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Fique por dentro do caso "máfia do apito"

07/12/2005 às 00:00
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A bem sucedida operação conjunta entre Ministério Público do Estado de São Paulo e Polícia Federal desbaratou uma das mais perniciosas quadrilhas que operavam no futebol brasileiro. Foram meses de investigação sigilosa, minuciosa e eficiente, com destacada atuação do Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público (GAECO), que recebeu uma denúncia anônima, à qual ninguém estava dando nenhuma importância e a transformou em uma das mais bem sucedidas investigações de crime dentro do futebol. Diante de algumas críticas recentemente feitas por "especialistas", talvez seja o momento de trazer à baila esclarecimentos à questão.


1) O que é a máfia do apito?

No sentido técnico e jurídico da palavra, a máfia do apito é uma "quadrilha" (associação de quatro ou mais pessoas para o fim de cometer crimes – conforme o art. 288 do Código Penal) formada pelos ex-árbitros de futebol Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon, o empresário Nagib Fayad, vulgo "Gibão", e outros membros conhecidos apenas por apelidos, os quais se organizaram para ganhar dinheiro criminoso, em detrimento da credibilidade do esporte, dos sentimentos de milhões de pessoas, do patrimônio de clubes de futebol e das economias de inocentes cidadãos. Os "árbitros" em questão fabricavam resultados, alterando o curso normal de partidas de futebol, seja inventando pênaltis inexistentes, seja irritando jogadores até expulsá-los ou intimidá-los, tirando-lhes a concentração, seja truncando o jogo com faltas inexistentes, seja pelos mais variados recursos insidiosos. As partidas com resultados dirigidos eram objeto de apostas em sites no Rio de Janeiro e Piracicaba, mas divulgados para todo o país por meio de rede mundial de computadores, recolhendo dinheiro de um número indeterminado de pessoas de boa fé, as quais, iludidas, punham suas economias, apostando em um jogo de cartas marcadas. A organização criminosa lucrava aproximadamente R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) por partida fraudada, pagando aos árbitros fraudadores a quantia aproximada de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por resultado bem sucedido. Não há notícia até o momento, de envolvimento de clubes ou dirigentes. A investigação prossegue e pode envolver mais pessoas.


2) Quem a investigou?

O Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio de seus Grupos de Combate ao Crime Organizado, e o setor de Inteligência da Polícia Federal, a partir de denúncia anônima, inicialmente endereçada à Revista Veja, que a repassou ao Ministério Público. O MP e a Polícia Federal levaram a sério a informação que receberam, sobretudo pela seriedade do órgão de imprensa que a trazia, e investigou o fato durante meses, de maneira sigilosa, minuciosa e eficiente. Na investigação, foi utilizada a Lei n. 9.296 de 24 de julho de 1996 (Lei de Interceptação Telefônica), a qual autoriza ao juiz determinar a interceptação de conversas telefônicas durante a investigação policial, mediante pedido da autoridade policial ou do membro do Ministério Público, interceptações essas que permitiram o arrebatamento dos criminosos envolvidos. Foi também empregada a Lei n. 9.034, de 03 de maio de 1995 (Lei do Crime Organizado), que permitiu à polícia não efetuar a prisão logo no primeiro momento em que observou a atuação da quadrilha, já que essa Lei permite a chamada "ação controlada", também conhecida como flagrante prorrogado, que consiste em retardar a prisão em flagrante até o momento mais conveniente, ou seja, até que os peixes maiores sejam também flagrados. É mais ou menos, como, deixar de prender o vendedor de cigarros de maconha no primeiro momento, para prendê-lo depois, junto com o chefão da organização. Por isso o MP e a Policia Federal não prenderam logo de cara o árbitro Edílson Pereira de Carvalho.


3) Por que o Ministério Público estadual investigou em conjunto com a Polícia Federal e não a Polícia Estadual?

Embora não esteja configurada a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição brasileira, já que o crime investigado não afetou bens da União, empresa pública federal ou autarquia federal, mas o patrimônio de pessoas físicas e jurídicas privadas, sendo, portanto, de competência da Justiça Comum Estadual, a Polícia Federal foi chamada porque a quadrilha, a princípio, estaria atuando além das fronteiras do Estado de São Paulo, possivelmente em âmbito nacional (o que ainda não foi comprovado), sendo que a nossa Constituição Federal (art. 144, I) confere atribuição a essa Polícia, quando se trata de infrações que tenham repercussão interestadual ou nacional. A Polícia Estadual poderia também ter sido chamada, mas a opção do Ministério Público nesse caso específico pela Polícia Federal, está respaldada na Constituição Federal, pois a organização é suspeita de atuar até mesmo fora do Brasil.


4) Quais os crimes possivelmente cometidos?

No mínimo quatro. (1)Estelionato, o popular "um-sete-um", que consiste em utilizar fraude para enganar pessoas e causar-lhes prejuízo (CP, art. 171). É necessário identificar as possíveis vítimas, mas, com certeza, vítima é o que não falta. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), como organizadora do campeonato, foi diretamente prejudicada, pois, terá de arcar com os custos da realização dos jogos anulados e pode ser acionada civilmente pelos clubes por essa razão. Os clubes que disputaram as partidas fraudadas, são vítimas também, já que suportarão os prejuízos pela anulação dos jogos e os custos por sua repetição (custos de aluguel de estádio, transporte, hospedagem, etc). O torcedor que foi ao jogo, e que pode ser identificado, caso tenha guardado o canhoto do bilhete (muitos guardam até para colecioná-los) é outra vítima certa e determinada. Os canais de transmissão pelo sistema "pay-per-view", os quais terão de retransmitir os jogos gratuitamente para os assinantes, também foram vítimas da fraude, e podem ser identificados. Há, inclusive, um clube que foi rebaixado no Campeonato Paulista (torneio já encerrado), onde também houve confessada atuação da quadrilha e, por ter de disputar a Segunda Divisão, arcará com prejuízos da ordem de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). (2) Crime contra a Economia Popular, que consiste em "obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento de um número indeterminado de pessoas" (Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, art. 2º, inciso IX). (3) Falsidade ideológica, pois o árbitro preenchia as súmulas das partidas mentindo sobre o seu conteúdo, na medida em que relatavam que a partida teve seu desenvolvimento normal. (4) Finalmente, houve o crime de formação de quadrilha ou bando, o qual ocorre com a simples reunião das pessoas com o fim de cometer os crimes. É um crime grave, previsto no art. 288 do CP e pode dar até três anos de cadeia.

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5) O que deve ocorrer com as partidas de futebol fraudadas?

Depende. Se o campeonato estiver em andamento, elas devem ser anuladas, pois, partida apitada por árbitro confessadamente corrupto não pode valer nada. É como um jogo sem juiz, pois o vício é de tamanha monta que invalida tudo o que tiver sido feito pelo árbitro, ou melhor, pelo não-árbitro. Não há qualquer necessidade de se demonstrar, na prática, se um clube ou outro foi prejudicado, pois o prejuízo é presumido, na medida em que se trata de matéria de ordem pública.

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Sobre o autor
Fernando Capez

Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Presidente do Instituto Fernando Capez de Ensino Jurídico

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAPEZ, Fernando. Fique por dentro do caso "máfia do apito". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 887, 7 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7644. Acesso em: 26 abr. 2024.

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