Conflitos entre princípios constitucionais na tutela do direito à saúde em razão da judicialização

29/09/2019 às 23:07
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O presente trabalho buscou estudar as razões da Judicialização, os impactos que essa transferência de responsabilidade gerou e os princípios afetos ao direito à saúde.

1. INTRODUÇÃO
No Brasil, as questões relacionadas a saúde são fortemente discutidas tanto em âmbito político-legislativo como no campo jurisdicional, haja vista que o direito de acesso a saúde, consubstanciado principalmente no fornecimento de medicamentos não contemplados pelo SUS e de tratamentos de alto custo, tornou-se reivindicação recorrente das ações que chegam ao Poder Judiciário.

É cediço que a saúde é um direito fundamental, estampado na Carta Magna de 1988 em capítulo próprio, enaltecendo a sua importância, na qual se buscou assegurá-lo como um direito de todos e dever do Estado, conquista gerada a partir de muitas lutas sociais.

Entretanto, ao longo dos últimos anos, o problema de escassez de recursos orçamentários e a desorganização da administração pública, gerou-se uma forte demanda de ações ao judiciário visando a consolidação do direito à saúde, que transferiu ao órgão um “poder decisório” sobre políticas públicas, a chamada Judicialização da Saúde.

Nesse sentido, o presente trabalho se propõe a apresentar um estudo acerca da judicialização da saúde, abordando o excesso de demandas que chegam ao judiciário e suas
consequências na atividade estatal e judiciária. 

A metodologia aplicada foi baseada em pesquisa de doutrinas e artigos sobre o tema e
pela vivência no estágio realizado na Defensoria Pública da União, que recebe diariamente inúmeras ações relacionadas ao Direito à saúde. 

Para tanto, o trabalho foi dividido em quatro partes. Primeiro, foi feita uma breve síntese sobre o conceito de direito à saúde e de Judicialização, fazendo uma interface entre o direito do indivíduo e a obrigação do Estado em prestá-la. 

Em seguida, foi abordado os principais impactos da judicialização, tanto em âmbito estatal quando no próprio judiciário. Por conseguinte, foi analisado os princípios constitucionais que são frequentemente suscitados pelas partes nas ações judiciais relativas ao direito a saúde, e como o judiciário tem se posicionado quanto a elas.

Por derradeiro, foi discutido sobre a possível violação ao princípio da isonomia, em razão da judicialização, levando-se em consideração o potencial privilégio que os demandantes conseguem ao ter seus pedidos deferidos pelos magistrados sobrepondo-se ao direito da coletividade que aguarda inerte a ação da administração pública. 

Importa destacar que este estudo não tem a pretensão de apresentar conclusões definitivas sobre a temática, que é complexa, mas sim, apresentar uma análise dos problemas e de suas implicações para servir de panorama a novos estudos e a possíveis soluções.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 O DIREITO A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Inicialmente, é importante situar o direito a saúde, enquanto direito social, no âmbito de proteção dos direitos humanos fundamentais, que se classificam de acordo com a ordem histórica em que foram reconhecidas, podendo ser de primeira dimensão (liberdades negativas), segunda (liberdades positivas), terceira (interesses coletivos ou difusos) e até quarta (democracia), embora haja autores que defendam uma quinta dimensão (globalização).

Nesse sentido, são classificados como direitos de segunda dimensão aqueles previstos no artigo 6o, caput, da Constituição Federal do Brasil de 1988 como sendo “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados”. 

Alexandre de Morais (2017, p. 164) conceitua os direitos de segunda dimensão como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória de um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamento do Estado Democrático, pelo art. 1o, inciso IV, da Constituição Federal. 

A Constituição Federal de 1988 é a primeira Carta Brasileira a consagrar de modo amplo o direito à saúde como direito fundamental, e por este caráter que foi incluída no rol das cláusulas pétreas, sendo ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-la. 

Segundo Dr. André da Silva Ordacgy, Defensor Público Federal do Rio de Janeiro (2017, p.1), o direito a saúde pode ser considerado o direito humano e social mais importante, de caráter universal, essencial e inafastável, porque é umbilicalmente ligado ao direito à vida, o que se percebe por seus antecedentes históricos e pelo alto nível de normatização da matéria no âmbito do direito interno e internacional. 

Nesse interim, o direito à saúde deve ser prestado pelo Estado, de modo que garanta a
todas as pessoas a sua concretização, sem nenhuma desigualdade, dando a característica de
universalização a este preceito.

Entretanto, na prática, esse direito tem enfrentado obstáculos a sua efetivação devido a
limitação de recursos dos Estados, a dificuldade de implementação das políticas públicas e a
gestão organizacional. 

2.1.1 A JUDICIALIZAÇÃO COMO FORMA DE GARANTIA DE DIREITOS

No Brasil, o Poder Judiciário sempre foi um poder coadjuvante, por ser considerado neutro politicamente. Entretanto, ao longo dos últimos anos, o Judiciário tem estado no “centro do palco”, e nunca foi tão largamente discutida a aplicabilidade das leis, as polêmicas decisões dos magistrados e, principalmente, nunca se viu o STF tão televisionado como nos dias atuais. 

Pode-se até dizer que o Judiciário está muito mais próximo da sociedade do que os outros poderes, deixando de ser um departamento técnico especializado para se tornar um poder político, abandonando a imagem de “boca da lei”, e expandindo o direito de forma principiológica, tendo em vista que a cada dia a sociedade fica mais complexa e que não existem leis suficientes – e não existirão - que abarquem todas as novas problemáticas que surgem. 

O ministro Luís Roberto Barroso trouxe de forma brilhante a ideia de Judicialização,
na qual transcreve-se:

Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. (Revista Eletrônica Conjur, 2008)

Nesse sentido, a Judicialização pode ser conceituada como a transferência de poder das instâncias políticas tradicionais para juízes e tribunais, que estão preenchendo as lacunas e omissões políticas, administrativas e legislativas.

O ilustre Ministro ainda consigna que a Judicialização é um fenômeno mundial, pós-guerra, entendendo que o Judiciário é importante não só na proteção do Estado Democrático de Direito, como também dos direitos fundamentais.

Assim, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico e especializado para se tornar um poder político, e na visão do Ministro Barroso, possui três causas: 1) a ascensão institucional do Judiciário, 2) o relativo descrédito da política majoritária em geral, e 3) a omissão da política majoritária em enfrentar determinadas questões, devido ao alto custo moral e político de se fazer determinadas opções, tendo o Judiciário que intervir. 

E por este cenário que o direito à saúde também chegou ao Judiciário, gerando grandes críticas a intervenção judicial: afronta à separação dos poderes; a dificuldade do Poder Público em cumprir ordens judiciais para tratamentos não fornecido pelo SUS, e a desorganização do planejamento e funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Estado, em prejuízo da continuidade da prestação de serviços de saúde para o restante da população que não socorreu às vias judiciais (saúde pública coletiva). 

Há autores, como Gustavo Amaral (2001, pág. 158), que entendem que o Judiciário não tem legitimidade para criar ou modificar políticas públicas, pois cabe exclusivamente ao Legislativo e Executivo o controle das verbas da área da saúde. Para ele faltaria aos magistrados a capacidade de analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos, por estar vocacionado a concretizar a justiça a partir da análise das circunstâncias colocadas nos autos judiciais.

Adota-se o entendimento de outros que, a exemplo de Barroso (2007, pág, 1) e Alexandre Gonçalves Lippel (2004) entendem que a intervenção judicial é salutar para a concretização dos direitos fundamentais da sociedade, quando estes estiverem sendo desrespeitados por omissão, negligência, proteção insuficiente ou incompetência da Administração Pública. 

Se por um lado, os juízes não podem interpretar o direito à saúde como um direito a toda e qualquer prestação, por outro, não podem tratá-lo como mera promessa constitucional inconsequente, exigindo dos magistrados uma atuação cada vez mais ousada, tendo em vista que são desafiados a se manifestarem sobre questões complexas.

2.2 IMPACTOS DA JUDICIALIZAÇÃO

Se por um lado, a Judicialização é positiva, vez que salva a sociedade das omissões das políticas públicas, trazendo para elas o exercício e a garantia de direitos, por outro, o fenômeno também tem sua face negativa, pois mostra a deficiência dos outros poderes e as crises – políticas, administrativas, econômicas e legislativas - enfrentadas pelo Estado. 

O primeiro impacto trazido pela Judicialização é que ela mostra a desorganização da administração pública e evidencia a crise política, econômica e social que permeia o setor de saúde, mostrando um desrespeito com o cidadão, que depende das ações do Estado, como diariamente é mostrado nos noticiários: o caos da saúde pública.

O site de notícias UOL recentemente publicou reportagem intitulada “Falta de médicos e de remédios: 10 grandes problemas da saúde brasileira”, 2 na qual o diretor da FSP (Faculdade de Saúde Pública) da USP, Oswaldo Yoshimi Tanaka, lista os principais problemas atuais da saúde: 1) faltam médicos, 2) longa espera para tratamento, 3) faltam leitos, 4) atendimento de emergência ruim, 5) falta de recursos para a saúde, 6) melhor formação dos médicos, 7) plano de saúde caro, 8) cobertura de plano insuficiente, 9) falha na prestação dos serviços das operadoras de saúde, e 10) discriminação no atendimento.

Percebe-se que os problemas relacionados a saúde vão muito além dos hospitais públicos, da falta de vagas ou das longas filas de espera, e é por isso que o sistema de saúde, juntamente com sua comissão organizadora, precisa de uma reestruturação emergencial. 

A judicialização tem por essência o fato de que cada sistema vive separadamente seus dilemas: no judiciário, o dever de fazer cumprir as decisões; na saúde, a tentativa de conciliar as normativas do SUS, o financiamento insuficiente e as determinações recebidas, e para lidar com essa missão, deve-se buscar estratégias e alternativas que diminuam o enorme fosso existente na comunicação entre os sistemas, visando garantir o direito à saúde de todos e de
cada um. (CONASS, 2017) 

Por conseguinte, o segundo impacto trazido pela Judicialização diz respeito ao desequilíbrio financeiro-econômico das decisões judiciais que concedem o fornecimento de medicamentos, cirurgias ou tratamentos fora da lista do SUS ou de alto custo, gerando Poder Público uma imprevisibilidade das despesas, pois provoca a realocação emergencial de recursos, descontinua o tratamento de pacientes regulares e cria despesas extras pelo eventual descumprimento das decisões judiciais.

 O secretário de controle externo da Saúde do Tribunal de Contas da União (TCU) Marcelo André Barboza da Rocha disse, durante a audiência pública sobre judicialização da saúde realizada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2017, informou que os gastos da União e dos Estados cresceram 1.300% devido às demandas judiciais por fornecimento de medicamentos entre 2008 a 2015.(CNJ, 2017) 

Por essa razão que os entes federativos invocam a cláusula da reserva do possível para fundamentar a negativa de prestação, que se ressalta, são sempre apresentadas através de  petições genéricas, onde suscitam a falta de recursos, o excesso de ações judiciais e da necessidade de manutenção dos SUS, o que gera um enorme desequilíbrio econômico.

Estudos  mostram  que  o  gasto  com  liminares  de  medicamentos  dadas  pelo  Poder judiciário  corresponderam  ao  quantitativo  de  R$  132  milhões  de  reais  em  2010  (BASST, 2011) e por esse excesso de valores que os defensores da Análise Econômica do Direito (AED) acreditam que cabe ao Judiciário, utilizando-se da ponderação, dos elementos   interdisciplinares, e principalmente do uso racional de recursos, garantir  a  maior  efetividade  de  direitos  com  o  mínimo  de  sacrifícios, coibindo  e  regulando  a  atuação  ou  omissão  dos  demais  poderes,  ou  seja,  de  seus eventuais excessos e faltas.

No período de 2010 a 2015, o Ministério da Saúde destinou mais de R$ 2,7 bilhões com compras determinadas judicialmente. Desse valor, mais de 54% (R$ 1,4 bilhão) referiram-se a três medicamentos: Elaprase, Naglazyme e Soliris. O último, indicado para tratamento de duas doenças raras do sangue - a Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN) e a Síndrome Hemolítico Urémico atípico (SHUa) - foi registrado em 2018 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Se esse medicamento tivesse sido registrado no órgão desde que começaram os pedidos judiciais para fornecimento, o gasto por unidade seria de R$ 11,942 mil e não de R$ 21,7 mil por unidade, o que representaria uma economia anual de R$ 300 milhões. (CNJ, 2017)

Importante ressaltar, que os próprios médicos do SUS não prescrevem medicamentos da lista, sob o argumento de que os medicamentos ali elencados estão defasados e o rol taxativo restringe a indicação, pois pela ausência de previsibilidade da doença, ocorre a negativa das centrais de dispensação de medicamentos, gerando uma provável demanda ao judiciário.

Neste sentido, ocorrem três situações que geram a judicialização: itens que estão nas listas do SUS,  todavia,  o cidadão  não as acessa; itens que não constam na lista, mas que poderiam ser incluídos; e os itens que o SUS não oferta e nem deve ofertar, como os experimentos clínicos, os medicamentos sem registro nacional e aqueles cuja análise não foi favorável à incorporação. Por outro lado, os pacientes de posse da prescrição médica, querem a prestação pelo Estado, independente destas situações.

A fim de amenizar os efeitos dessas controvérsias, foi decidido que o Judiciário poderá determinar ao poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: 1) laudo do médico do paciente comprovando que o medicamento é imprescindível; 2) que os medicamentos fornecidos pelo SUS são ineficazes para o tratamento pretendido; 3) demonstração da incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e 4) existência de registro do medicamento na Anvisa.

Apesar do avanço, o STF ainda discute se o Estado deve fornecer medicamentos de alto custo que estão fora da lista do SUS por meio de decisão judicial (RE 566.471) e questiona a distribuição e comercialização de medicamentos sem registro na Anvisa (RE 657.718). O julgamento dos dois recursos, com repercussão geral reconhecida, foi interrompido, em setembro de 2016, por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017 e sucedido por Alexandre de Moraes, que ainda não preparou o voto. (CONJUR, 2018)

Cabe mencionar que sobre o tema de obrigatoriedade de fornecimento pelo Estado de medicamentos não contemplados pelo Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais), o STJ determinou a suspensão de todos os processos com objetos análogos consoante a decisão/ Ementa que segue:

EMENTA ADMINISTRATIVO. PROPOSTA DE AFETAÇÃO. Recurso Especial. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDADE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS AO PROGRAMA DE MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS DO SUS. 1. Delimitação da controvérsia: obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria n. 2.982/2009 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais). 2. Recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 (art. 256-I do RISTJ, incluído pela Emenda Regimental 24, de 28/09/2016). (ProAfR no Recurso Especial Nº 1.657.156 - RJ (2017/0025629-7), STJ, Primeira Turma, Relator MINISTRO BENEDITO GONÇALVES, julgado em 26/04/2017)

Ressalta-se que a referida suspensão não tem o condão de criar óbice as decisões judiciais, pois é permitido ao magistrado, segundo os juízos de razoabilidade, proporcionalidade, periculum in mora e fumus boni iuris, conceder liminarmente o fornecimento de medicamentos ou tratamentos médicos.

E por último, talvez o maior impacto de todos, o excesso de ações relacionadas ao Direito à saúde, haja vista que, no último ano foram distribuídas mais de 1 (um) milhão de processos sobre saúde em todo território nacional.

A primeira questão que se levanta é que o número de processos é demasiadamente desproporcional a quantidade de juízes disponíveis para analisar as demandas, o que é uma das principais críticas a judicialização da saúde, pois o mesmo número de juízes também julga, concomitantemente, outros assuntos.

Estes são os últimos números:

NÚMEROS DA JUCIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

NÚMERO DE MAGISTRADOS NO MESMO PERÍODO

ANO

QUANTIDADE DE PROCESSOS

2014

392.921

17.404

2015

854.506

17.589

2016

1.346.931

17.914

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1]

Como pode ser observado, em 2014 tramitavam 392.921 processos versando sobre direito a saúde, em 2015 esse número dobrou, e em 2016 o número foi absurdamente três vezes maior que 2014. Por outro lado, o número de magistrados não chegou a 10% de aumento no mesmo período, tornando inviável a celeridade e a eficiência desses processos.

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Ocorre que, os magistrados não possuem conhecimento técnico para avaliar tratamentos, e muitas das vezes, o mérito não é julgado e o tratamento é concedido por meio de liminares, o que reforça a ideia de que o Judiciário está guiando a política pública de saúde.

Nesses casos de concessão do pedido liminarmente, as partes acabam abandonando o processo após o deferimento da medida, principalmente nos casos de cirurgia ou transferência de hospitais, pois após realizado o procedimento, já não tem mais interesse na ação, entretanto, o processo precisa seguir até a sentença, sendo necessário acionar a fazenda pública para manifestação, mesmo que o pleito já tenha sido efetivado.

Além disso, a Judicialização da Saúde gera dois outros impactos ao Poder Judiciário: a falta de uniformização das decisões judiciais e a dificuldade no cumprimento das sentenças.

Para tanto, serão relatados alguns casos vivenciados na Defensoria Pública da União, unidade Rio de Janeiro, no ano de 2017, a fim de demonstrar na prática esses dois impactos.

2.2.1. PEDIDO DE MEDICAMENTOS NÃO CONSTANTE NA LISTA DO SUS

M.D.M., 81 ANOS, VIÚVA, APOSENTADA, RENDA DE R$ 1.908,00

Diagnóstico: Incontinência urinária.

Pleito: Vesicare (R$ 240,00) e Urocran (R$ 160,00), medicamentos não fornecidos pelo SUS.

Ação distribuída em 23/03/17 com pedido de tutela deferido em 04/04/17, a decisão fundamentou-se na ausência de tratamentos alternativos, na saúde debilitada da autora e na gravidade da doença, determinando o cumprimento em 5 dias por qualquer dos três entes, motivado pela integralidade da assistência do SUS, que é de responsabilidade de todos os entes. Na contestação os entes arguiram: a não padronização pelo SUS, ilegitimidade ad causam, o URUCRAN ser um suplemente e não um medicamento, não sendo obrigatória a sua dispensação e a reserva do possível. A tutela não foi cumprida, sendo determinado a expedição de RPV (Requisição de Pequena Valor) para aquisição direta dos medicamentos para 6 meses de tratamento em 18/02/2018.

Aguardando sentença.

2.2.2. PEDIDO DE TRANSFERÊNCIA HOSPITALAR

J.L.T., 80 ANOS, CASADO, APOSENTADO, RENDA DE R$ 1.200,00.

Diagnóstico: Síndrome Ictérica + Tumor Gástrico (Estomago) de 11com + Tumor Hepático (Fígado) de 5,8cm/possível metástase.

Pleito: Transferência para unidade de tratamento oncológico.

Ação distribuída no mesmo dia do pedido de assistência pelo autor junto a DPU, em 01/12/2017, com pedido de tutela antecipada, na qual restou indeferida pelo juízo. O fundamento foi que o SUS determina que o tratamento de neoplasia deve ocorrer em até 60 dias e não tendo exaurido o prazo da administração pública não há justificativa para o pleito. Alegou ainda a impossibilidade de tratamento imediato de todos os pacientes incidindo a regra da reserva do possível e sob pena de violação ao princípio da isonomia. Vale consignar parte da decisão que diz que “embora o caso do autor seja urgente, como atesta o médico subscritor do laudo, a satisfação da pretensão pelo Poder Judiciário alijaria, necessariamente, o direito de outro paciente, que também aguarda atendimento na fila de espera, cuja vaga teria que ser cedida em favor do demandante, ainda que o quadro clínico do paciente preterido se mostre até mais grave”.

O assistido faleceu em 10/12/17 sem tratamento.

2.2.3. PEDIDO DE TRATAMENTO DE ALTO CUSTO

G.M.B., 13 ANOS, MENOR IMPÚBERE, Renda de R$ 1.800,00.

Diagnóstico: Atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor, síndrome celular, déficit cognitivo e epilepsia de muito difícil controle desde o nascimento.

Pleito: Estimulador Do Nervo Vago – BNS (Custo do dispositivo: R$ 150.000,00)

Ação distribuída em 20/07/17 com pedido de tutela. Em razão do valor da demanda (R$ 150.000,00), foi feita redistribuição para Vara Federal. Na decisão quanto a tutela, foi solicitada análise para incorporação do dispositivo à CONITEC[2], fundamentado no julgamento do RE 657718, na qual o Ministro Barroso propôs a seguinte tese de repercussão geral: “O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, sem eficácia e segurança comprovadas, em nenhuma hipótese. Já em relação a medicamentos não registrados na Anvisa, mas com comprovação de eficácia a segurança, o Estado somente pode ser obrigado a fornecê-los na hipótese de irrazoável mora da agência em apreciar o pedido de registro (prazo superior a 365 dias), quando preenchidos três requisitos: 1º - a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil; 2º - a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e 3º - a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil, As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.” Solicitada perícia médica, houve confirmação da indicação e da necessidade, contudo a Procuradoria Geral do Município solicitou complementação dos quesitos.

Aguarda-se cumprimento.

2.2.4. PEDIDO DE TRATAMENTO NÃO OFERTADO PELO SUS

R.M.B., 59 ANOS, CASADO, DESEMPREGADO, Renda de R$ 0,00.

Diagnóstico: Encefalopatia anóxica em estado vegetativo.

Pleito: internação prolongada com risco de infecção hospitalar necessitando de Home Care para sua liberação.

Ação distribuída em 24/05/17, com pedido de tutela antecipada, indeferido de plano, com a seguinte fundamentação “Para a obtenção da antecipação da tutela, a parte autora deve demonstrar fundado temor de que, enquanto aguarda a tutela definitiva, venham a faltar as circunstâncias de fato favoráveis à própria manifestação final do Poder Judiciário. E isso, somente, pode acontecer quando efetivamente ocorrer o risco de perecimento e destruição, desvio, deteriorização ou qualquer tipo de alteração no estado das pessoas, bens ou provas necessárias para a perfeita e eficiente atuação do provimento final de mérito. Em verdade, a parte autora não demonstra de plano o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação que dê ensejo a uma decisão in limine, sem que seja “ouvida” a parte adversa por não demonstrar provas inequívocas de dano irreparável e por haver alternativa do serviço PADI (Programa de atenção domiciliar)”. Em novembro/2017 a tutela foi revogada, determinando-se o cumprimento do pedido autoral.

O autor continua internado.

  1. NÃO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO APÓS DECISÃO JUDICIAL

S.B.B., 67 anos, solteira, autônoma, Renda de R$ 1.500,00.

Diagnóstico: Hiperparatireodismo secundário a doença renal crônica.

Pleito: Medicamento PARACALCITOL (Custo mensal com o tratamento: R$ 350,00)

Ação distribuída em 07/07/16, com pedido de tutela deferido em 08/07/16, para fornecimento em até cinco dias, sob pena de multa, haja vista a gravidade do caso. Em outubro de 2017, em razão do reiterado descumprimento foi determinado o bloqueio de verbas, o que restou sem êxito. Em novembro/2017, o ilustre magistrado Gilson David Campos, encaminhou os autos para o Ministério Público diante da ineficácia das medidas coercitivas impostas pelo juízo, valendo-se aqui registrar parte de sua decisão “Na realidade, o que se verifica não só na postura do estado, mas na de todos os réus deste processo, é um quadro de profunda desídia para com o Poder Judiciário, que não pode ser admitida sob nenhuma ótica. Infelizmente, o descaso aqui exposto não se restringe a este feito. Muito pelo contrário, é recorrente naqueles que versam sobre o direito à saúde. Como se sabe, são inúmeros os juristas – muitos deles de grande renome – que sustentam a existência de direitos subjetivos individuais à saúde lato sensu, isto é, que qualquer pessoa pode dirigir-se ao Estado-Jurisdição e exigir do Poder Público os medicamentos, insumos e/ou tratamentos médicos de que carece. Entretanto, como dito acima, a experiência deste magistrado mostra que essa posição não tem se revelado eficaz. Os direitos são reconhecidos nas decisões, mas os entes responsabilizados pelo juízo não os concretizam, apesar das sanções que lhes são impostas, o que acaba por gerar um sofrimento à parte autora ainda maior do que o de sua enfermidade: o da frustração de ter em mãos uma decisão favorável, porém infrutífera. Nessa ordem de ideias, fica claro que a situação posta neste feito ganhou contornos cuja apreciação extrapola a competência deste juízo, na medida em que adentram a esfera administrativa e criminal.”

A autora faleceu em 26/04/18, sem nunca ter recebido o medicamento pleiteado.

  1. ANÁLISE DOS CASOS

No primeiro caso, foi concedido tratamento farmacológico, que custa em torno de R$ 4.500,00 anualmente, de forma liminar, por ser considerado urgente, entretanto no segundo caso, que também configurava urgência e com iminente risco de óbito, entendeu não haver direito a ser exigido por não ter transcorrido o prazo administrativo para a transferência, desconsiderando que o autor possivelmente não teria (como não teve) 60 dias para aguardar.  

No terceiro caso, o pedido de tratamento de alto custo não foi deferido liminarmente, vez que se concedido de imediato, oneraria demasiadamente o estado sem a garantia de que o tratamento seria eficaz.

O que se vê é uma grande dificuldade de se ponderar as normas e princípios a serem aplicáveis a um caso concreto. Por um lado, o direito de Administração Pública ter tempo hábil para prestar o serviço, de outro, o direito do autor ter a prestação de saúde efetivada em tempo razoável para possibilidade de cura. O problema é que nem sempre o autor tem o mesmo tempo da administração pública.

Mas o que faz uma decisão ser justa? Para Taruffo, toda decisão implica na combinação dos três critérios: Melhor dizendo; a decisão justa do caso concreto se caracteriza em uma valoração correta da norma jurídica aplicável, uma acertada verificação da versão de fatos da causa e uma valoração também correta do procedimento adotado para chegar à decisão.

Posto isto, deve-se compreender que para se alcançar uma decisão justa no caso concreto, todos os três requisitos devem estar presentes concomitantemente e em um grau elevado. A ausência ou mera insuficiência de apenas um dos requisitos acarreta necessariamente a injustiça da decisão (TARUFFO apud Igor Bimkowski Rossoni, 1997, p.324-325).

Infelizmente, ainda há uma grande dificuldade dos magistrados ponderarem suas decisões, como no segundo caso relatado, pois não se ponderou que a necessidade do autor era iminente, não sendo razoável que se esperasse o prazo administrativo de 60 dias para somente então ajuizar uma ação. Em contrapartida, a decisão que concedeu o medicamento, priorizou o individual sobre o coletivo, mesmo o risco não sendo iminente e havendo tantas outras pessoas que necessitam do mesmo medicamento.

Nos dois últimos casos, se tem uma internação prolongada e um medicamento não fornecido pelos entes federativos, mesmo havendo determinações obrigando a sua efetivação. Pode-se dizer que atualmente este é um dos maiores problemas enfrentados pelos autores das ações: ter uma decisão favorável e não a ver sendo cumprida. São tantas ações obrigando um fazer do estado, que se servem da limitação de recursos financeiros como um cavalo de Tróia, que as decisões judiciais estão sendo desprezadas, mesmo com a aplicação de multas pelo descumprimento.

Nesse sentido, a necessidade de uniformização das decisões e a efetivação das obrigações são urgentíssimas, sendo indispensável à reorganização do sistema de saúde e da administração pública, a fim de que se tenha mais agilidade na avaliação e incorporação de medicamentos na lista do SUS e maior controle do estoque de insumos habituais para que não cheguem a zero. E quanto ao Judiciário, é salutar uma coerência das decisões e uma ponderação de interesses para que se tenha efetivamente protegido o direito a saúde.

2.3. CONFLITOS PRINCIPIOLÓGICOS NA TUTELA DO DIREITO A SAÚDE

Em um primeiro momento, deve-se levar em consideração que o direito ao acesso à justiça é uma das maiores conquistas do Estado Democrático de direito, pois garante aos indivíduos a possibilidade de buscar a efetivação de seus direitos.

Por essa razão, o Poder Judiciário tem nas mãos a grande missão de resolver os conflitos de interesses em tempo adequado à sua natureza, visando à pacificação social e efetividade de suas decisões[3], obtendo ao final, uma decisão de mérito justa para as partes.

Ainda, deve se considerar que não existe – e nunca existirá - no ordenamento jurídico, leis suficientes que abarquem todas as novas lides que ingressam no Judiciário, e por essa razão o Poder passou a basear suas decisões na principiologia, o que gera, consequentemente, a não uniformização das decisões, por não se ter uma norma guiante.

Nesse sentido, por um lado existe o autor da demanda, que pleiteia a tutela de saúde em razão da negativa de prestação pelo Estado, consubstanciado no seu direito de obter deste as mínimas condições de vida, e que ao judicializar obtém, ora uma decisão negativa, contrariando o seu senso justiça quanto ao seu direito à saúde, ora tem uma decisão positiva, mas que não é cumprida.

Por outro lado, o Estado refuta o fato de o Judiciário estar decidindo sem levar em conta que os seus recursos são limitados e as demandas ilimitadas, criando um desvio de recursos para gastos não planejados, ou seja, não incluídos na lei orçamentária.

Sobre isso, corrobora Cambi (2009, apud Conteúdo Jurídico, 2016) dizendo que a concessão individual pela via judicial de um tratamento ou medicamento de alto custo, implica na redesignação de verbas alocadas para atender às necessidades básicas da universalidade dos cidadãos, ao passo que, para promover a saúde de único indivíduo, suprisse a saúde de muitos. (Conteúdo Jurídico[4], 2016)

O fato do Poder Judiciário ter se tornado o instrumento garantidor desse direito, iniciou uma guerra de princípios, porque a judicialização acaba por prejudicar as políticas públicas já existentes, causa desequilíbrio orçamentário e contribui para uma inefetivação do direito à saúde no âmbito coletivo, pois, “primeiro o sistema dever ser igualmente acessível a todos; segundo ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos” (CAPELLETTI, 1998).

Em contrapartida, tem sido a única porta de solução para que os cidadãos obtenham acesso a saúde, como o fornecimento de medicamentos, que mesmo listados no SUS não tem para dispensação, a realização de cirurgias de urgências, pela falta de leitos e pela morosidade administrativa em realizar transferências, e pela limitação da lista do SUS que não oferece todos os tratamentos que o individuo possa necessitar.

Nesse passo, muito se discutiu q respeito das decisões emanadas pelo judiciário “obrigando” a prestação de serviços relacionados a saúde, invocando o princípio da separação dos poderes, que é tão relevante que nem mesmo o poder constituinte reformador poderá exclui-lo.

Interessante citar a lição de Walber de Moura Agra:

A separação de poderes tem como escopo evitar o surgimento do absolutismo, que representaria a morte da democracia e dos direitos fundamentais.57 Assim, surge a teorização de que cada órgão de poder realiza uma atividade, especializando-se nela de forma a melhorar a sua eficácia. A concentração de poder tende ao arbítrio; com a sua repartição, em que um poder limita o outro, a fiscalização do cumprimento dos parâmetros legais pode ser realizada, evitando-se a quebra dos princípios democráticos. (2018, p. 160)

Contudo, a suposta “invasão” do Poder Judiciário torna-se estritamente necessária, tendo em vista o descaso do Poder Executivo ou do Poder Legislativo e a ineficiência da máquina pública para a promoção de políticas que atendam a saúde da população.

A discussão chegou até o Supremo Tribunal Federal que entendeu pela inexistência de violação ao princípio da separação de poderes, porquanto o Judiciário não está inovando a ordem jurídica, ou seja, não está criando uma norma/dever ao executivo, mas está fazendo cumprir as normas pragmáticas originárias da constituição, na qual o Judiciário tem o poder-dever de zelar.

Outra relevante discussão que é levantada a respeito dos limites das decisões judiciais que obrigam um fazer do Estado, que é a colisão entre o mínimo existencial e a cláusula da reserva do possível. O primeiro é uma garantia de que a pessoa terá o mínimo de recursos, oportunidades e possibilidades de uma vida digna, quanto que o segundo pode ser conceituado como um limite a implementação de alguns direitos, em razão da falta de recursos financeiros.

Nesse diapasão, o mínimo existencial deve ser entendido como prioridade e se os meios financeiros não são ilimitados, os recursos disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição (Barcellos, 2002, p. 268)

Em outras palavras, os legisladores e os gestores da Administração Pública realizam escolhas alocativas de recursos para a implementação de políticas públicas referentes ao direito fundamental à saúde, tendo em vista a impossibilidade financeira de atendimento a todas as demandas atuais, sendo que essa escolha está inserida no âmbito de sua discricionariedade, mas deve estar atenta à garantia de um mínimo existencial à população.

Se, contudo, for constatado que o Estado não cumpriu com seu dever legal de implementação de políticas públicas efetivas e úteis, mesmo sabendo que inevitavelmente elas não contemplarão todos os anseios da sociedade, o Poder Judiciário poderá agir de modo a forçar o legislador ou o administrador público a desempenhar seu papel institucional, em busca dos fins colimados pela Constituição Federal.

Ocorre que o Estado passou a se valer de forma indiscriminada de tal justificativa e a cláusula passou a ser usada como cavalo de troia para todas as abstenções estatais, esvaziando o preceito constitucional que assegura a aplicação dos direitos sociais.

A alegação usada é de que recursos destinados à área de saúde são limitados e utilizados de acordo com um complexo sistema gerencial de que participam as três esferas da administração, deste modo, o deferimento liminar ou a sua perpetuação, inevitavelmente, acarretará a falta de recursos para o custeio de outras unidades de saúde.

Nos dizeres do Ministro Luís Roberto Barroso:

Talvez a crítica mais frequente seja a financeira, formulada sob a denominação de “reserva do possível”47. Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais48. Em diversos julgados mais antigos, essa linha de argumentação predominava. Em 1994, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao negar a concessão de medida cautelar a paciente portador de insuficiência renal, alegou o alto custo do medicamento, a impossibilidade de privilegiar um doente em detrimento de outros, bem como a impropriedade de o Judiciário “imiscuir-se na política de administração pública”. (2007, p.24)

A par do exposto, infere-se que a atuação pública por intermédio das políticas públicas de saúde deve ser otimizada para que os objetivos sociais sejam concretizados (devem-se racionalizar as ações, atendendo ao maior número de pessoas, com a menor quantidade de recursos, no menor espaço de tempo; analisar custo-benefício dos medicamentos a serem fornecidos, dentre outros).

Merece destaque ainda, o princípio da integralidade que está intimamente ligado ao mínimo existencial, posto que, o primeiro rege-se pela estruturação das políticas de saúde, colocando-se em prática uma das garantias trazidas pelo conceito de mínimo existencial, qual sejam as condições básica de vida.

O princípio da integralidade, como uma das diretrizes estampadas no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal[5], também deve conceituado como a garantia de um tratamento respeitoso, digno e com qualidade. Por isso, este valor paira como uma orientação geral nos serviços de saúde, já que o Estado tem o dever de oferecer um “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”, como oficializou a Carta Magna.

A fim de corroborar com tal entendimento, Reynaldo Mapelli Junior, Doutor em Ciências e Promotor de Justiça do Estado de SP, aduz:

Em termos principiológicos, aliás, embora a CF não tenha definido a integralidade, preferindo apenas destacar que o atendimento integral deve conter “prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (art. 98, II), atrelou-se a outros princípios do SUS, principalmente a organização dos serviços (caput do mesmo artigo), a “descentralização, com direção única em cada esfera de governo” e a “participação da comunidade” (incisos I e II). A integralidade, por isso mesmo, não constituiu um imperativo genérico, absoluto e sem limites legais, mas se insere na organização sistêmica do SUS, com seus protocolos clínicos, tabelas, listas oficiais, formulados como programas de ação governamental fundamentados na discricionariedade administrativa técnica e no poder de polícia sanitário, como se percebe claramente na redação do art. 198 da Constituição Federal. (2015, p. 125)

Em termos gerais, o Estado deve estabelecer um conjunto de ações que vão desde a prevenção até a assistência curativa, nos diversos níveis de complexidade, evitando o retrocesso social das políticas públicas. Contudo, não se deve olvidar que o princípio da integralidade não é uma carta branca para todo e qualquer tratamento incluindo os tratamentos descolados de médicos privados, mas é uma orientação para o SUS organizar, planejar, padronizar e efetivar ações de saúde.

Por derradeiro, e não menos importante, deve-se trazer à baila o princípio da isonomia, como um dos baluartes dos direitos fundamentais, disposto no artigo 5º da Carta Magna:

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

O fundamento principal da isonomia é a proibição aos privilégios e distinções desproporcionais. Como ditado por Aristóteles – e disseminado pelo Estado Democrático de Direito – a isonomia é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.

Desta forma, cabe ao Poder Legislativo inserir no ordenamento jurídico brasileiro, leis que efetivamente corrijam distorções sociais históricas, e que o Executivo propicie através de políticas públicas, instrumentos capazes de materializar a igualdade plena no seio social.

As discussões travadas em torno do princípio da isonomia, mormente ao direito a saúde, têm ocupado lugar de destaque entre aqueles que se preocupam não apenas com o direito no seu aspecto formal, mas também e principalmente com seu aspecto de Justiça.

Isto porque, tal como prevista na Carta de 1988, a isonomia é mais do que um direito, é um princípio, uma regra de ouro, que serve de diretriz interpretativa para as demais normas constitucionais (BULOS, apud SALVADOR, 2017), sendo necessário identificar as pessoas que seriam consideradas iguais, daquelas que seriam consideradas desiguais para, a partir daí outorgar-lhes tratamento diferente.

Por todo o exposto, o que se deve buscar é o meio termo entre a eficiência da prestação de serviços públicos e a garantia constitucional do direito à saúde a todos, sempre observando os limites da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a satisfazer os interesses individuais em harmonia com o bem-estar da coletividade.

2.4. A JUDICIALIZAÇÃO COMO AMEAÇA AO DIREITO IGUALITÁRIO DE ACESSO A SAÚDE

Como já esposado, é preciso avaliar o assustador cenário da Judicialização, porquanto não é razoável que o Judiciário seja um dos principais responsáveis pela concretização do Direito à saúde. De um lado, entende-se ser inadmissível que o Judiciário interfira nas políticas públicas de forma desenfreada, de outro, é a saída mais viável para se obter tratamento médico quando este lhe é negado por quem deveria prestá-lo.

De pronto, se observa de um lado o direito à saúde, composto por cuidados relativos à proteção, à promoção e à recuperação, acessíveis universalmente e em qualquer nível de atenção – primária, secundária e terciária –, o que se compreende por atenção integral; e de outro, os limites intrínsecos da organização de recursos orçamentários e financeiros para a realização da política pública. Para ambos os lados há leis. (CONASS, 2015).

Embora possa parecer que a judicialização acentue a desigualdade no acesso à saúde no Brasil, em razão dos casos dos medicamentos obtidos por meio de processo judicial, deve-se ponderar que o cenário atual não é favorável a tese da “reserva do possível” e da violação ao princípio da isonomia.

Isto porque, teoricamente, se duas pessoas igualmente enfermas recebem tratamento diferenciado há grave lesão à isonomia, haja vista que os indivíduos que se encontrem em uma mesma categoria, no caso os acometidos de doença, devem ser tratados do mesmo modo. Em outros termos, para garantia da igualdade, ao Poder Judiciário caberia estabelecer como um determinado indivíduo enfermo deve ser tratado, depois, garantir que o tratamento igual seja reservado a todos os indivíduos que se encontrem em situação semelhante de enfermidade.

Primeiramente deve-se ponderar a obrigatoriedade do SUS em prestar assistência médica integral, ou seja, ter uma rede de atendimento em todos os níveis de tratamento, e pela mutualidade que rege a relação cidadão-estado, a negativa da prestação dos serviços de saúde afronta diretamente a lei, logo, atraindo a competência do judiciário de exigi-lo.

Entretanto, como nenhum direito é absoluto, caso o Poder Público prove de forma cabal não ter condições orçamentárias, não se poderá razoavelmente exigir, considerada a restrição material existente, a imediata efetivação do comando constitucional, cabendo ao Judiciário auferir a razoabilidade da exigência de concretização.

No mais, deve também ser analisado pelo Poder Judiciário se a concretização de um direito privilegiará toda a coletividade ou somente um indivíduo. Neste sentido, o STF já negou, por exemplo, tratamento de que determinado indivíduo necessitava, em razão de sua onerosidade, para não comprometer o orçamento e o benefício de outros tantos indivíduos na prestação dos serviços de saúde. (VASCONCELOS, 2017, p. 392)

Isso evidencia o conflito existente entre o mínimo existencial e a reserva do possível, ao passo que, não sendo excessivamente oneroso aos cofres públicos, e na ausência de prova cabal que demostra a insuficiência de recursos, merece respeito o direito de se ter condições mínimas de vida ou mesmo um prolongamento dela.

Por fim, apesar do embate sobre a violação ao princípio da separação dos poderes ter sido superada, não se pode olvidar que ainda há uma grande discussão envolvida: se há ou não violação ao princípio da isonomia, já que seu fundamento é a proibição aos privilégios e distinções desproporcionais.

As discussões travadas em torno do principio da isonomia, mormente ao direito a saúde, tem ocupado lugar de destaque entre aqueles que se preocupam não apenas com o direito no aspecto formal, mas também e principalmente com seus aspectos de Justiça. Isso porque é necessário identificar as pessoas que seriam consideradas iguais, daquelas que seriam consideradas desiguais, para a partir daí outorga-lhes tratamento diferente.

Contudo, é inegável as condições precárias que os cidadãos vivem: acordam cedo atrás de um número para fazer uma consulta (quando tem médico), ficam meses aguardando uma cirurgia (quando não morrem antes), brigam pela realização de um exame, aguardam a abertura de leitos e vagas em hospitais. Neste cenário, tem aqueles que aguardam na fila, orientados pelos agentes das unidades de saúde e ficam ali esperando. Todos estão esperando. Por outro lado, aqueles que se socorrem do judiciário buscando a efetivação de um direito.

A visão que se tem é que quando essa parcela se socorre do Judiciário e ele concede o seu pedido, é que estaria dando preferência a necessidade de uma pessoa em detrimento a outra. Contudo, quando o pleito é negado, surge um sentimento de desumanidade, ao deixar que a pessoa aguarde que a situação se resolva pelos órgãos públicos ou que a crise seja contida, o que aconteceu no caso do autor com metástase que não poderia esperar a solução pela via administrativa, ou seja, foi lhe negado o direito de sobrevida.

Infelizmente a judicialização da saúde é fruto de um sistema mal gerido, e a cada ano que passa, aumentam os impactos que ela causa no orçamento dos entes públicos, pois sempre haverá uma conta a ser paga. E ainda, gera uma grande colisão de conflitos: a obrigatoriedade de um tratamento isonômico, o caráter de impessoalidade que se reveste as prestações de serviço público,

É por isso que judicializar a saúde não parece ser a melhor solução para o problema que atinge o sistema de saúde que se instalou no Brasil, vez que sobrepõe o direito individual sobre o coletivo e traz inúmeros outros impactos a sociedade, tanto na continuidade do SUS quanto na operacionalização do Judiciário. Reiteradas decisões concordam que não há violação ao principio da isonomia, contudo, na prática não é o que se observa, pois constantemente pessoas morrem esperando tratamento médico, enquanto outras se socorrem do judiciário e “burlam” essa espera.

Cabe ressaltar que não se trata de negar a sobrevivência ao enfermo que dependa deste ou da tratamento médico para manter-se vivo, mas atentar-se para um eminente colapso caso a efetivação do direito a saúde continue a se resolver em alta escala pelas decisões judiciais que, em âmbito individual, destinam recursos públicos significativos a particulares e não sanam o problema da fragilidade da saúde no Brasil.

Entretanto, deve-se considerar que mesmo que um da se reconheça uma real violação ao princípio da isonomia, hoje, a judicialização tem sido o único caminho de esperança para se ter resguardado o direito de preservação da vida. O que era pra ser a última via de solução de litígios, tem sido a primeira e a única a solucionar os casos – quando as decisões são cumpridas.

Por derradeiro, é importante refletir que quanto mais pessoas ingressarem em juízo, e quanto mais pessoas conseguirem seus intentos, mais relevância ganhará a atuação dos tribunais em áreas de atuação do administrador e do legislador, que continuarão a se atropelar em suas responsabilidades, sempre se respaldando no cavalo de troia que é o princípio da reserva do possível.

Neste diapasão, é preciso buscar um equilíbrio entre a garantia do direito a saúde constitucionalmente previsto e a eficiência da prestação de serviços dispensados pela administração publica, de forma a satisfazer os interesses individuais sem se sobrepor ao bem-estar da coletividade, valorizando o principio da isonomia.

Ademais, é importante que o Poder Público passe por uma completa reestruturação, organizando-se para que os problemas relacionados a prestação de assistência a saúde sejam sanados, a fim de evitar que esse tipo de demanda somente chegue ao judiciário em casos raros e atípicos.

Por fim, cabe ao Judiciário identificar as deficiências na prestação das políticas públicas, e principalmente a falta de cumprimento das decisões judiciais, deve tomar medidas rigorosas a fim de coibir a ineficiências dos órgãos públicos, noticiando o fato ao Ministério Público e a Defensoria Pública, para que os mesmos utilizem-se dos instrumentos previstos constitucionalmente, a fim de buscar a isonomia de tratamento entre as pessoas enfermas.

3. CONCLUSÃO

 O presente trabalho teve como objetivo fazer um estudo sobre a Judicialização da saúde no Brasil, buscando analisar os aspectos em torno do fenômeno, mais precisamente quanto aos princípios envolvidos no direito a saúde e o possível conflito existente entre eles e ainda os impactos gerados pela grande demanda de ações relacionadas ao direito a saúde.

Nesse sentido, foi possível conceituar a saúde como direito fundamental inerente ao ser humano, que ganhou status de direito social de segunda dimensão, sendo entendido como uma liberdade positiva do Estado, na qual tem o dever de prestar assistência integral a todos.

Nesse viés, partindo-se da premissa de que mesmo o Estado sendo obrigado a prestar essa assistência através de políticas públicas, o que se verifica na prática é uma omissão do Poder Público e um descrédito por partes da sociedade, que, por conseguinte, originou a Judicialização.

A pesquisa também abordou os princípios correlatos ao direito a saúde, abordando os principais institutos suscitados pelas partes (autor que pleiteia uma obrigação do Estado, enquanto esse tenta se eximir de fazê-lo). Para tanto, foi apontado o princípio da separação dos poderes, na qual o STF se posicionou não haver violação quando o Judiciário decide questões que são típicas dos outros poderes, quando estes não o fazem voluntariamente.

Foi analisado também o conflito existente entre o mínimo existencial e a reserva do possível, quando o primeiro busca garantir que o indivíduo tenha o mínimo de condições para sobreviver, o que inclui não só o direito a saúde, mas também o direito a moradia, educação, entre outros, e o segundo urge para respaldar o Estado quando é preciso negar determinada prestação, tendo em vista que os recursos são limitados e a utilização desenfreada pode acarretar na desestruturação financeiro do poder estatal. Contudo, é de bom alvitre mencionar que o referido princípio não tem o condão de ser um cavalo de Tróia para o estado se eximir de toda e qualquer obrigação, o princípio somente será aceito nos casos em que o Estado provar que não tem meios para realizar as obrigações determinadas.

Adiante, demonstrou-se os impactos da Judicialização, como o excesso de processos que superlotam os tribunais sem proporcionalidade ao número de magistrados disponíveis para julgá-los, problema este levantado pelo próprio judiciário. Outro ponto abordado são as decisões divergentes dos magistrados, trazendo a premente necessidade de uniformização das decisões, levando em consideração não só a (in) disponibilidade de tratamento pelo SUS, mas analisando cada caso concreto individualmente. 

A fim de demonstrar a judicialização na prática, foram incluídos casos reais de demandas sobre direito a saúde, como fornecimento de medicamento e transferência para UTI, nas quais foram feitas ponderações a respeito das decisões tomadas em cada causa de pedir, como também a motivação da decisão, corroborando assim a  necessidade de uniformização ou orientação dos juízes, que também não detém de conhecimento médico para analisar os possíveis casos emergenciais.

Por derradeiro, buscou-se analisar se a judicialização da saúde constitui uma violação ao princípio da isonomia, que consiste no direito de ser tratado como igual, sem privilégios, tendo em vista que o acionamento do judiciário nas questões públicas, que deveriam ser resolvidas pelos órgãos administrativos, e em virtude disso traz um tratamento desigual, ao fornecer tratamento para os que judicializam, enquanto os demais ficam a mercê do administração pública.

Bem verdade que o acesso a justiça não pode ser negado, e que pelo princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional a todos deve ser concedido o direito de peticionar. Por um lado, a desídia que o Estado reiteradamente prática, justifica a judicialização, pois o que constantemente se vê são pessoas morrendo por falta de tratamento, leitos de hospitais e medicamentos. Por outro lado, a retirada de recursos do estado a fim de cumprir as decisões, traz uma maior dificuldade do estado realizar seu planejamento, por estar vinculado a um plano orçamentário, prejudicando o atendimento a toda uma coletividade.

É por todo exposto, que surge a necessidade de que os órgãos como o Ministério Pública e a Defensoria Pública se unam, por meio de uma ação civil pública ou ação coletiva de direitos humanos, na medida em que a atual situação não pode mais se estender, sob o risco de inviabilizar o Poder Judiciário e onerar demasiadamente o Poder Público.

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BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, In: Interesse Público, Belo Horizonte: Fórum, v. 9, n. 46, nov./dez. 2007, pág, 12.

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www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

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LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988: caracterização e efetividade. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 1, jun. 2004. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao001/ alexandre_lippel.htm>. Acesso em: 13/09/2018

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VASCONCELLOS, Clever. Curso de direito constitucional. 4. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017


[1] http://www.cnj.jus.br/

[2] Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.

[3] http://www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/institucional

[4] http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-tutela-judicial-do-direito-a-saude-sob-o-prisma-da-isonomia,57058.html

[5] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

        II - Atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

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Sobre a autora
Daniele Ferreira

Olá, meu nome é Daniele Ferreira, advogada, pós-graduanda em Direito de Família, amante do Direito e das pessoas que precisam dele.

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