" Direito não é discurso, nem vive
na letra morta das leis. Não se fazem leis, menos ainda leis constitucionais
para mantê-las na sonolência ineficiente do discurso constitucional. Faz-se lei para se viver – e viver bem e justamente – segundo elas".
Rui Barbosa
Nunca houve tanto debate em torno da hermenêutica constitucional quanto na realidade jurídica atual, em especial no Brasil, onde o controle de constitucionalidade, que sempre teve sua tradição difusa, passou a dar lugar ao critério concentrado desde o advento da Constituição de 1988. Neste contexto, discute-se muito o papel do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, texto supremo de nosso ordenamento. Esta, além de exercer a função de fundamento de validade das demais normas, constitui-se o conjunto de aspirações individuais e político-sociais de determinada comunidade.
Sabemos que a Constituição é um texto sui generis ao constituir-se um texto político, pois traz em seu bojo os limites e os fins a serem perseguidos pelo Estado. Ou seja, é a Constituição, diante do seu caráter fundacional do Estado, o texto ensejador dos fundamentos da sociedade, elencando os direitos fundamentais do cidadão. Sua superioridade é a mais eficaz garantia da liberdade e da dignidade do indivíduo, já que obriga não só o próprio indivíduo, mas todos os órgãos do Estado, a enquadrar todos os atos normativos às suas regras.
Diante deste caráter político da Constituição, muitos de nós, tantas vezes, cometemos o erro de buscar, no mundo das idéias políticas, justificativas para determinadas situações e até mesmo decisões que deveriam ter como fundamento fatores intrinsecamente jurídicos. Não que isto não poderia ocorrer, até mesmo porque as ligações entre direito e política são fortes. Mas, os conceitos políticos não podem, em momento algum, passar a definir e sobrepor ao mundo jurídico. Este hoje é um dos maiores problemas dentro da nossa realidade jurídica, principalmente no que tange à efetivação dos direitos fundamentais e interpretação dos princípios e normas constitucionais.
A confusão entre direito e política vem por causar grande discussão em torno de dois fenômenos que a doutrina contemporânea denominou de "politização do poder judiciário" e "judicialização da política". A confusão entre o Jurídico e o político está por causar o distanciamento do cidadão aos instrumentos de controle instituídos pela própria Constituição. E o que é pior: esta confusão gera a prevalência da conveniência, princípio essencialmente político, sobre os direitos fundamentais do cidadão.
Por isso, o constitucionalismo contemporâneo vem se preocupando em traçar a separação entre o direito e a política, buscando limites nas relações entre ambos. Muitos doutrinadores vem refletir sobre o risco que o sistema democrático corre com a manipulação e utilização do texto constitucional a serviço de um modelo político-econômico.
Como bem esclarece Celso Fernando Campilongo, são grandes os riscos de uma fragmentação do direito constitucional, de uma Constituição retalhada, enfim, manipulada e utilizada num estilo "pret-à-porter". São grandes os riscos de se condicionar a interpretação da Constituição a um determinado modelo de política econômica ou um determinado modelo político conjuntural, ou seja, os riscos de uma politização da ordem constitucional [01].
Falando sobre o assunto, este jurista reflete [02]:
"Vamos perceber que, entre nós, muitas vezes, a efetividade dos direitos fundamentais, o seu gozo efetivo ou a sua garantia jurisdicional, acaba sendo corrompida por alguma forma de intromissão política na gestão das coisas de Direito. Por alguma forma perversa de corrupção do código comunicacional do Direito (...) pelo código de comunicação da política (...), muitas vezes o que se percebe é um condicionamento político da atividade jurisdional".
Por outro lado, ocorre também o pior: a confusão entre a política, o direito e a economia. Em muitos casos, diante do déficit de representação política, as decisões que deveriam ser implementadas pelo sistema político acabam por serem direcionadas pelo mercado. Nos dizeres de Celso Fernandes Campilongo, sai a política e, em seu posto, entra a economia. Flexibilização do trabalho, privatização ou maior atuação do Estado e desconstitucionalização do direito transferem para o sistema econômico os malogros do sistema político [03].
Segundo este doutrinador [04],
"A representação política tem estruturas, funções e técnicas de atuação que não lhe permitem substituir ou suprir as deficiências e lacunas dos sistemas econômico e jurídico. A economia e o direito, por sua vez, operam em bases que não se confundem com as da política. É evidente a enorme relação entre estes sistemas. Mas isso não significa que um determine o outro. Política, economia e direito podem trocar prestações, mas nunca atuar com lógicas intercambiáveis. Dito de outro modo: os sistemas sociais particulares são funcionalmente isolados e, por isso, só podem ser autocontrolados e auto-estimulados. Só a política pode reproduzir o sistema político.
Quando o sistema político se confunde com os sistemas econômico e jurídico; quando há sobreposição de funções entre os sistemas; quando a diferenciação funcional encontra resistência em estruturas hierárquicas, o poder passa a Ter donos – como diz Raimundo Faoro – e a democracia transforma-se num lamentável mal-entendido – na crítica de Sérgio Buarque de Holanda. A democracia representativa só é realizável num contexto em que política, economia e direito são plenamente diferenciados".
No Brasil, desde o advento da Constituição de 1988, em especial após a Emenda nº 3 de 1993, que criou a Ação Declaratória de Constitucionalidade, podemos notar o esforço por parte do legislador em ampliar e fortalecer o critério de controle concentrado, exercido somente por um único tribunal constitucional – o Supremo Tribunal Federal, em detrimento do critério difuso, no qual qualquer juiz ou tribunal exerce o papel de fiscalizar a inconstitucionalidade das leis e atos normativos frente à Constituição. Isto ficou muito nítido principalmente na criação das leis 9.882/99 e 9.868/ 99. A primeira regulamentou o mais novo instrumento de controle de contitucionalidade concentrado, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, e a segunda veio normatizar o procedimento e os efeitos da ADIN e a Declaratória, dando a estas força vinculante.
Todas estas transformações receberam fortes críticas por parte dos doutrinadores, já que significaram o distanciamento do controle constitucional do cidadão e seus direitos fundamentais. Mas, o que entendemos ser o mais grave problema dentro deste quadro de desrespeito ao texto constitucional e de desprestígio dos direitos fundamentais, não é o fato de terem sido criados instrumentos de controle concentrado, mas a postura do STF diante da defesa da Constituição da República de 88 e os direitos por ela consagrados. Suas decisões demonstram o quanto este está longe de exercer a função para qual foi instituído: a de corte constitucional [05]. Parece mais um tribunal de recurso, muitos deles provenientes de processos envolvendo o Governo Federal, que enfrenta questões quase que majoritariamente de natureza processual e decide politicamente as questões constitucionais levadas até ele. Exemplos deste posicionamento equivocado são vários. Somente para exemplificar, citamos o posicionamento do STF quanto ao conflito do texto constitucional com norma anterior a ele incompatível:
"O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinquentenária".
A maior motivação da corrente majoritária do STF, para tal decisão, é a necessidade de limitar o número de feitos que chegam àquele Tribunal. Confrontando com a impossibilidade de apreciar milhares de processos que lhe tocam por competência originária ou por via recursal, o STF tende a prestigiar os entendimentos doutrinários que restrinjam, e não ampliem o acesso de novas ações. Se a questão fosse tratada no campo da inconstitucionalidade superveniente, caberá ação direta de inconstitucionalidade contra norma anterior à Constituição e que seja com ela incompatível. De outra parte, se for encarar a matéria em termo de revogação – como é a decisão do Supremo, a ação direta seria descabida porque não se pode cogitar de declarar inconstitucionalidade o que já não existe no mundo jurídico. Logo, o STF não conhece dos pleitos que trata de inconstitucionalidade de direito anterior à Constituição, a não ser pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que veio inovar a matéria. [06]
Lamentavelmente, podemos notar que o exemplo do STF, em certas vezes, é seguido a nível de critério difuso. A atual Constituição brasileira veio trazer vários instrumentos de defesa de direitos individuais, como o mandado de segurança, habbeas corpus e habbeas data, e de direitos coletivos e difusos, com a ação civil pública, ação popular, dentre outros. Todos são remédios constitucionais que, em última instância, acabam por constituírem meios para o exercício do controle constitucional difuso. No entanto, muitos destes remédios têm o seu fim prejudicado em virtude de um posicionamento ou decisão judicial muito mais preocupada em conveniências políticas do que com a efetivação de direitos constitucionais.
Por outro lado, a Constituição de 88 atribuiu ao Ministério Público papel importante na defesa e controle dos direitos difusos e coletivos, como o patrimônio público, meio ambiente, direito do consumidor, dentre outros. Assim, podemos assistir hoje exemplos interessantes que representam a luta pelo respeito a estes direitos. No entanto, também lamentamos ao ver, em muitos casos, a omissão do MP em situações de nítida ilegalidade, imoralidade e abuso de poder. Também, juizes e tribunais preferem extinguir o feito sob pretexto exclusivamente processual do que enfrentar o mérito da questão. Citamos, só para argumentar, um exemplo simples que ocorreu na cidade mineira de João Monlevade. Em 1998, em claro e inquestionável desrespeito ao princípio constitucional da reserva legal, o então prefeito daquela cidade majorou toda a planta de valores de imóveis para fins de IPTU com índices que chegavam até 400% de reajuste através de Decreto, desrespeitando a obrigatoridade constitucional da matéria ser tratada em lei. O Legislativo da cidade impetrou Mandado de Segurança Coletivo a fim de impedir que o decreto surtisse efeitos. O juiz extinguiu a ação sem julgamento de mérito levantando a ilegitimidade do Legislativo em impetrar tal remédio constitucional. Sem aqui ter a intenção de entrar na discussão se o Legislativo pode ou não entrar com mandado de segurança, analisamos a decisão do juiz que, em momento algum, preocupou-se com o mérito da questão, que tratava-se de nítida ilegalidade e abuso de poder por parte do prefeito municipal que prejudicou toda a comunidade do município. Sem falar no parecer do Ministério Público favorável ao decreto executivo. Inclusive, no término da sentença de primeira instância, a autoridade judicial chegou a deixar evidente que "era defeso ao prefeito praticar tal ato". Ou seja, não entrou no mérito da questão para não de indispor com o prefeito, mas também não deixou de concordar com o argumento da Câmara. Infelizmente, o decreto vige até hoje.
A defesa da Constituição hoje encontra-se a mercê do jogo político, da oportunidade e da conveniência. Muitas das decisões dos tribunais acabam por ser inviabilizadas no que tange à defesa dos direitos civis e constitucionais pelo fato de serem condicionadas por determinada vontade política. Com isso, questiona-se a capacidade do direito atuar como um instrumento efetivo de transformação. Reflete Celso Antonio Campilongo [07]:
" De nada adianta um Poder Judiciário que não seja capaz de conferir eficácia aos direitos fundamentais e, vice-versa, de nada adianta um elenco de direitos fundamentais se o Poder Judiciário não é capaz de garanti-los, de implementá-los."
Em virtude desta tendência à politização por parte do Judiciário que acaba por causar o descrédito deste poder diante da sociedade, muitos apresentam várias propostas de reforma deste, desde a mudança de critério para o ingresso de um membro ao STF até a reformulação das competências do Supremo e de outros tribunais, principalmente no que tange ao controle do Judiciário. Porém, não nos cabe aqui passar a tratar destas diante do objeto que propomos esclarecer. Mas, uma coisa é certa: é necessária a urgente mudança com relação à escolha dos membros do STF, hoje escolhidos ao bem prazer do Presidente da República e condicionados a uma "sabatina de faz-de-conta".
Neste contexto, muitos juristas vêm estudando novas performances da hermenêutica constitucional, condenando este fenômeno chamado "politização do Poder Judiciário", dentre eles Celso Fernandes Campilongo, que, influenciado pela teoria de Lubman, vem explicar que, sob o ponto de vista comunicacional, existem três fundamentais diferenças entre o sistema jurídico e o político:
1 – Função – A comunicação política possui uma função muito mais abrangente e ampla do que a comunicação jurídica. A política exerce a função de tomar decisões que vinculem a coletividade, em contrapartida, o direito tem a função de garantir expectativas normativas, expectativas de direitos.
2 – Código linguístico – Política e direito possuem códigos linguísticos bem distintos. Na política, utiliza-se o binário: maioria-minoria, governo-oposição. No interior do sistema jurídico, vale-se de outros critérios comunicacionais: lícito-ilícito, legal-ilegal.
3 – Programas – Por último, as formas de implementação dos programas dos sistemas político e jurídico são bem diferentes. Na política, os programas são sempre teleológicos, finalísticos, de objetivo que demandam um constante acompanhamento, atualização, mudança. Já o jurídico lida com programas condicionais, ou seja, se preenchidos requisitos, logo determinado direito deve ser assegurado [08].
Completando, Campilongo ressalta que esta distinção das funções do político e do jurídico pode constituir-se num efetivo instrumento de garantia para a efetivação dos Direitos Fundamentais do cidadão, exercendo estes o núcleo da Constituição, como "direitos invioláveis, absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis". [09]
Por fim, também mencionamos, suscintamente, a discutida tese de Peter Haberle, "A Sociedade aberta dos Interprétes da Constituição" (Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten), uma das obras mais instigantes da literatura jurídica moderna, que trabalha o tema interpretação constitucional.
A obra condena o condicionamento político da atividade jurisdional para defender a interpretação da Constituição voltada para o atendimento do interesse público e do bem-estar geral. Por isso, sugere a transformação do processo de interpretação constitucional de uma sociedade fechada dos intérpretes da Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma sociedade aberta.
Quanto maior for a complexidade social, quanto maiores forem as alternativas de escolha, maiores serão as possibilidade de efetivação da democracia. Levando-se em consideração que a democracia se constitui por uma sociedade cada vez mais complexa, Haberle alega que "os critérios de interpretação constitucional hão de ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade" [10].
Segundo este jurista, [11]
"A teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição".
Acredita este doutrinador que a ampliação do ciclo de intérpretes da Constituição irá aproximá-la da realidade social, ou seja, irá aproximar a interpretação constitucional dos anseios de uma sociedade pluralista, consequentemente de uma realidade democrática que respeita os direitos fundamentais.
Por fim, o que se tem buscado é a aproximação da hermenêutica constitucional e o principal objetivo, a efetivação dos direitos fundamentais e de uma sociedade democrática. Para isso, os órgãos judiciários que realizam a interpretação da Constituição devem estar comprometidos com os interesses e anseios de uma sociedade pluralista, comprometido com o debate democrático, ao invés de condicionar a Constituição a interesses políticos e a um modelo econômico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Vanessa Oliveira. Efetivação dos direitos humanos. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Nº 2. Julho de 1999.
__________. Novas reflexões sobre o Federalismo. Revista do Ministério Público do Maranhão, 2001
CAMPILONGO, Celso Fernandes. A Crise da representação política e a Judicialização da política. In O Direito na Sociedade Complexa. Pag 73-77
__________. Direitos Fundamentais e Poder Judiciário. In O Direito na Sociedade Complexa Pag 101-114
__________. A função política do Supremo Tribunal Federal. In O Direito na Sociedade Complexa Pag 97-100
CARVALHO NETO, Menelick de. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Notícias do Direito Brasileiro. Brasília, nº 6, 1998. Pag 233-250
HABERLE, Peter. A sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição. Porto Alegra, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. 55p