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Soltura de presos condenados x conveniência estatal:

legalidade ou ilegalidade no cumprimento da Lei de Execuções Penais?

02/12/2005 às 00:00
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Em meados do mês de novembro do ano 2005, foi noticiada, com certa ênfase na imprensa nacional, a decisão proferida pelo ínclito Juiz de Direito, Livingston José Machado, que como titular da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Contagem -MG, determinou a expedição de alvarás de soltura para presos condenados, que se encontravam cumprindo pena nos lúgubres cárceres das delegacias de polícia do citado município. 

Como esperado, a decisão, tomada de forma sábia e audaciosa pelo culto e competente magistrado, foi passada pela imprensa à população brasileira como uma decisão insana, inconseqüente e absurda, e o povo, permissa venia, face à sua falta de informação e educação, de forma fácil, se viu manipulado pela imprensa contundente, cruel, e desinformada (?), para se voltar contra uma decisão até então legalmente pertinente e proferida em total consonância com nossa legislação.

O que o Juiz Livingston José Machado fez foi simplesmente dar cumprimento aos ditames legais, vez que, como os presos estavam cumprindo pena de modo diverso do qual deveriam estar, e por um tempo já demasiado longo, entendeu não ser justo, seguro e legal mantê-los presos naqueles tenebrosos cárceres, vez que se assim não decidisse estaria agindo de forma contrária à lei.

O preso, enquanto condenado, é possuidor de deveres e direitos. Segundo a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), dentre outros, constituem-se como direitos dos presos: ter alimentação suficiente e vestuário; assistência à saúde, material, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito e etc.

Dentre os direitos assegurados aos presos, podemos considerar como um dos mais importantes o disposto no Art. 88, da LEP, que dispõe "... o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório...". E mais, em seu parágrafo único preestabelece que são requisitos da unidade celular: "salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana e área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados)".

Em nosso país, o direito do ius puniendi é exclusivo do Estado, e este ente, enquanto o aplicador da sanção, tem, segundo a lei de execução, deveres a cumprir, tais como assegurar aos presos que se encontram sob sua tutela assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa e saúde.

Quanto à assistência material, esta consistirá em fornecimento ao preso de alimentação, vestuário e instalações higiênicas.

Há de se dizer que a soltura dos presos condenados noticiada na imprensa se deu porque os mesmos encontravam-se cumprindo a pena que lhes foi irrogada de forma totalmente contrária ao determinado pela lei, vez que estavam custodiados em celas superlotadas, imundas, insalubres, convivendo presos saudáveis com presos acometidos de tuberculose, hepatite, sarna e outras moléstias mais, o que se não averiguado com a atenção necessária, além de um problema prisional, findaria, em breve interstício temporal, num sério problema de saúde pública.

Não resta dúvida de que os presos estavam vivendo acautelados em situação degradante e desumana, bem como que a sanção a eles aplicada pelo Estado era totalmente ilegal e contrária aos princípios constitucionais da individualização da pena e da dignidade da pessoa humana.

Se o Estado não estava dando condições aos presos beneficiados com os alvarás de soltura de cumprirem a reprimenda de acordo como os comandos legais, não seria justo mantê-los acautelados em situação diversa e mais gravosa, vez que é conditio sine qua non para aplicabilidade de uma pena sua prévia cominação legal.

Em nosso país, não é aceitável a aplicação de penas degradantes e que ferem a dignidade da pessoa humana, o que tornava ilegal a sanção aplicada aos presos libertos do município de Contagem - MG, motivo pelo qual assiste razão ao Juiz Livingston José Machado em soltar os presos e suspender a execução de suas penas até que o Estado lhes dê condições de cumprir suas obrigações, enquanto condenados, de acordo com os imperativos legais.

A Lei de Execução Penal, no que tange aos direitos dos presos, não pode ser meramente figurativa, vez que se aqueles, enquanto condenados, têm deveres e direitos, não se pode exigir somente que cumpram suas obrigações, mas há de se fazer valer também os seus direitos, sob pena de nos afastarmos da premissa de que vivemos em um país Democrático de Direitos.

Depois, em que pesem as inúmeras manifestações populares contra a libertação dos presos no município de Contagem - MG, faz preciso asseverar que justiça se faz é aplicando a lei e não se voltando contra esta, ainda que não seja a decisão tomada aquela desejada por todos. No direito, nem tudo que é legal é justo, e nem tudo que é justo é legal.

Mister aludir que, por mais grave que tenha sido o delito praticado pelo condenado, os seus direitos e garantias constitucionais hão de ser resguardados e preservados, mormente os relacionados com a dignidade da pessoa humana.

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Lado outro, não é razoável desejar pena e tratamento cruel aos presos porque não podemos nos esquecer que mais cedo ou mais tarde estas pessoas, hoje tratadas como animais, um dia retornarão ao convívio social, e aí, sabe-se Deus como irão se comportar novamente em sociedade, após saírem das jaulas em que se encontravam custodiadas.

Sobre o tema aqui versado, em virtude de toda essa ilegalidade "legalizada" dentro do sistema penitenciário brasileiro, num depoimento prestado sobre os aviltantes e atrozes problemas enfrentados pelos presos no Brasil, o nobre criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABR, acerca do reflexo de toda essa barbárie institucionalizada sobre a personalidade dos condenados, discorreu o seguinte: "... pouco poderemos esperar desses que retornarão, pois o sistema é extremamente cruel, impingindo gravames muito superiores aos legais, facilitando a ilegalidade do tratamento degradante, aniquilando a essência da criatura humana que existe dentro de cada um de nós...".

A conclusão que se retira de todo esse melindroso tema, é que, daquele que será remetido a uma unidade prisional, onde sofrerá todas as barbáries que se pode extrair do mundo do cárcere (viver na promiscuidade, dormir no chão, ao relento, conviver com presos acometidos com doenças às vezes de natureza grave, e etc.), destes seres desprezíveis (presos condenados), nada podemos esperar quando libertos, a não ser a mais robusta revolta e indignação, que na maioria das vezes, têm sido traduzidas por meio de agressão e afronta à paz social do Estado.

O direito posto, e que se encontra em pleno vigor, há de ser aplicado, ainda que desagrade à grande parte da sociedade, porque o Judiciário não pode fazer valer somente aqueles direitos que ela julga convenientes, vez que a lei imposta há de ser aplicada a todos, e assim sendo, a sanção aplicada a réus condenados deve ser cumprida nos seus exatos limites legais, sob pena de se afastar o Estado de seus ideais basilares, e deixar de ser um Estado Democrático de Direito para ser um Estado Tirânico e Soberbo.

Como dizia o brilhante Marquês Cesare Beccaria, "... os cidadãos, por viverem em sociedade, cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Por essa razão, não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontece nos casos de pena de morte e das sanções cruéis...".

E vai mais além: "... Só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente...".

E ainda, "... a pena deve ser utilizada como profilaxia social, não só para intimidar o cidadão, mas também para recuperar o delinqüente...".

Concluindo, entendo que o Juiz Livingston José Machado, ao determinar a expedição dos objurgados alvarás de soltura, não só aplicou a lei como impõe o nosso ordenamento legal, como também teve a hombridade, caráter, coragem e a honradez de enfrentar e suportar de forma digna o linchamento moral a que foi submetido, tudo, em prol da mais costumeira e desejada Justiça. Ao final, esperamos que toda esta triste história redunde em algo benéfico para este país, e mais, esperamos que esse magnânime ato, ainda que para muitos absurdo, tenha sacudido não só o município de Contagem, mas o nosso País como um todo, e que tenha ainda a grandeza suficiente para levar a sociedade brasileira a uma reflexão, porque como dizia Jean-Jacques Rousseau, é agindo contra o desejado pela sociedade que levaremos essa sociedade à evolução.


Bibliografia:

BECCARIA, Cesare/ trad.Flório de Angelis. Dos delitos e das Penas – Bauru. SP. Ed. EDIPRO. 1999 - 2ª Reimpressão.

CASTRO, Douglas Camarano. "As sanções ilegais infligidas pelo Estado". Artigo. ICP - Boletim nº 09/2000. p.08/09

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Sobre o autor
Douglas Camarano de Castro

Assessor Judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mestre em Direito Pela PUC-Rio. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Douglas Camarano. Soltura de presos condenados x conveniência estatal:: legalidade ou ilegalidade no cumprimento da Lei de Execuções Penais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 882, 2 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7652. Acesso em: 22 dez. 2024.

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