6. LEIS DE COMBATE ÀS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS
Até o ano de 1995 não havia no Brasil legislação tratando do assunto. A primeira lei a tratar do tema foi a Lei 9.034/1995 (alterada pela Lei 10.217/2001), estes normativos dispunham acerca do uso de meios operacionais de combate às ações praticadas por organizações criminosas, porém não trazia um conceito pátrio.
Não passava de mera norma decorativa no plano jurídico, devido à impossibilidade de uso e eficácia quase nula, o que trouxe consequências legais:
Diante disso, Luiz Flávio Gomes apud Masson defendia a perda de eficácia de todos os dispositivos legais da Lei 9.034/1995 fundados nesse conceito, quais sejam: ação controlada (art. 2.º, II), identificação criminal (art. 5.º), delação premiada (art. 6.º), proibição de liberdade provisória (art. 7.º) e progressão de regime (art. 10). Por esse raciocínio, as demais medidas investigatórias do art. 2.º(interceptação ambiental, infiltração de agentes, acesso a dados etc.) somente haveriam de ter eficácia nas investigações que envolvessem quadrilha ou bando ou associação criminosa (2018. p.20).
Em 2004 a situação muda com a incorporação da Convenção de Palermo, a qual foi inserida no Ordenamento Jurídico pátrio pelo Decreto Presidencial 5.015/2004. Nele existia um conceito de “grupo criminoso organizado”, porém não sua tipificação. O que também trouxe um imbróglio jurídico. Se não vejamos:
A 1ª Turma do STF (HC 96.007, DJe 08.02.2013), contudo, rechaçou esse entendimento, fixando a ideia de que a conduta seria atípica, haja vista a inexistência no ordenamento interno do conceito legal de organizações criminosas (à época). Para a Suprema Corte, como a “introdução [no ordenamento pátrio] da Convenção ocorreu por meio de simples decreto não poderia a definição de organização criminosa ser extraída do Decreto 5.015/2004, para fins de tipificação do delito vertido no art. 1.º, VII, da Lei 9.613/1998, sob pena de violação à garantia fundamental segundo a qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (MASSON. 2018. p.21).
Em 2012, após o assassinato de juízes, com destaque pro caso da juíza Patrícia Acioli da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, Rio de Janeiro, morta com mais de vinte tiros disparados por homens encapuzados, houve mudanças. Esses fatos colocaram o Brasil mais próximo de realidades como a da Colômbia dos anos 80.
Chegaram a instituir por lá a “persecução penal sem rosto”, onde juízes, membros do MP, policiais, funcionários e testemunhas tinham suas identidades mantidas em sigilo e podiam praticar atos processuais mascarados; e da Itália dos anos 1990.
Nunca é demais relembrar alguns atos realizados pelo Cartel de Medellin na Colômbia:
(...) dada a incontrolável expansão do crime organizado, sobretudo com o cartel de Medellín, a temida associação liderada por Pablo Emilio Escobar Gaviria [...] encontrou-se no juiz sem rosto uma forma de estimular a coragem dos magistrados colombianos, abalada em virtude das milhares mortes de civis, policiais, jornalistas, políticos (p. ex., Luis Carlos Galán, candidato à presidência, e Rodrigo Lara Bonilla, ministro da justiça), magistrados e membros do Ministério Público, incluindo o Procurador-Geral da República Carlos Mauro Hoyos, tudo por obra dos sicários do cartel.
Como ressaltam Rosa e Conolly, em referência a Carlos Daza Gómez, “a Colômbia nos anos oitenta estava vivendo época em que os magistrados eram ameaçados pelos narcotraficantes, sob a liderança do conhecido Pablo Escobar Gaviria, A situação de poder e de liberdade por parte dos ditos ‘criminosos’ era de tal gravidade, que em 6 de novembro de 1985, membros da guerrilha denominada M19 –ligada a Pablo Escobar – entraram no Palácio da Justiça (Bogotá), então sede da Corte Suprema e do Conselho de Estado, e mataram 11 magistrados, entre eles o presidente da Corte Suprema de Justiça, 22 funcionários, sete advogados auxiliares, 11 membros da Força Pública e 3 civis (MASSON. 2018. p.27).
Nesse contexto, como resposta do Legislativo à pressões do Judiciário é promulgada a Lei 12.694/2012, a qual institui uma espécie de juízes sem rosto, podendo um colegiado de juízes julgar causas que envolvam organizações criminosas. Traz também um conceito brasileiro de organização criminosa, mas não comina pena:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional (BRASIL. 2012. p.1).
Por fim, já no ano seguinte, permeia no ordenamento a Lei 12.850/2013. Ela define com mais precisão o conceito de organização criminosa, comina pena de reclusão, traz novas ferramentas de combate, novos meios de produção de prova, regula alguns institutos, como o da colaboração premiada (conhecida no meio popular como delação premiada) e o da infiltração de agentes, dá mais poderes a Delegados e membros do MP; no geral dá mais um passo legislativo no enfrentamento do problema. Ainda se tem muito que avançar legislativamente, pois a norma ainda traz polêmicas, que certamente serão objetos de apreciação por tribunais superiores, falta de regulação de alguns procedimentos, como é o caso da captação ambiental que não é regulada nessa lei, nem em qualquer outra norma, e as atecnias que já eram esperadas por uma lei redigida por políticos que não se preocupam tanto com princípios científicos.
Fato curioso é a data do início da afamada “Operação Lava Jato”, 2014, que se utiliza com muita frequência do instituto da colaboração premiada como meio de obtenção de provas.
Por demais longa seria uma análise pormenorizada desta lei, e tampouco se adequaria ao objeto do presente trabalho, entretanto, relevante é a apreciação dos meios de produção de prova concebidos, regulados e mantidos nesta lei. Para tanto veremos um panorama das ferramentas de investigação e meios de obtenção de provas desta lei:
CAPÍTULO II - DA INVESTIGAÇÃO E DOS MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA
Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
I - colaboração premiada;
II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;
III - ação controlada;
IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;
V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;
VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;
VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;
VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal (BRASIL. 2013. p.1-2 grifo nosso).
A partir de agora trataremos com especificidade o inciso V do art. 3º da Lei 12.850/2013, Lei de Combate às Organizações Criminosas – LCO, o qual trata da interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas.
7. (IM)POSSIBILIDADE DE INTERCEPTAÇÃO “JURÍDICA”
A parte final do inciso Xll do artigo 5º da Constituição Federal, é regulada no Brasil pela Lei 9.296, de 1996 (Lei das Interceptações Telefônicas). O inciso XII da CF/88 informa que:
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
CAPÍTULO I - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (BRASIL, 1988, p.2).
O valor fundamental constitucional do inciso XII encontra ressalva na parte final desse mesmo inciso, onde o mandamento constitucional, em ponderação de valores pelo legislador, optou por autorizar a devassa do sigilo das comunicações telefônicas de forma clara. Porém, o texto nada prevê literalmente com relação às comunicações telemáticas. Por conta disso, alguns autores defendem a tese de que a norma constitucional apenas autorizou a interceptação das comunicações telefônicas, quando afirma “salvo no último caso”. Para essa corrente, essa expressão estaria se referindo exclusivamente às comunicações telefônicas, deixando de fora qualquer outra espécie do gênero meio de comunicação. Todavia, a regulação desse inciso através da Lei 9.296 de 1996, traz novos elementos e a previsão expressa da interceptação telemática no parágrafo único do artigo primeiro (MASSON. 2018).
Vejamos os principais pontos desta lei que interessam a este trabalho:
LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996.
Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática (BRASIL. 1996. p.1).
Com essa lei surgiram questionamentos e inúmeras polêmicas acerca dessa previsão legal. Por hora, nos interessa a controvérsia que se relaciona com o objeto desse trabalho: se a presente lei, em especial o parágrafo único do artigo 1º, harmoniza-se com a Constituição Federal de 1988? O site oficial do STF, em 06 de fevereiro de 2018, noticia que a 2ª Turma do STF entendeu que o dispositivo não contraria a Constituição:
2ª Turma confirma validade de interceptação de dados telemáticos em investigação criminal.
Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 132115[…] No julgamento, os ministros confirmaram entendimento da Corte segundo o qual o sigilo da comunicação de dados por meios telemáticos (e-mail), assim como os demais direitos individuais, não é absoluto. No STF, a defesa […] Pediu ainda a nulidade das interceptações telemáticas sob o argumento de que o parágrafo único do artigo 1º da Lei 9.296/1996 seria incompatível com o sigilo da correspondência (artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal). A respeito da alegada incompatibilidade das interceptações telemáticas com o direito individual do sigilo de correspondência, o ministrou destacou que nenhuma garantia constitucional é absoluta. “Sigilo da comunicação de dados por meios informáticos, assim como os demais direitos individuais, não é absoluto, podendo ser afastado para apuração de crime por meio de decisão judicial devidamente fundamentada”, afirmou. Ele lembrou ainda que a Primeira Turma do STF, no julgamento do HC 70814, reconheceu que o sigilo de correspondência não é absoluto e conferiu validade à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, entendendo que a inviolabilidade do sigilo não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Assim, para Toffoli, a exceção constitucional ao sigilo alcança as comunicações de dados telemáticos, não havendo qualquer vício no caso em análise. A decisão da Segunda Turma foi unânime (STF. 2018. p.1).
Com o fito de trazer mais elementos relacionados à discussão, se vê interessante trazer à baila alguns pontos de outra norma infraconstitucional que aparenta regular, de certa forma, o tema ora debatido, a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet:
CAPÍTULO II - DOS DIREITOS E GARANTIAS DOS USUÁRIOS
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;[…]
CAPÍTULO III - DA PROVISÃO DE CONEXÃO E DE APLICAÇÕES DE INTERNET
Da Proteção aos Registros, aos Dados Pessoais e às Comunicações Privadas
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.[...]
§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º (BRASIL. 2014, p.2-3).
De início, é necessário entender o Marco Civil. São encontrados quatro tipos de informações: a) registros de conexão; b) registros de acesso a aplicações de internet; c) dados pessoais e; d) conteúdo de comunicações privadas. Buscamos nesse trabalho a resposta para o questionamento de ser possível ou não a interceptação do WhatsApp no combate à organizações criminosas, logo, a única espécie de informação que nos interessa, por hora, é a d) conteúdo de comunicações privadas.
O Marco Civil, em seu inciso II do artigo 7º, prevê a possibilidade da interceptação, mediante ordem judicial, de comunicações pela internet, e no final menciona que esse procedimento se fará na forma da lei. Se trata de dispositivo meramente redundante, pois, com outras palavras, tem o mesmo sentido e alcance do parágrafo único do artigo 1º da Lei 9.296/96; e a essa lei faz referência na expressão “na forma da lei” (MASSON. 2018).
Já o inciso III do mesmo artigo, pelo que se entende, minimiza qualquer discussão sobre a possibilidade de se ter acesso à comunicações anteriores ao mandado judicial. Ou seja, por conta desse dispositivo, é legalmente autorizado e de difícil contestação, o acesso, mediante ordem judicial, ao conteúdo de mensagens trocadas antes mesmo da data da autorização judicial.
Outro dispositivo que pode trazer dúvidas quanto a sua interpretação é o parágrafo 2º do artigo 10 do Marco Civil, o qual dá a impressão de que lei futura estabelecerá hipóteses para que provedores de conexão de internet (empresas voltadas à disponibilização de internet) e provedores de aplicações de internet (empresas donas de aplicativos e programas de internet), interceptem comunicações telemáticas. Porém, o termo “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer” se trata de referência também a Lei 9.296/96, que já regula o tema. Essa possível polêmica pode surgir pelo fato da palavra “estabelecer” ter sido redigida de forma equivocada ou, no mínimo, ambígua com o “r” no final, passando a ideia de tempo verbal futuro. O conveniente seria a palavra “estabelece” trazendo o sentido de norma já estabelecida.
Por todo o exposto até aqui, há uma dedução lógica no sentido de ser legalmente possível a interceptação telemática do WhatsApp para o enfrentamento ao crime organizado. O Estado brasileiro, no âmbito de seus três poderes, garante legitimidade a esse procedimento.
Tal conclusão teria o condão de por fim ao questionamento desse trabalho, entretanto, a pesquisa revelou que, na prática, se mostra impossível a concretização pelos agentes do Estado do procedimento em tela, de forma legal. Devido a essa 19 constatação, há a necessidade do acréscimo de um último capítulo para possibilitar ao leitor uma análise mais ampla das nuances desse procedimento.