3) Parte Geral:
3.1) As regras de conflitos:
3.1.1) Conceito, «modus operandi» e elementos estruturais da regra de conflitos:
O DIP actua por adjudicação ou adstrição de tarefas normativas aos vários sistemas de direito conectados com as diferentes situações interindividuais da vida internacional.
O fenómeno das situações plurilocalizadas, ou seja, das situações conexas com diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, compele à elaboração de normas ― estas normas são as comumente chamadas «regras de conflitos». É a estas regras de conflitos que cabe a tarefa de coordenar essas diferentes ordens jurídicas na sua aplicação, de modo a que cada aspecto, perfil ou efeito da relação jurídica concreta só por uma dessas ordens ou leis venha a ser valorada.
A cada regra de conflitos cabe delimitar um sector ou matéria jurídica, uma questão ou núcleo de questões de direito, e indicar, de entre os elementos da factualidade concreta, aquele por intermédio do qual se há-de apurar a lei aplicável em tal domínio. A norma bilateral obedece a um esquema lógico: as questões jurídicas pertencentes à categoria X serão resolvidas em conformidade com os preceitos a que a situação concreta estiver ligada através de uma conexão da espécie Y.
Limitam-se as regras de conflitos a indicar-nos as ordens jurídicas estaduais que hão-de reger essas relações. A sua estatuição traduz-se numa consequência jurídica «sui generis» que consiste em dirimir um conflito de leis; e fá-lo destacando um elemento da situação de facto susceptível de apontar para uma (e apenas para uma) das leis em concurso («leis interessadas»).
Seu específico «modus operandi» consiste em eleger, dentre os elementos pertencentes à estrutura das situações a regular, aquele por cujo intermédio haverá de ser encontrada a lei a aplicar no âmbito correspondente a determinado sector ou matéria jurídica, e determinada questão ou núcleo de questões de direito.
A norma de conflitos é constituída por três partes:
a)o conceito quadro (objecto da conexão);
b)o elemento de conexão (elemento que estabelece a conexão); e
c)a consequência jurídica.
O primeiro, ou seja, o objecto da conexão ou objecto de referência da norma, é definido por meio de um conceito técnico-jurídico ― o conceito-quadro da regra de conflitos ― designativo de determinada matéria, instituto ou categoria normativa. É no âmbito por ele traçado que opera a conexão escolhida pela norma, sendo esta conexão representada por um dos elementos ou circunstâncias da factualidade concreta.
Ao segundo (ao elemento de conexão) cabe a «tarefa» de localizar a situação jurídica num espaço legislativo determinado; cabe-lhe a tarefa de «situar» a situação jurídica no quadro de um certo sistema de direito. Por outras palavras, a norma de conflitos desempenha a sua missão peculiar deferindo certa matéria ou sector de regulamentação ao sistema nacional que for designado, em concreto, por certo elemento da situação de facto ― funcionando como elemento referenciador da lei cujos preceitos materiais são chamados a intervir, com a exclusão de quaisquer outros, no âmbito demarcado pelo conceito quadro ― e é a este elemento que costuma chamar-se de «elemento de conexão».
Por fim, a consequência jurídica consiste na declaração de aplicabilidade de preceitos jurídicos materiais da lei que for designada pelo elemento de conexão. Por outras palavras, a consequência jurídica da regra de conflitos consiste na atribuição de competência à lei que, em concreto, for designada pela conexão relevante ― a lei aplicável à questão concreta a resolver será aquela com a qual a relação «sub judice» estiver em contacto através do elemento de conexão considerado decisivo pela regra de conflitos.
Assim sendo, se considerarmos, por exemplo, o artigo 45º do nosso Código Civil:
- Conceito quadro: «responsabilidade extracontratual»;
- Elemento de conexão: «lugar onde ocorreu o facto danoso»;
- Consequência jurídica: «aplicação da lei do ordenamento jurídico do Estado onde ocorreu o facto danoso».
Considerando agora o artigo 46º, n.º 1 do mesmo diploma legal:
- Conceito quadro: «posse, propriedade e detenção de direitos reais»;
- Elemento de conexão: lugar onde as coisas se situam «lex rei sitae»;
- Consequência jurídica: declaração de que, em tal domínio, a lei competente é a «lex rei sitae».
A norma de conflitos bilateral enuncia a sua consequência jurídica em termos absolutamente genéricos. A uma norma de conflitos não corresponde uma única consequência jurídica, mas tantas quanto forem os ordenamentos jurídicos existentes. Para dirimir as questões de direito pertencentes ao âmbito do instituto X, qualquer lei pode ser competente, contudo, para dirimir as questões desse tipo que se levantarem nas diferentes situações concretas da vida, só será chamada a lei com a qual a situação a regular estiver ligada através de uma conexão do tipo Y.
3.1.1.1) Conceito-quadro:
3.1.1.1.1) Noção e natureza:
É o conceito-quadro que, na regra de conflitos, designa a matéria, questão jurídica ou sector normativo relativamente ao qual é decisivo o elemento de conexão por essa mesma regra escolhido.
Uma qualquer norma de direito é constituída por dois elementos: a hipótese e a estatuição. O conceito-quadro seria aquilo que, numa norma jurídica comum, se designaria por «hipótese da norma». Mas a hipótese da regra de conflitos, diferentemente do que ocorre com uma norma de direito material, não é descrita em termos factuais. Ao contrário, enuncia-se uma hipótese que resulta sempre de conceitos técnico-jurídicos aptos a receber uma multiplicidade de conteúdos e de extensão muito variável.
Em qualquer regra de conflitos faz-se referência a um instituto jurídico (a uma figura jurídica) ― v.g.: casamento, filiação, estado, capacidade, etc.
O conceito-quadro é, em suma, um conceito técnico-jurídico através do qual o legislador define o objecto de conexão, ou recorta a categoria normativa que operará a conexão escolhida.
3.1.1.1.2) Objecto:
Reinam grandes divergências na doutrina quanto à natureza do objecto do conceito-quadro, isto é, do objecto imediato de referência da norma de conflitos (quanto ao conteúdo de categorias de conexão):
a)SAVIGNY entende que é a relação jurídica que constitui o objecto designado pelo conceito-quadro.
VON BAR contesta um tal entendimento e ensina que a qualificação de uma relação da vida como relação jurídica só pode fazer-se com base numa lei determinada, à qual só é possível chegar justamente através da norma de conflitos, assim sendo, entende esse autor que não se pode partir do conceito de relação jurídica, pois, então, estar-se-ia a cair num círculo vicioso. Precisando tal posição, é interessante referir que, segundo ENNECERUS – KIPP – WOLFF, a relação jurídica é uma relação da vida ordenada pelo direito. LARENZ, por sua vez, ensina que importa distinguir entre relação da vida («Lebensverhältnis»), que constitui o objecto da ordenação normativa, e relação jurídica («Rechtsverhältnis»), entendida como a regulamentação daquela relação.
b)AGO, por sua vez, entende que o objecto de conexão é uma pura relação ou situação da vida, isto é, puros factos ainda não juridicamente qualificados.
Uma tal concepção, contudo, não está, também ela, imune de críticas. Destarte, segundo WENGLER, o objecto da conexão não pode deixar de ser um conteúdo jurídico. Não é a puros factos que a regra de conflitos se refere. Os mesmos factos podem ser apreciados segundo perspectivas ou pontos de vista diferentes, ou seja, no quadro e para efeitos de questões jurídicas distintas, às quais correspondam outras tantas normas de DIP (v.g.: nascimento de um indivíduo → pode ser apreciado por sistemas jurídicos diversos, consoante se trate de um problema relativo ao começo de personalidade jurídica, relações do filho ilegítimo com os pais, etc.).
c)ZITELMANN entende que o conceito-quadro da norma de conflitos se refere a uma questão jurídico-privada.
Reparos a esta teoria: uma questão jurídica determinada só se põe, dizem alguns autores, em face de um ordenamento jurídico também determinado, já que diferentes ordenamentos jurídicos podem ver na mesma situação de facto questões jurídicas diferentes.
d)O conceito-quadro designa e circunscreve um certo grupo, classe ou categoria de normas materiais.
Supondo uma qualquer situação da vida ligada a um ordenamento jurídico através de certo elemento de conexão, a aplicabilidade de normas que, nesse ordenamento jurídico, regulam tal situação depende delas terem certa natureza ou pertencerem a certa categoria.
As normas materiais, assim, constituiriam o objecto de apreciação para o juízo de aplicabilidade da norma de conflitos e formariam o conteúdo ou objecto do conceito-quadro (é esta a posição por nós defendida).
Entre a teoria proposta por ZITELLMANN e esta última teoria por nós defendida não existem, é certo, diferenças essenciais:
1.se por conceito-quadro se entende o enunciado de uma questão ou conjunto de questões de direito a resolver pelo sistema com o qual a situação a regular tiver o tipo de contacto erigido em factor de conexão, então é às respostas ou soluções dadas a esses problemas pelo sistema jurídico assim designado que se refere, em última análise, a regra de conflitos;
2.esta é a visão que melhor se ajusta à finalidade que atribuímos à norma de conflitos e respectivo conceito-quadro, ou seja, a norma de conflitos existe para realizar uma tarefa de coordenação entre as várias ordens jurídicas conectadas com a situação da vida a regular, de modo a evitar a apreciação de uma mesma questão jurídica vir a caber a diferentes leis ― as normas de conflitos são normas de segundo grau que não nos dizem quais são os factos materialmente relevantes, mas qual das normas antinómicas deve prevalecer sobre a outra (são normas sobre normas);
3.o objecto do direito de conflitos considerado globalmente é diferente do objecto da norma de conflitos individual: o direito de conflitos, olhado como um todo, visa, ainda que por via indirecta, a regulamentação das relações privadas de carácter internacional; a norma, por sua vez, é o instrumento adequado à realização dos fins a que o DIP se propõe (se o concebermos como dirigido a estabelecer os pressupostos de aplicabilidade de dada categoria de preceitos da lei concretamente designada pelo elemento de conexão) ― é, portanto, a normas materiais que o conceito-quadro da norma de conflitos se refere;
4.a norma de conflitos unilateral não pode deixar de entender-se como referida a determinada categoria de preceitos ou leis materiais do mesmo ordenamento a que pertence, único de cuja aplicação especial se ocupa (v.g.: a alínea 3ª do art. 3º do Código Civil francês estabelece que as leis concernentes ao estado e capacidade aplica-se aos franceses, mesmo que estes residam no estrangeiro). Decide-se, portanto, aqui, aceitar os limites de aplicabilidade a dada categoria de regras da legislação francesa → regras que, quando aplicáveis, aplicam-se às situações de facto que se ajustarem à sua hipótese; mas a regra de conflitos não pretende submeter essas situações concretas da vida.
O mesmo se diga quanto à normas de conflitos bilaterais, pois todas têm uma face voltada para o ordenamento jurídico interno. Estas normas bilaterais podem decompor-se em várias normas unilaterais → dificilmente se compreenderia que a estrutura lógica dessas várias normas unilaterais não fosse uniforme.
Concluindo, o sentido da norma de conflitos é apontar para aquela circunstância que, quando se realiza, tornará aplicáveis determinados preceitos materiais de dada legislação aos factos que esses mesmos preceitos contemplam e pretendem disciplinar.
5.Como norma que unicamente define o critério de aplicabilidade doutras normas, o objecto das normas de conflitos só pode ser as normas materiais.
Qualquer que seja a perspectiva de que se tenha partido, é sempre com regras materiais que se vem a deparar. São estas o verdadeiro objecto de referência da norma de conflitos: o «quid» que importa subsumir ao conceito-quadro da norma.
3.1.1.1.3) Função:
O conceito-quadro surge para designar ou circunscrever o tipo de matérias ou de questões jurídicas dentro do qual é relevante ou decisivo, para a fixação da lei competente, o elemento de conexão a que a mesma regra de conflitos se refere.
Há-de, pois, reportar-se a essas matérias ou questões jurídicas.
O conceito-quadro tem, pois, a função de definir a tarefa normativa de que há-de incumbir-se a lei indicada pelo elemento de conexão e que preencherá a esfera de competência dessa lei. Tem uma função determinativa de competência do ordenamento jurídico designado; isso significa que o ordenamento jurídico competente se aplica, por exemplo, à tutela.
3.1.1.2) O elemento de conexão:
3.1.1.2.1) Noção e natureza:
O expediente técnico através do qual a regra de conflitos opera a designação do direito aplicável, consiste na individualização de um dos elementos que estabelecem a ligação dos factos ou situações plurilocalizadas com as leis de diferentes Estados. Será competente a lei com a qual a relação estiver em contacto justamente por intermédio desse elemento ― elemento de conexão.
O elemento de conexão é o elemento da situação de facto a que podemos imputar a consequência jurídica específica do direito de conflitos, ou seja, é o elemento da situação de facto susceptível de apontar para uma (e apenas uma) das leis em concurso («leis interessadas»).
Já a natureza do elemento de conexão é variável:
a)lei atende aos sujeitos da relação → factor decisivo:
- à sua vontade ― lei escolhida pelas partes (convenção das partes → princípio da autonomia da vontade);
- à sua ligação com certo Estado ― pelo domicílio → «lex domicili»;
― pela nacionalidade.
b)a designação do direito aplicável cabe a um elemento de carácter real:
- objecto material sobre que verse a relação jurídica;
- acto ou facto pelo que se constitui, modifica ou extingue.
O factor decisivo da competência será:
1.a situação da coisa ― «lex rei sitae» (v.g.: direitos reais);
2.lugar da celebração do negócio jurídico ― «lex loci actus»;
3.lugar da prática do facto ilícito ― «lex loci delicti commissi»;
4.lugar da execução da obrigação.
a)por vezes, o peso decisivo incide no elemento «garantia» da relação jurídica, ou seja, a acção judiciária, a qual tem de ser proposta perante o tribunal de um determinado Estado ― competência da «lex fori».
Direito do foro aplicável ― tramitação do processo
― fundo da causa.
Artigo 348º, n.º 3 → quando é possível averiguar o conteúdo do direito estrangeiro.
Artigo 23º, n.º 2 → quando não se consiga determinar o elemento de facto ou de direito de que depende a designação da lei primária aplicável, será designada como competente a lei subsidiariamente indicada.
Em suma, os elementos de conexão potencialmente decisivos para efeitos de DIP são pessoais e reais (ou subjectivos e objectivos respectivamente).
As conexões consistem fundamentalmente nas relações ou ligações existentes entre as pessoas, objectos ou factos e as ordens jurídicas estaduais.
Nota: também pode funcionar como elemento de conexão o nexo de interligação com uma outra ordem jurídica.