6. O magistrado, a sociedade e a Justiça Desportiva
Em sede de Justiça Desportiva aplica-se a legislação desportiva - norma em tese - ao caso concreto, sendo, na essência, ato de jurisdição, malgrado formalmente não o seja, posto que não emitido pelo Poder Judiciário como Poder do Estado, ao lado do Estado-Legislador e do Estado-Administração.
Ora, assim não se pode querer deixar de enxergar, principalmente no plano prático, o veio jurisdicional que norteia os atos praticados por aqueles que aplicam as normas desportivas. Nesse diapasão, qual o prejuízo que ostenta a sociedade ao "emprestar" seus magistrados para que, altruisticamente, trajados com as vestes da imparcialidade, emprestem seus conhecimentos e a sua experiência para o engrandecimento do desporto? Não se mostra incomum, muito pelo contrário, mormente frente às regras de experiência, a confiabilidade e a segurança que se outorga a qualquer ato jurídico com a participação de um magistrado. Segundo Arthur Pierra Bouchardon, desconfiar-se de um Magistrado é um princípio de dissolução social. Portanto, confiai sempre na Magistratura, sobretudo nos dias de hoje em que uma aura de heroísmo envolve a figura do Magistrado, cujo desassombro é ressaltado nos instantes de crispação histórica, em que encarna os mais vibrantes anseios do povo, que nele identifica claramente o seu campeão e a ele confia as derradeiras esperanças dos perseguidos e injustiçados.
Assim, repita-se, como retirar essa idônea participação de magistrados na construção da justiça do desporto?
PIERO CALAMANDREI, em sua célebre obra " Eles, os Juízes, vistos por um Advogado", Editora Martins Fontes, 1997, traz como título do 1o. capitulo: " Da Fé nos Juízes. Primeiro requisito do Advogado". Dúvidas, pois, não há de que a sociedade acredita nos seus julgadores. Como dito pelo notável processualista, tem a população " fé" nos seus Juízes. Tal fé pode e deve ser utilizada para o alcance de outros fins, também de relevante interesse público, in casu o deporto. Impende mencionar que o desporto, nas lições do festejado constitucionalista do Estado de São Paulo, ao ser tratado no texto constitucional sob a rubrica da " Ordem Social"(arts. 193/232), demonstra a importância que lhe foi dada pelo legislador constituinte, vinculando-o de forma indissociável ao art. 6o, do mesmo Corpo Normativo, em complementação aos desideratos que se quer sejam alcançados através da proteção dos direitos sociais.
7. O panorama atual
Existe atualmente uma quantidade razoável de magistrados e promotores de justiça atuando em tribunais desportivos. Somente em modalidades olímpicas são mais de mil tribunais desportivos, considerando aproximadamente 50 modalidades, cada qual contando com 27 tribunais regionais e suas comissões disciplinares, bem assim um Superior Tribunal e comissões disciplinares. A retirada imediata do magistrado dessas atividades diletantes abalaria o sistema desportivo brasileiro, sendo certo que uma providência dessa ordem demandaria um período de transição que o desporto, pela sua dinamicidade e necessidade de resolução célere de conflitos, não dispõe.
8. Conclusões
Diante de todo o exposto, é preciso enfrentar o tema em apreço despido de qualquer emoção, especialmente quando estamos diante de atividades impregnadas pela paixão de todos os brasileiros. A análise deve ser eminentemente técnica.
E assim sendo, inexiste impedimento ou vedação para a composição de tribunais desportivos, assim como não há nas comissões sindicantes ou de processo administrativo por magistrados. Isto porque não há remuneração nas atividades de membro da Justiça Desportiva e também não existe cargo ou função pública, mas apenas uma espécie de voluntariado, consubstanciado no que se denominou de função de relevante interesse público. No mesmo sentido, os membros da Justiça Desportiva não ocupam cargo em entidades privadas (federações ou confederações desportivas), porquanto os tribunais desportivos são entes despersonalizados, autônomos e independentes das entidades de administração do desporto que, tão somente, devem custear as despesas para infra-estrutura e de recursos humanos para o funcionamento das instâncias desportivas que funcionam junto a si, o que não se confunde jamais com quaisquer verbas que integre o regime remuneratório de agentes públicos.
Por derradeiro, o afastamento de magistrados e até mesmo membros do Ministério Público das instâncias desportivas redundaria em alijá-los do convívio social revelando um profundo desconhecimento da realidade da estrutura e organização da Justiça Desportiva acarretando considerável prejuízo à continuidade de suas atividades devido à significativa quantidade de servidores de tal categoria na composição de tribunais desportivos em todo o País nas mais variadas modalidades desportivas.
Notas
01
SCHMITT, Paulo Marcos (coord). Código Brasileiro de Justiça Desportiva Comentado. Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2006; Justiça Desportiva vs. Poder Judiciário: Um conflito constitucional aparente. Alexandre Hellender de Quadros e Paulo Marcos Schmitt. Revista Brasileira de Direito Desportivo nº 04, IBDD, Imprensa Oficial, segundo semestre/2003.02
Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: CA - CONFLITO DE ATRIBUIÇÃO – 53 Processo: 1996.00.57234-8 UF: SP Orgão Julgador: SEGUNDA SEÇÃO Data da Decisão: 27/05/1998 Documento: STJ000220441 Fonte DJ DATA:03/08/1998 PÁGINA:66 Relator WALDEMAR ZVEITER Decisão Por unanimidade, não conhecer do conflito.03
Art. 52. Os órgãos integrantes da Justiça Desportiva são autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema, compondo-se do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades nacionais de administração do desporto; dos Tribunais de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades regionais da administração do desporto, e das Comissões Disciplinares, com competência para processar e julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva, sempre assegurados a ampla defesa e o contraditório. (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 14.7.2000)04
"Órgãos independentes são os originários da Constituição e representativos dos Poderes de Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário (...)". (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 20. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 66.).05
RMS 16904 / MT ; RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2003/0149195-5, Relator Ministro HAMILTON CARVALHIDO (1112), Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA, Data do Julgamento: 28/09/2004, Data da Publicação/Fonte: DJ 29.11.2004 p. 412.06 RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao regime único dos servidores públicos civis, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 216.
07 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 4ª edição. São Paulo: RT, 2000, p. 331.
08 DALLARI, Adilson Abreu. Regime constitucional dos servidores públicos, 2ª edição. São Paulo: 1990, p. 71.
09
No mesmo sentido, Diógenes Gasparini explana que: "E o licenciado para tratar de assunto particular? Este pode acumular? A resposta é afirmativa se se cuidar de entidades diferentes. Com efeito, esse servidor público, na situação de licenciado para tratar de assunto de interesse particular, ainda que se pudesse assegurar que acumula cargo, não acumula, certamente, remunerações. Será negativa, se o servidor licenciado vier a ocupar cargo na entidade da qual se licenciou. Não, evidentemente, por que acumula remunerações, mas porque tal situação afronta o princípio da moralidade administrativa." (GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 165 e 166);E Hely Lopes Meirelles aduz: "A proibição de acumular, sendo uma restrição de direito, não pode ser interpretada ampliativamente. Assim, como veda a acumulação remunerada, inexistem óbices constitucionais à acumulação de cargos, funções ou empregos do serviço público desde que o servidor seja remunerado apenas pelo exercício de uma das atividades acumuladas. Trata-se, todavia, de uma exceção, e não de uma regra, que as Administrações devem usar com cautela, pois, como observa Castro Aguiar, cujo pensamento, neste ponto, coincide com o nosso, ‘em geral, as acumulações são nocivas, inclusive porque cargos acumulados são cargos mal desempenhados.’" (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 25ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 404).
10
Nesse sentido: Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 23311
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 364.12
Ob. Cit., p. 234.