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A lei de armas e a liberdade provisória

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28/11/2005 às 00:00
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7- ANÁLISE DOS ARGUMENTOS

            O argumento de que o legislador estaria usurpando atribuição do Poder Judiciário não merece acolhida. Ora, é o legislador que estabelece os limites, dentro dos quais o Poder Judiciário pode deliberar validamente. Ao Poder Judiciário cumpre, antes de mais nada, aplicar e fazer cumprir as leis. Não é o legislador que abstratamente comina as sanções e estabelece os requisitos, por exemplo, da liberdade provisória ou da fiança? Está ele, nestes casos, usurpando atribuição do Poder Judiciário? Certamente que não, assim como não está quando veda liberdade provisória em determinado caso. Esta ele agindo dentro de sua esfera de atribuições. Somente se pode encontrar validade neste argumento de usurpação se concebêssemos um poder individual e subjetivo do julgador, o que não existe.

            O mesmo destino é reservado para a argumentação de que somente nos delitos previsto na Constituição seriam cabíveis restrições quanto à liberdade provisória. A Constituição não regula minudentemente institutos como a fiança ou a liberdade provisória. Esta tarefa fica a cargo do legislador ordinário, que se não pode desconsiderar por completo o instituto, anulando-o, também não está obrigado a regulá-lo de forma absolutamente ampla e irrestrita.

            Além do mais, se é possível afirmar-se que a especificação de delitos nos quais seria defesa a liberdade provisória tinha por escopo assegurar que esta vedação não fosse ampliada para outros delitos, também é possível afirmar-se (e de forma muito mais lógica) que a previsão nestes casos tem por fito assegurar um tratamento obrigatoriamente mais severo a estes delitos, sem interferir na possibilidade de que o mesmo regime fosse estendido para outros.

            Quanto ao princípio da inocência, como já referido (mas é sempre bom, repetir) a custódia cautelar não é, (e nunca foi), execução provisória da pena [15]. Aliás, execução provisória da pena somente pode ser admitida em favor do réu [16]. Dir-se-á que o efeito prático é o mesmo. É o mesmo também da prisão civil, digo eu. Não se pode tomar o efeito dos institutos jurídicos no mundo empírico para classificá-los, mas sim sua natureza jurídica, sob pena de reduzirmos coisas diametralmente diversas a uma mesma dimensão. Enquanto não houver alternativa para a prisão cautelar, ela é a única saída. [17]

            O argumento de que as decisões devem ser fundamentadas também não grassa acolhida pelo simples fato de que a decisão que veda a liberdade provisória é expressamente fundamentada em um dispositivo de lei. Fundamentação válida há.

            Há, contudo, dois argumentos válidos para algumas hipóteses. O primeiro deles reside em se considerar a possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por restritivas de direitos para penas de até quatro anos. O outro reside na aplicação do princípio da proporcionalidade.

            De fato, nos casos em que a pena em perspectiva não ultrapassa quatro anos, salvante a hipótese de concurso de delitos (seja material ou formal), e considerados os dados favoráveis ao acusado disponíveis no momento, tem-se que a pena privativa de liberdade eventualmente aplicada seguramente será substituída por restritiva de direitos.

            Ressoa, então, incongruente e desproporcional manter-se alguém preso cautelarmente, de forma precária e provisória, quando é certo que não haverá privação de liberdade por ocasião da decisão definitiva.

            No que diz respeito à proporcionalidade, impende considera que o artigo 21 da Lei nº 10.826/03 abarca um largo espectro de condutas de gravidade bastante diversa. O artigo 16, por exemplo, versa sobre o uso de armas de uso restrito ou proibido, posse de explosivos etc..., mas também versa sobre a posse de armas de uso permitido com numeração ou sinal identificador suprimido ou alterado ou recarregamento de munição.

            O artigo 17 trata, resumidamente, de condutas relacionadas a atividade comercial ou industrial, e o artigo 18 versa sobre condutas que caracterizam contrabando.

            Como se observa, há uma variada gama de condutas que podem representar desde condutas de menor periculosidade e mesmo usuais até atividades típicas de organizações criminosas. Em síntese, pode se enquadrar no artigo 21 desde a conduta do interiorano que, em um rincão longinqüo entregou arma para um filho, o que para ele é natural [18], até a ação das quadrilhas que alimentam o tráfico com armamento militar. [19]

            Se a privação de liberdade é uma medida excepcional, ela somente se justifica em situações excepcionais, graves. Em algumas das situações elencadas nos artigos 16, 17 e 18 da Lei nº 10.826/03 temos efetivamente hipóteses de inquestionável risco social, de onde a necessidade de custódia verte in re ipsa. Em outras, o legislador, sem dúvida movido pelos melhores sentimentos, exagerou, havendo fundamento para a concessão da liberdade "provisória", mesmo ante a vedação expressa.

            Nesta ordem de idéias, "a vedação de liberdade provisória contida no art. 21 da Lei nº 10.826/03 não configura inconstitucionalidade, devendo este artigo ser interpretado conforme a Constituição e o ordenamento jurídico. Vale dizer, portanto, que é a regra a ser observada, à qual também cabem exceções a serem aferidas em casos concretos e reconhecidas, fundamentadamente, pelo Juiz" [20].

            Esta conclusão, grafe-se, não é válida, no entanto, para a Lei dos Crimes Hediondos, a qual elenca uma série de delitos graves, não obstante recentes julgados do STJ apontem em sentido inverso. [21]

            A impunidade e a ausência de uma repressão esmagadora é que estão por trás a criminalidade, e a própria lei de armas demonstra isso, porque hoje as pessoas pensam duas vezes em sair de casa armadas.


8- CONCLUSÕES

            O número de delitos envolvendo armas de fogo no Brasil, em especial homicídios e latrocínios, é absolutamente intolerável. As causas não são somente sociais. Se desenvolvimento e riqueza afastassem esta espécie de crime, eles ocorreriam muito menos nos Estados Unidos, ainda que se possa afirmar que lá esta espécie de infração ocorre em número muito menor do que em nosso País, mormente tendo em conta o número de armas de fogo bem superior. Também não se trata de um problema exclusivamente cultural. Há países em que a violência está muito mais presente culturalmente e onde não se verifica tamanho número de vítimas.

            Correndo o risco da simplificação, ouso dizer que a problemática da violência tem múltiplas causas, mas a principal delas é a impunidade, decorrente de uma polícia que tenta denodadamente fazer o máximo com os parcos recursos que tem e de uma aplicação da lei que é feita a partir de uma ótica distorcida, que olvida o que efetivamente é a finalidade de uma sanção penal.

            É claro que agravar punições (melhor seria fazer cumprir as que já existem) não irá, de forma isolada, resolver a questão. Mas o inverso também é falso, ou seja, não é só atacando a pobreza e a marginalização que se produzirá queda significativa da criminalidade armada. E ainda que esta seja uma colaboração importante, isto demorará décadas. Que fazer por ora? Elaborar leis eficazes, que não descuidem da finalidade e do "princípio ativo" do direito penal (intimidação), e fazer cumpri-las.

            Isto dá certo? Basta ver o exemplo da iniciativa tomada no ABC paulista onde há expressiva redução da criminalidade através de medidas de controle como fechamento de bares e ações policiais coordenadas.

            Se a lei penal não mais intimidar, não for eficaz, não incutir receio, é melhor não tê-la, pois o dano é menor, dano este que ocorre quando a sociedade as sanções se esfumaçarem em benefícios de execução e visões "garantistas", que, deturpadamente, observam somente a ótica do delinqüente. O acusado e o apenado são cidadãos e titulam direitos fundamentais, mas a sanção tem possuir alguma eficácia intimidativa, caso contrário de nada vale.

            Excessos são cometidos? Sem dúvida. E decorrem da forma atabalhoada e por vezes oportunista com que alguns diplomas foram criados. Nas Leis nº 8072/90 e 10.826/03 há acertos e erros.

            Ao intérprete e aplicador cumpre, dentro do seu espectro de atuação legítima, que encontra arrimo, sobretudo, no texto constitucional, corrigir os equívocos sem se arvorar em verdadeiro legislador.

            Lembremo-nos que a lei é condensa o coeficiente de objetivação mínima. Quando as leis começam a ser esquecidas ou ignoradas a bem de um dos interesses em jogo, caímos no subjetivismo e logo depois está a tirania, que é não é menos nefasta quando provem do Poder Judiciário do que do Poder Executivo.

            Baseado nesta perspectiva, acredito inócua a discussão da aplicação da Lei nº 8.072/90, seja no que tange ao regime de cumprimento integralmente fechado (que felizmente resgatou uma fração do poder de prevenção da norma penal) ou quanto à liberdade provisória. O legislador, no exercício de suas prerrogativas constitucionais e dentro de bases razoáveis, legitimamente escolheu delitos graves e lhe gravou com maior carga de repressão. Tollitur quaestio!

            Diversamente, em alguns aspectos relativos à concessão de liberdade provisória na Lei nº 10.826/03, a razoabilidade e a proporcionalidade não foram observadas.

            É o caso do artigo 16, inciso IV, abarcado pela vedação do artigo 21 do referido diploma.

            Aqui sim, há um fundamento para modulações na aplicação da vedação de liberdade provisória se ausentes os requisitos da prisão preventiva e se as condições do acusado forem favoráveis.

            O que se espera é que exista mais atenção e consciência por parte do legislador e de nós, operadores jurídicos, acerca da importância de um texto legal, ao qual devemos sempre buscar dar inteligente e razoável aplicação, sem olvidar que é a baliza fundamental de nosso sistema jurídico.


Notas

            01 Cumpre referir, observadas as peculiaridades da legislação de cada Estado Federado, que nos Estados Unidos não há limitações ao calibre das armas, mas somente em relação à capacidade de funcionamento e automaticidade de seu ciclo. Logo, é possível comprar armas em calibre militar (projéteis de alta energia) com funcionamento semi-automático. Mesmo as armas automáticas, embora de aquisição mais difícil, podem ser obtidas, e refiro-me aqui até mesmo a metralhadoras pesadas

            02 Como assentado Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 8432/SP, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp. j. 27.04.1999, Publ. DJU 24.05.1999, p. 182: "A prisão cautelar pode ser decretada sempre que necessária e mesmo por cautela, não caracterizando afronta ao princípio constitucional da inocência." Firmando esta posição, foi editada a Súmula 09 do STJ. No âmbito do STF, consta no julgamento do HC 71.169, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 16/09/94: "Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que a prisão cautelar não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, conclusão essa que decorre da conjugação dos incisos LVII, LXI e LXVI, do artigo 5º da Constituição Federal."

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            03 A prisão civil do depositário infiel e do devedor de alimentos também subtrai a liberdade ambulatória e, no entanto, jamais poderá ser comparada em termos jurídicos à execução de uma sanção de natureza penal. Na prática, uma execução fiscal não difere de uma execução de pena multa. Em síntese o feito concreto idêntico não autoriza a aproximação dogmática e conceitual dos institutos.

            04 O termo réu deve ser utilizado após instaurado processo, ou seja, após recebimento da denúncia. Antes há o acusado ou investigado.

            05 A propósito, sugiro uma consulta ao meu "Descortinando a Custódia Cautelar: dos pressupostos à cessação", disponível nos sites http://www.ufsm.br/direito, http://www.jurid.com.br e http://www.jus.com.br, além do CD Jurisplenum, edição nº 84, v. 2.

            06 Hoje, os maiores calibres permitidos são o. 38 e o 380, também conhecido como. 38 auto. Calibres como o. 44 Magnum, 357 Magnum, 9mm Parabellum (9x19mm),. 40,. 45 e 10mm, são proibidos ou de uso restrito a órgão policiais ou forças armadas, pois já se enquadram dentro da categoria de calibres de alta energia. Todos os calibres de fuzis são também de uso restrito. Embora seus projéteis possam ter menor espessura, e peso (uma munição 7,62 pesa aproximadamente 158 grains, ou seja, o mesmo peso de um. 38, aproximadamente oito gramas) a velocidade elevada (acima de 800 m/s até mais de 1.100 m/s) lhes atribui elevada energia cinética e alcance letal superior a 2km ou mais.

            07 A propósito, ver o meu "Um panorama da fiança criminal à luz do parágrafo único do artigo 310, do CPP", disponível nos sites http://www.jurid.com.br e http://www.ufsm.br/direito.

            08 Argumentos elancados por Fernando Capez, Estatuto do Desarmamento, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 173-174.

            09 Ver, ad exemplum, Alberto Silva Franco, Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, 7a edição, 2a tiragem, São Paulo, RT, 2002, v. 1, p. 1.298.

            10 Julgado em 07/07/2005.

            11 Julgado em 10/03/2004.

            12 Julgado em 06/09/2005.

            13 A ementa integral é a seguinte: "Criminal. Resp. Art. 16, parágrafo único, IV, da lei 10.826/03. Liberdade provisória. Vedação do art. 21 do Estatuto do Desarmamento. Gravidade do delito. Ausência de concreta fundamentação. Circunstâncias subsumidas no tipo penal. Necessidade da custódia não demonstrada. Presença de condições pessoais favoráveis. Recurso desprovido. I. Hipótese em que o recorrido foi denunciado nas penas do inciso IV do parágrafo único do art. 16 do Estatuto do Desarmamento. II. Exige-se concreta motivação para a decretação da prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. III. A possibilidade de abalo à ordem pública não pode ser sustentada por circunstâncias que estão subsumidas na gravidade do próprio tipo penal. IV. Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional. V. Recurso desprovido."

            14 Julgado em 16/06/2005.

            15 A possibilidade de detração não converte a custódia cautelar em execução de pena. É apenas um benefício para o apenado.

            16 A respeito, ver o meu "A Execução Provisória da Sentença Penal", disponível nos sites http://www.forense.com.br, http://www.ufsm.br/direito, http://www.jus.com.br, http://www.jurid.com.br e no CD Jurisplenum, nº 84, v. 2.

            17 Já existem experiências com dispositivos eletrônicos que permitem controlar movimentos, sabendo-se onde o indivíduo esta. Isto seria uma alternativa útil para algumas das hipóteses de prisão preventiva. Certamente não faltaram os baluartes dos direitos humanos (do delinqüente exclusivamente) e os "garantistas" (não do garantismo social) de plantão para encontrar alguma pecha de inconstitucionalidade nestas medidas. É aguardar para ver.

            18 Imagine-se os confins da Amazônia onde uma arma é uma necessidade.

            19 Hoje não só fuzis e pistolas, mas metralhadoras, granadas, explosivos e lançadores de foguetes antitanque, além de variada munição, inclusive perfurante (com núcleos de aço capazes de perfurar até 08 ou 09 mm de aço) e traçantes (comumente vistos nas imagens de televisão como pontos vermelhos).

            20 Habeas Corpus nº 3756/RJ (200402010126121), 1ª Turma do TRF da 2ª Região, Rel. Juiz Abel Gomes. j. 16.03.2005, unânime, DJU 01.04.2005.

            21 Podemos citar como exemplos: Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 16475/MG (2004/0114011-0), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp. j. 28.09.2004, unânime, DJ 03.11.2004; Recurso Especial nº 351889/AM (2001/0110931-6), 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Laurita Vaz. j. 24.06.2003, DJU 04.08.2003, p. 356; Habeas Corpus nº 21223/SP (2002/0028742-5), 6ª Turma do STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves. j. 20.08.2002, DJ 09.09.2002, p. 247.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A lei de armas e a liberdade provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 878, 28 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7632. Acesso em: 19 abr. 2024.

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