civil de 2002 é a vedação expressa de alienação do mesmo, reconhecido esse direito real de gozo ou fruição como um direito personalíssimo, que não pode ser transmitido a outra pessoa, de modo inter vivos ou mortis causa.

            Interessante, nesse sentido, confrontar a previsão do art. 1.393 do novo Código Civil, com o art. 717 do CC/16, seu correspondente na codificação anterior:

Art. 1.393 do CC/02. Não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso. (nosso o destaque)

Art. 717 do CC/16. O usufruto só se pode transferir, por alienação, ao proprietário da coisa; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso. (nosso o destaque)

            Resumindo as previsões acima, nota-se que a regra sempre foi a da intransmissibilidade do usufruto, exceção feita na codificação anterior para a possibilidade do usufrutuário ceder o domínio útil ao nu-proprietário, de forma gratuita ou onerosa.

            Contudo, nos dois sistemas, seria possível a cessão do exercício do usufruto, a título gratuito ou oneroso. Dessa forma, poderá o usufrutuário locar ou emprestar, em comodato, o bem objeto desse direito real a outrem. Logicamente, sendo por regra inalienável, o usufruto é também impenhorável, somente sendo admissível a constrição desse seu exercício, como é o caso dos frutos dele decorrentes.

            Mas há questão controvertida quanto ao tema: é ainda possível, à luz da novel codificação, que o usufrutuário ceda ao proprietário o domínio útil, os direitos e usar e fruir, de forma gratuita ou onerosa?

            Surge, inicialmente, um primeiro posicionamento, respondendo positivamente essa questão. Ricardo Aronne, respeitável doutrinador gaúcho, é um dos autores que entendem dessa forma, eis que "a partir da vigência deste Código, revogando o art. 717 do anterior, a exceção quanto à disposição do gravame para o proprietário deixa de ter suporte direto. Não obstante, é justificável sua manutenção, pelo princípio da elasticidade (o domínio pode desdobrar-se, porém tende sempre a consolidar-se) e tampouco por haver vedação expressa quanto à renúncia onerosa. Ao contrário, agora é modo expresso, conforme inciso I do art. 1.410". (Código Civil Anotado. Coordenação: Rodrigo da Cunha Pereira. Porto Alegre: Síntese. 1ª Edição, 2004, p. 997).

            Também compartilha desse parecer Sílvio de Salvo Venosa, para quem o direito de usufruto somente pode ser alienado ao nu-proprietário, possibilitando a consolidação da propriedade, nos termos do art. 1.410, inciso VI, do novo Código Civil (Direito Civil. Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 4ª Edição, 2004, p. 471). César Fiúza, professor titular da UFMG, também compreende dessa forma, defendendo a transmissão do domínio útil ao nu-proprietário, o que é compartilhado por Marco Aurélio S. Viana, docente da mesma universidade (Comentários ao Novo Código Civil. Volume XVI. Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 1ª Edição, 2003, p. 633).

            Mas há o entendimento doutrinário em contrário, que para nós deve prevalecer. Vale citar Caio Mário da Silva Pereira, que ressalta o caráter personalíssimo do direito de usufruto. Lembra esse culto autor que do direito romano o princípio usufructum a fructuario cedi non potest veio ao nosso sistema pelas ordenações do reino de Portugal, sendo essa a orientação nos sistemas jurídicos mais adiantados (Instituições de Direito Civil. Volume IV. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 18ª Edição, 2004, p. 298).

            Marco Aurélio Bezerra de Mello também não é favorável à dita alienação ao proprietário. Sustenta o professor fluminense que "O Código revogado falava, a nosso sentir, equivocadamente, em alienação ao nu-proprietário e o atual suprime esta expressão infeliz, mas permite ao usufrutuário que renuncia ao direito, ato jurídico unilateral que acarretará a extinção do usufruto, á luz do que prescreve o art. 1.410, I, do Código Civil" (Novo Código Civil Anotado. V Volume. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 3ª Edição, 2004, p. 278).

            Vejamos os motivos que nos levaram a adotar esse último posicionamento.

            De imediato observa-se que a regra do art. 1.393 do novo Código Civil trata especificamente da impossibilidade de alienação da condição de usufrutuário, a quem quer que seja. Nesse sentido, foi suprimida a possibilidade dessa transmissão ao proprietário por uma razão simples: o legislador entendeu que a mesma não era viável.

            O caminho que chega à conclusão da possibilidade dessa alienação é mais longo, percorrido pela interpretação sistemática do Código Civil em vigor, pela confrontação de vários dispositivos legais previstos na nova lei privada.

            Conclui-se pela alienação diante da possibilidade de renúncia ao usufruto por parte daquele que tem o domínio útil (art. 1.410, I, do novo Código Civil), renúncia essa que poderia assumir também a forma onerosa, o que justificaria a tese da alienação possível. Ademais, no caso dessa alienação haveria a extinção do usufruto pela consolidação (art. 1.410, VI, do CC/2002). Chega-se também a mencionar o art. 717 do CC/16.

            Mas, apesar de sermos favoráveis e até defensores da tão aclamada interpretação sistemática, parece-nos que esse não é o melhor caminho. Isso porque o novo Código Civil traz regra de direito intertemporal pela qual: "revogam-se a Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 – Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei nº 566, de 25 de junho de 1850" (art. 2.046).

            Em outras palavras, deve ser feita a confrontação comando por comando, entre as duas codificações, correspondendo o antigo art. 717 do CC/16 ao art. 1.393 do CC/02. Isso faz com que o dispositivo anterior seja tido como totalmente revogado, afastada a possibilidade de alienação nele referida. Reforça-se a tese pela adoção do critério cronológico, pelo qual norma posterior (CC/2002) prevalece sobre norma anterior (CC/1916).

            Partindo para a adoção do critério da especialidade, a conclusão é, mais uma vez, a mesma. O art. 1.393 do novo Código Civil, repita-se, é norma especial, a tratar expressamente da inalienabilidade do usufruto, a quem quer que seja. Já o art. 1.410, particularmente os seus incisos I e VI, são dispositivos que não tratam dessa alienação, constituindo regras gerais relacionadas com a extinção do usufruto. Sabe-se: norma especial prevalece sobre norma geral, pela consagração da especialidade na segunda parte do princípio da isonomia, previsto como cláusula pétrea no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988.

            Particularmente quanto ao inciso VI do art. 1.410, que trata da consolidação, a maioria da doutrina não aponta como exemplo a hipótese de alienação do domínio útil pelo usufrutuário ao nu-proprietário. Ao contrário, muitas vezes é exemplificado o caso em que o usufrutuário adquire onerosamente a propriedade do bem, comprando o mesmo, ou por meio da usucapião.

            Adotando esses critérios, portanto, concluímos pela impossibilidade de alienação do domínio útil ao proprietário.

            Mas uma outra questão polêmica ainda deve ser discutida.

            Quanto ao usufruto constituído na vigência da codificação anterior, há possibilidade dessa discutida alienação? Aplica-se o art. 717 da codificação anterior, ou o art. 1.393 da novel legislação?

            A resposta, acreditamos, pode ser respondida com base no art. 2.035, caput, do novo Código Civil, outra norma de direito intertemporal, in verbis:

            "Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução".

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            Vemos nesse dispositivo a consagração parcial da "escada pontiana", do grande mestre Pontes de Miranda, que dividiu o negócio jurídico em três planos:

            - plano da existência;

            - plano da validade;

            - plano da eficácia.

            Dissemos "parcial" pois não há menção expressa quanto ao plano da existência do negócio, que estaria inserido dentro do plano da validade.

            Pelo comando legal em questão, quanto aos elementos que estão no plano da validade deve ser aplicada a norma do momento da celebração ou da constituição do negócio jurídico. Em suma, se o negócio foi celebrado na vigência da codificação anterior, essa norma deve subsumir quanto à sua validade. Devemos lembrar que os elementos inseridos no plano da validade são aqueles previstos nos arts. 104 do CC/02 e 82 do CC/16 a saber:

            a)agente capaz;

            b)objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

            c)forma prescrita ou não defesa em lei.

            Por outro lado, quanto ao plano da eficácia, que trata das conseqüências advindas do negócio jurídico, deve ser aplicada a norma do momento desse efeitos. Desse modo, se o negócio foi celebrado na vigência da codificação anterior, mas esteja gerando efeitos na vigência da atual, poderá o novo Código subsumir, particularmente quanto aos elementos relacionados a esse efeitos, caso das conseqüências advindas do inadimplemento da obrigação constante desse negócio.

            Concluindo, se o usufruto foi constituído da vigência da codificação anterior, dois podem ser os posicionamentos

            1ª Corrente: inserindo a alienabilidade/inalienabilidade no plano da validade do negócio, será possível a transmissão do domínio útil ao nu-proprietário, pois deve ser aplicado o art. 717 do CC/16.

            2ª Corrente: inserindo a alienabilidade/inalienabilidade no plano da eficácia do negócio, não seria possível a transmissão do domínio útil ao nu-proprietário, já que merece aplicação o art. 1.393 do CC/2002.

            Estamos inclinados a adotar a primeira corrente. Isso porque, a alienabilidade da coisa, também denominada consuntibilidade jurídica (conforme segunda parte do art. 83 do CC/02), está inserida dentro do objeto do negócio, particularmente na possibilidade jurídica desse conteúdo negocial, referenciada expressamente no art. 104, II, do novo Código Civil e implicitamente no seu correspondente na codificação anterior (art. 82 do CC/16).

            Assim concluindo, a alienabilidade do domínio útil seria somente possível para o usufruto constituído na vigência da codificação anterior, consagração daquilo que consta do art. 2.035 do novo Código Civil, uma das normas mais importantes e interessantes da nova legislação civil.

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Sobre o autor
Flávio Tartuce

advogado em São Paulo (SP),doutorando em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP).Doutorando em direito civil pela USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TARTUCE, Flávio. Da possibilidade de alienação do usufruto ao proprietário.: Análise do art. 1.393 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 861, 11 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7588. Acesso em: 24 abr. 2024.

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