Resumo: O superendividamento é um problema que atinge um número expressivo de pessoas em âmbito mundial, não sendo um fenômeno alheio às famílias brasileiras. Dentre os vários fatores responsáveis por este endividamento em massa, destaca-se uma prática muito comum na Sociedade de Consumo atual, qual seja a concessão de crédito desmedida e irresponsável pelas instituições financeiras, atrelado ao estímulo à aquisição de produtos e serviços, tendo como principal ferramenta a publicidade abusiva e enganosa. Estas práticas acabam levando o consumidor a uma condição onde grande parte ou toda a sua renda é destinada ao pagamento de dívidas, ao ponto de afetar o mínimo existencial, obstando a pessoa endividada de fatores inerentes à vida com dignidade, como alimentação, saúde e lazer. Ao analisar quais as bases jurídicas existentes acerca da proteção ao consumidor superendividado, verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor é ineficaz quanto à tutela dos casos em que se caracteriza este fenômeno, o que, por sua vez, torna ineficaz a previsão constitucional do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Devido à tamanha proporção deste fenômeno, alguns países já criaram mecanismos específicos de combate à publicidade abusiva e enganosa e o controle à concessão desmedida de crédito, prevenindo casos futuros e garantindo o tratamento dos já existentes. No Brasil, encontra-se em trâmite Projeto de Lei n° 3515/2015, que traz alterações ao CDC que estabeleceriam medidas eficazes de prevenção e tratamento ao superendividamento. Busca-se, portanto, analisar as nuances desse fenômeno, apontando causas, consequências e soluções, avaliando o modelo francês de prevenção e tratamento, comparando-o brevemente à legislação pátria, estudando também a proposta brasileira.
Palavras-chave: Superendividamento. Dignidade da pessoa humana. Concessão de crédito. Projeto de Lei nº 3515/2015.
Sumário: Introdução; 1. O fenômeno do superendividamento: proteção jurídica constitucional e bases teóricas; 1.1. Fundamento constitucional da defesa do consumidor; 1.2. Origem e conceito do superendividamento; 1.3. Pressupostos para caracterização e classificação do Superendividamento; 1.4. Causas e efeitos do Superendividamento; 2. O tratamento do consumidor superendividado e a tutela da dignidade da pessoa humana; 2.1. A dignidade da pessoa humana como objeto de tutela jurídica; 2.2. Perspectivas e experiências na legislação estrangeira; 2.3. O modelo de renegociação e a proposta brasileira de prevenção no PL nº 3515/2015; 2.3.1. A importância da renegociação; 2.3.2. A importância do desenvolvimento de legislação específica para os casos em que se caracterize o superendividamento; Conclusão.
INTRODUÇÃO
Historicamente, o Brasil enfrentou diversas fases econômicas que foram fundamentais para a construção do cenário econômico atual. Desde o sucesso do Plano Real e a consequente estabilidade econômica do país, houve uma oferta massiva de crédito, oportunizando às famílias de baixa renda a aquisição de bens e serviços que antes não tinham acesso. Posteriormente, com o governo Lula, a concessão de crédito continuou sendo incentivada por políticas públicas, na busca de uma sociedade mais igualitária.
Porém, essa concessão desmedida de crédito acarretou no crescente número de pessoas endividadas no Brasil. Pode-se dizer, inclusive, que a facilidade de acesso ao crédito no Brasil é proporcional ao número de pessoas endividadas.
Além do fator histórico, discute-se a responsabilidade dos fornecedores de crédito, uma vez que estes alimentam irresponsavelmente a compulsão pela aquisição de bens e serviços dos consumidores, inclusive daqueles que não possuem mais condição alguma de continuar gastando. Apenas oferecem mais crédito, mas nunca expõem o verdadeiro risco desse movimento financeiro, muito menos fazem alguma análise individual do perfil de cada consumidor de modo a selecionar aqueles que realmente têm condições de, posteriormente, arcar com as consequências da contratação de crédito, ou seja, pagar em dia sua dívida, e caso isso não ocorra, arcar com os juros da mora.
A publicidade abusiva e enganosa feita por estes fornecedores, motiva os consumidores contraírem despesas que superam seus rendimentos, entusiasmados com as várias promessas feitas por tais fornecedores. No momento que em que o consumidor se encontra em um estado de superendividamento, pode-se dizer também que o mesmo tem desrespeitada uma garantia constitucional fundamental: a dignidade da pessoa humana. Ademais, constata-se que o superendividamento é um problema que não afeta somente a vida privada, vez que em larga escala pode afetar a economia do país como um todo, o que novamente afirma a importância da intervenção estatal por meio de normas mais específicas nos casos de superendividamento.
Evidencia-se, porém, que no Brasil ainda não há dispositivo com força normativa capaz de coibir práticas por parte dos fornecedores de crédito responsáveis pelo superendividamento, tampouco previsão de sanções para os mesmos.
Desta forma, o presente estudo visa analisar as origens do superendividamento, suas características, e o possível tratamento, analisando a forma com que países como a França garantem a proteção e tratamento deste fenômeno, a fim de determinar especificamente quais práticas dos fornecedores acarretam no superendividamento do consumidor e as possíveis sanções a serem aplicadas, visto que, conforme será explicitado, esta condição desrespeita o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Neste sentido, a proposta contempla a linha de pesquisa do Curso de Direito, da Universidade Franciscana, Teoria Jurídica, Cidadania e Globalização, em especial no eixo Teoria Jurídica por discutir o ordenamento jurídico e sua aplicabilidade ao fenômeno do superendividamento contemplando a Cidadania ao tratar da dignidade da pessoa humana e seus reflexos diante da concessão de crédito.
1. O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO: PROTEÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL E BASES TEÓRICAS
1.1. Fundamento constitucional da defesa do consumidor
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, é o regimento normativo mais valioso dentro do ordenamento jurídico brasileiro. A Carta Magna é o parâmetro para as demais normas jurídicas, se encontrando no topo da hierarquia entre todas as espécies normativas do sistema jurídico brasileiro. Seu texto é organizado por meio de títulos, sendo o primeiro deles intitulado “Princípios Fundamentais”.
Estes princípios são primordiais para que se constitua um Estado Democrático de Direito, uma vez que acabam por se tornar seu objetivo. É importante ressaltar também que além de construir, possuem a função básica essencial de preservar o direito, por estabelecerem bases políticas, sociais, administrativas e jurídicas que regem o ordenamento jurídico brasileiro como um todo. Em suma, a Constituição Federal elenca princípios fundamentais que devem ser respeitados por todas espécies normativas infraconstitucionais, como elucida Cristiano Heineck Schmitt3:
Os direitos fundamentais são estruturas atreladas à proteção do homem, sendo que a partir deles é que se deve compreender uma Constituição. Neste sentido, tais direitos justificaram a criação e o desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle e racionalização do poder, auferindo uma condição de núcleo legitimador do Estado de Direito. Dessa forma, os direitos fundamentais não podem ser tidos como adornos em uma Constituição, devendo atuar como “núcleo gravitacional” dela.
São cinco os princípios fundamentais que guardam a existência e a manutenção do Estado, dispostos no artigo 1° da Constituição Federal: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Estes princípios são os pilares do Estado Democrático de Direito, vez que representam os valores supremos de nossa sociedade que deve ser, conforme previsão da própria Carta Magna, fraterna, pluralista e livre de qualquer tipo de preconceito. Desta forma, não há Estado Democrático de Direito sem direitos fundamentais, o que tornam estes objetivos da Constituição.
Evidente que, ao compreender a importância dos princípios fundamentais, fica clara a necessidade de que estes restem protegidos também pelas normas infralegais, devendo estas, inclusive, ter como objetivo a proteção dos mesmos. Nesse sentido, o art. 4º do Código de Defesa do Consumidor estabelece através de quais mecanismos irá garantir os princípios fundamentais constitucionais, definindo qual o objetivo deste código, trazendo que, por meio da implantação de uma Política Nacional de Consumo, disciplina jurídica única e uniforme, por meios de normas de ordem pública e interesse social, serão atendidas as necessidades dos consumidores, assim como o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como transparência e harmonia das relações de consumo.
Ao disciplinar que este dispositivo normativo objetiva o respeito à dignidade do consumidor, refere-se à proteção do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o Código de Defesa do Consumidor deve, por meio do emprego do seu poder normativo, proteger as necessidades existenciais básicas do indivíduo, a fim de garantir uma condição digna de vida ao consumidor, coibindo as possíveis práticas de que delas provenham uma condição indigna ao consumidor. A respeito da proteção à dignidade da pessoa humana, elucida Ingo Wolfgang4:
(...) a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. Na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria o elemento mutável da dignidade).
Seguido do primeiro, encontramos o segundo título, denominado “Direitos e Garantias Fundamentais”. Em seu artigo 5°, inciso XXXII, há a previsão de que é dever do Estado promover a defesa do consumidor na forma da lei, e com o intuito de garantir efetividade a esta previsão, a Constituição Federal ordenou ao Congresso, por intermédio do art. 48. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias5, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor. A respeito da constitucionalização dos direitos consumeristas, discorre Leonardo Garcia6:
A inclusão da defesa do consumidor como direito fundamental na CF vincula o Estado e todos os demais operadores a aplicar e efetivar a defesa deste ente vulnerável, considerado mais fraco na sociedade. É o que chamamos de “força normativa da Constituição”, na expressão de Konrad Hesse, em que a Constituição, ou os direitos nela assegurados, em especial os direitos fundamentais, não são meros programas ou discursos a serem seguidos, mas apresentam força de norma (norma jurídica), passível de ser executada e exigível.
Porém, a Lei 8.078 foi promulgada apenas em 11 de setembro de 1990, entrando em vigor no dia 11 de março de 1991. Durante esse tempo, os problemas advindos da relação consumidor-fornecedor vinham sendo dirimidos pelo Código Civil, que se mostrou insuficiente para solucioná-los, em face da crescente sofisticação e dinamização dos fenômenos advindos da moderna sociedade de consumo. Ao longo do tempo, as mudanças econômicas que atingiram a sociedade de consumo tornaram a relação consumidor-fornecedor cada vez mais complexa, o que fomentou a necessidade de criação de uma legislação mais específica. Em razão disto, o Código de Defesa do Consumidor nasceu como uma resposta protetiva, com o objetivo de tornar mais transparente e harmônica a relação entre consumidores e fornecedores, criando uma cultura de respeito aos direitos de quem consome produtos e serviços.
Apresentadas as previsões constitucionais de garantia do direito do consumidor, evidencia-se a extrema relevância da promulgação da Constituição Federal Brasileira, vez que resta clara e evidente a preocupação do legislador no que concerne os problemas advindos das relações de consumo7.
Neste sentido, a fim de proteger os preceitos assegurados pela Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, como norma infralegal, por meio de seu poder normativo, protege a parte mais vulnerável, o consumidor, dos possíveis danos que possa sofrer. Acerca da vulnerabilidade do consumidor, elucida Sérgio Cavalieri Filho8:
É na vulnerabilidade do consumidor, portanto, que se funda o Direito do Consumidor. Essa é a sua espinha dorsal que sustenta toda a sua linha filosófica. Reconhecendo a desigualdade existente, busca estabelecer uma igualdade real entre as partes nas relações de consumo. As normas desse novo direito estão sistematizadas a partir dessa ideia básica de proteção de determinado sujeito: o consumidor, por se ele vulnerável. Só se justifica a aplicação de uma lei protetiva em face de uma relação de desiguais.
Em face da constitucionalidade do direito do consumidor e a sua extrema importância na vida em sociedade, ao constatar o crescente número de pessoas endividadas e a condição indigna a que são submetidas, evidencia-se a urgência no estudo deste fenômeno para que se possa delimitar quais as medidas que efetivamente são capazes de garantir a proteção e tratamento deste fenômeno.
1.2. Origem e conceito do superendividamento
O mercado de crédito brasileiro há tempos sofre com instabilidade econômica. Na década de 1990 houve um retrocesso em relação ao crédito, enquanto que, após 2003, o crédito voltou a ganhar espaço com o governo Lula, que teve seu início no ano de 2003, e seu término em 2011. Após a implantação do Plano Real em 1994, diferentes setores foram contemplados com programas de reestruturação econômica, divididos entre três grandes programas, quais sejam: o Programa de Estímulo à Recuperação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes) e o Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais (PROEF).
Reflexo de inúmeras políticas públicas de incentivo ao crédito, a partir de 2003, observa-se um aumento expressivo na concessão de crédito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) tanto ao setor público quanto ao privado. A boa fase vivida pelo Brasil também foi experimentada em âmbito mundial entre 2003/2004, oportunidade em que países emergentes, da América Latina e os da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), principalmente os de maior renda per capita e detentores de maior endividamento privado em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), registraram concomitantemente maior crescimento na relação crédito/PIB. O Brasil vivenciava o mais prolongado ciclo de crédito desde a adoção do Plano Real.
Durante os oito anos de governo Lula, o número de pessoas com conta bancária subiu de 70 milhões para 115 milhões, o que significou um crescimento de 40% para 59% de brasileiros inseridos no sistema financeiro9. Neste período, foram colocadas em prática medidas de facilitação de crédito a fim de expandir a oferta de dinheiro na economia e incentivar o consumo pela população de baixa renda, disponibilizando mais crédito para empresas e pessoas físicas e reduzindo a taxa básica de juros, o que fez com que as instituições financeiras aumentassem sua oferta de crédito. É possível apontar diversos indicadores para explicar o maior volume de crédito neste período, como o aumento significativo da renda real dos trabalhadores, queda da taxa de juros das operações de crédito direcionado a pessoa física e até mesmo a criação de novas modalidades de crédito, como o empréstimo consignado.
É notório que esta política de “gerar crescimento através do crédito”, sem antes promover uma prévia educação econômica destes consumidores, acabou fazendo com que estes gastassem além do que podiam, encantados pela tamanha facilitação do crédito, o que ocasionou consequências drásticas no futuro. Conforme dados estatísticos do endividamento no Brasil, a taxa de inadimplência este ano atingiu assustadores 62,7%10, conforme a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Segundo Clarissa Costa Lima11:
A preocupação com o superendividamento e a necessidade de regulação para sua prevenção e seu tratamento surge apenas com o recente cenário de democratização do crédito para pessoas físicas, inclusive no Brasil, onde 29 milhões de brasileiros, entre 2003 e 2009, saíram da pobreza e ingressaram na classe C, a chamada classe média com renda entre 1.126,00 e 4.854,00 reais mensais, passando a ter acesso a novos bens de consumo e ao crédito.
O fenômeno do superendividamento é um problema de âmbito mundial, e que, portanto, possui diferentes denominações: over-indebtedness para os anglo-saxões, überschuldung no alemão, sobreendividamento em Portugal, e superendividamento no Brasil.
Pioneira nas discussões acerca da criação de uma legislação específica acerca do superenvidamento, a legislação francesa12 define este fenômeno no artigo L.330-1 do Code de la Consommation 13 : “A situação de superendividamento das pessoas físicas se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas” (tradução livre).
Como no Brasil ainda não há legislação dispondo especificamente sobre o fenômeno do superendividamento, por óbvio ainda não temos um conceito formal disposto em lei a esse fenômeno. Em razão disto, alguns doutrinadores, se baseando na lei francesa, caracterizaram o superendividamento. Nesta ceara, destaca-se a conceituação elaborada pela jurista Cláudia Lima Marques14:
O superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável com a sua capacidade atual de rendas e patrimônio.
O conceito trazido pela ilustre professora Cláudia Lima Marques distancia a ideia de superendividamento da mera insolvência civil, sendo esta última regulada pelo Código de Processo Civil, tratando-se de execução de quantia certa, enquanto que a primeira seria de cunho consumerista, havendo uma preocupação quanto às nuances sociais que a cercam, o que, por consequência, leva à necessidade de um maior cuidado com a sua prevenção e tratamento.
A conceituação correta faz-se imprescindível para que seja possível, ao legislar sobre o tema, delimitar o poder estatal, vez em que esse só poderá intervir especificamente nos casos em que se caracterize o superendividamento, não legitimando a intervenção nas demais atividades da iniciativa privada, protegendo os fundamentos das relações contratuais.
1.3. Pressupostos para caracterização e classificação do superendividamento
A caracterização do superendividamento depende de definição expressa em lei, que, conforme já foi dito, ainda não existe. Em razão disso, utiliza-se o direito comparado para que seja possível elaborar pressupostos para caracterização deste fenômeno.
Para que se caracterize objetivamente o superendividamento, é necessário observar a pessoa superendividada e a natureza da dívida. A respeito disso, Cláudia Lima Marques destacou alguns conceitos inerentes a compreensão do fenômeno do superendividamento, quais sejam: consumo, crédito, boa-fé e endividamento15.
O consumo pressupõe a exclusão de pessoas jurídicas, visto que estas já estão amparadas legalmente pelos institutos jurídios da recuperação judicial e falência de empresas. Assim, é necessário que a pessoa afetada pelo endividamento seja pessoa física. Ademais, o superendividamento se caracteriza quando o consumidor não possui meios idôneos para sanar suas dívidas. Ou seja: o superendividamento se caracteriza quando a pessoa física, ao adquirir bens e serviços, se torna excessivamente inadimplente, ao ponto de afetar setores básicos à sua vida com dignidade.
Importante destacar também que a doutrina estabelece como pressuposto de caracterização a boa-fé do sujeito, tido como um comportamento leal, cooperativo deste, seguindo os ditames da boa-fé objetiva presente em todas as relações de consumo. Nas palavras de Cláudia Lima Marques16, a boa-fé objetiva é:
[...] uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.
Mesmo que não exista um valor determinado que caracterize o superendividamento, bastando a impossibilidade manifesta de solução das dívidas, entende-se que no momento em que o pagamento das dívidas comprometa mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor, presume-se que o mesmo e sua família têm afetado o mínimo existencial, ou seja, a impossibilidade de arcar com despesas necessárias a uma vida digna, como alimentação, vestuário, higiene, saúde e etc. Isso posto, é possível facilmente vislumbrar que a manutenção do mínimo existencial é inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana. A respeito disso, Ricardo Lobo Torres17 afirma:
Sem o mínimo necessário à existência, cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém do mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.
Utilizando-se também da legislação francesa, a doutrinadora portuguesa Maria Manuel Leitão Marques elaborou uma classificação que dividiu os consumidores superendividados em dois grupos: passivo e ativo. Esta classificação leva em conta o fator da consciência do indivíduo e a causa do endividamento.
O superendividamento passivo se dá por motivos externos à vida do consumidor, os chamados “acidentes de vida”, como o desemprego, redução de renda, divórcio, doença e etc. Observa-se que nestes casos a vulnerabilidade do consumidor é maior devido ao fator emocional que permeiam destes acidentes, e acabam por optar pelo uso do crédito por grande necessidade. Por óbvio, é extremamente necessária a tutela efetiva do Estado nestes casos, principalmente, tamanha a vulnerabilidade do consumidor. É necessário haver expressa previsão legal de sanções aos fornecedores de crédito que se utilizem dessa condição de vulnerabilidade do consumidor em seu benefício, prejudicando cada vez mais a pessoa endividada.
Em contrapartida, o superendividamento ativo subdivide-se em duas categorias: ativo inconsciente e ativo consciente. A primeira se caracteriza quando o consumidor contrai a dívida voluntariamente, incorrendo em movimentos financeiros imprudentes, face de um total descontrole financeiro, movido pelas estratégias de marketing e publicidade dos fornecedores de crédito, o que ocorre, muitas vezes, pela falta de instrução acerca das movimentações financeiras existentes. Ou seja, “o devedor superestima o seu rendimento por incapacidade de administrar seu orçamento ou por ceder as tentações do consumo e da publicidade, na busca de um padrão de vida mais elevado, que ele próprio (psicológica e socialmente) se impõe”18.
Todavia, no superendividamento ativo consciente o consumidor, mesmo sabendo da sua incapacidade em arcar com os valores gastos, contrai a dívida, e, portanto, não deve ser tutelado pelo Estado, uma vez que, como já foi dito, o superendividamento pressupõe a boa-fé do consumidor para a sua caracterização.
1.4. Causas e efeitos do superendividamento
Ainda que o fator histórico tenha contribuído para a taxa elevada de inadimplência, atualmente nos deparamos com um marketing publicitário irresponsável dos fornecedores de produtos e serviços, que prometem liberar crédito e empréstimos sem analisar a vida econômica pregressa do consumidor. Esta publicidade acaba fazendo com que o consumidor crie expectativa de compras, e até uma ambição por algo que sabia que antes não poderia ter, atraído pela suposta facilidade de realizar seus sonhos.
Os fornecedores de crédito alimentam a compulsão pela aquisição de bens e serviços dos consumidores, inclusive daqueles que não possuem mais condição alguma de continuar gastando. Apenas oferecem mais crédito, mas nunca expõe o verdadeiro risco desse movimento financeiro, muito menos fazem alguma análise individual do perfil de cada consumidor de modo a selecionar aqueles que realmente têm condições de, posteriormente, arcar como as consequências da contratação de crédito, ou seja, pagar em dia sua dívida, e caso isso não ocorra, arcar com os juros da mora.
Conforme Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) realizada em julho deste ano, o cartão de crédito é a maior causa do endividamento no Brasil: 76,7%19 do endividamento das famílias se deve ao cartão de crédito, o que pode ser observado nos gráficos do endividamento disponibilizados pelo PEIC.
O resultado não surpreende. Como já foi dito, a sociedade de consumo atual se sustenta pela enganosa facilidade em realizar sonhos, alimentada por uma publicidade enganosa e concessão de crédito irresponsável por parte dos fornecedores. Consequência disso, observa-se uma bancarização do consumo. Cada vez mais pessoas aderem ao cartão de crédito, movidas pela suposta facilidade de aquisição de bens.
De acordo com dados disponibilizados pelo SPC, 52 milhões de brasileiros usam o cartão de crédito como forma de pagamento, o que representa quase dois cartões de crédito por pessoa. Os dados são de uma pesquisa feita pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC)21 e pelo portal Meu Bolso Feliz em todo Brasil, com o objetivo de analisar os hábitos de compra do consumidor e vantagens e desvantagens da utilização do cartão de crédito.
Apesar do crescente número de adeptos ao cartão de crédito, esta ferramenta ainda não sabe ser corretamente utilizada pela maioria dos consumidores. De acordo com dados disponibilizados pela pesquisa já referida, um terço (34%) dos entrevistados não sabe o limite do cartão; a grande maioria (96%) não sabe as taxas de juro mensais que incidem sobre o mesmo, e 93% admitem o risco de gastar além dos seus rendimentos. Estes dados evidenciam a grande vulnerabilidade do consumidor perante o mercado financeiro, uma vez que a falta de uma educação financeira atrelada a concessão de crédito irresponsável, são fatores essenciais para a elevada taxa atual de pessoas endividadas.
Além da falta de informações acerca das movimentações financeiras em geral, é importante destacar também fatores externos à vontade do consumidor, o chamado superendividamento passivo. De acordo com dados22 disponibilizados pelo Projeto de Prevenção e Tratamento de Consumidores Superendividados, realizado pelo Curso de Direito, da Universidade Franciscana, no Procon de Santa Maria/RS, os consumidores apontaram como principal causa do endividamento as despesas além da renda, representando 28% dos casos. Segunda maior causa de endividamento, a doença pessoal ou familiar aparece com 28%, seguida da redução de renda (18%), e desemprego (17%), e por último, outros motivos (9%).
Com os dados acima expostos, fica evidente que o descontrole financeiro é o principal causador do endividamento em massa, descontrole esse que se deve em grande parte à desinformação dos consumidores. Porém, ao analisar as demais causas, observamos fatores “surpresa”. Culturalmente, o consumidor brasileiro não é acostumado a ter uma reserva financeira, o que os deixa sem recursos no momento em que se deparam com uma doença, redução de renda ou até mesmo com o desemprego. Acerca das causas responsáveis pelo superendividamento dos consumidores, escreve Sílvio Javier Batello23:
Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade, créditos hipotecários, carros, móveis e etc. e, inclusive, decorrentes do abusivo e incorreto uso do cartão de crédito. Soma-se ainda, causas não econômicas, tais como falta de informação e educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas etc.
A concessão desmedida de crédito acaba por, muitas vezes, endividar pessoas que já possuíam dívidas vencidas, e sem conseguir pagar estas, que acabam acumulando cada vez mais juros com o decorrer do tempo, se veem obrigadas a contratar mais crédito para saldar a dívida antiga. O consumidor se encontra então, em uma situação em que é impossível pagar todas as suas dívidas sem comprometer o mínimo existencial, levando-o a uma condição de vida indigna.