8. (IM)POSSIBILIDADE DE INTERCEPTAÇÃO “FÁTICA”
A palavra interceptar traz um significado de apreender, confiscar aquilo que pertence a outra pessoa, interceptar mensagem, carta; interceptar cargas desviadas. Traz a ideia de trazer para si, algo de outra pessoa.
A palavra telemática, por sua vez, é formada pela aglutinação das palavras telecomunicações (comunicações a distância) e informática. Tem o significado de um conjunto de serviços executados através de redes de telecomunicações, sendo que para tanto se vale também de meios informáticos.
Já a palavra telefônica tem o mesmo prefixo de telemática, o prefixo grego “tele” (distância, afastamento controle feito a distância) e a palavra grega “phoné” que quer dizer som, significando som a distância, em tradução livre.
Necessário se faz também a distinção desses meios de comunicação. Meio de comunicação é gênero que tem como espécies, dentre outras a) meio de comunicação telefônico e; b) meio de comunicação telemático. A teoria clássica do círculo da comunicação descreve os elementos essenciais da comunicação: a) emissor/destinador; b) código; c) mensagem; d) canal de comunicação, além de e) receptor/destinatário. Toda comunicação a distância exige um canal, que é o meio pelo qual a mensagem passará para chegar até o destinatário. E é justamente no canal da comunicação que reside a diferença entre as espécies comentadas.
Enquanto a comunicação telefônica usa como canal as redes com fio e sem fio das operadoras de telefonia; a comunicação telemática utiliza como canal a rede mundial de computadores, internet. Então, a interceptação telefônica resulta da obtenção/interceptação da mensagem numa estrutura (canal) completamente diferente da telemática.
O IBGE divulgou uma pesquisa feita nos quatro últimos meses de 2017. Essa pesquisa, que é parte das coletas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), mostra números de crescimento exponencial do uso da internet.
Essa pesquisa, noticiada pelo site G1 da Rede Globo de Comunicações (2018), mostra que em apenas um ano o Brasil ganhou 10 milhões de novos internautas, passando de 116,1 milhões em 2016 para 126,4 milhões em 2017. O percentual do total da população com acesso passou de 69% em 2016, para 75% em 2017. Se acompanhada a tendência, os números já devem passar dos 80% nos dias atuais.
Revela também que a principal finalidade do acesso é a comunicação através do envio de mensagens por meio de redes sociais. 95,5% das pessoas afirmaram que utilizaram a rede para enviar ou receber mensagens; 83,8% afirmaram fazer chamadas por voz ou vídeo através de aplicativos de internet.
Ainda conforme a pesquisa:
[...]outro levantamento do IBGE mostrou que o celular se consolidou no Brasil como o principal meio de acesso à internet. Naquele ano, em 92,1% dos casos, o smartphone era usado para conexão à rede. Esse percentual aumentou para 97,2% em 2016, chegando a 98,7% no final de 2017. [...] Em 20 contrapartida, microcomputador (incluindo desktops e notebooks) e tabletes têm caído cada vez mais em desuso. O percentual de domicílios com uso de PCs caiu de 57,8% em 2016 para 52,3% em 2017 (G1. 2018. p.5).
Aliadas a esses números, há projeções que o setor que reúne operadoras de telefonia pode ter perdido US $ 386 bilhões de dólares em receita com serviços de voz. As receitas com telefonia diminuirá para US $ 472,7 bilhões em 2019, o que deve ser tendência nos anos seguintes, conforme a Ovum Research em matéria do portal Forbes. De outra banda, as receitas de dados de internet provavelmente alcance US $ 586,4 bilhões a nível mundial. (2015. tradução nossa).
O supramencionado faz concluir que, atualmente, a principal forma de comunicação é a telemática. E que ligações telefônicas, como forma de comunicação, ficou em segundo plano, pois houve uma migração da matriz de comunicação do brasileiro para os meios telemáticos e, consequentemente, a interceptação da comunicação telefônica perdeu efetividade, uma vez que houve essa migração. Fato que mostra a eminente necessidade de se avançar nesse campo, no tocante à interceptação O WhatsApp se insere nesse contexto como a aplicação de internet mais usada para a intercomunicação entre os brasileiros. Conforme notícia veiculada no site Exame da editora Abril (2016), em 2009 o uso de smartphones era bem pequeno, mas os brasileiros já buscavam outras alternativas de comunicação para fugir dos altos custos de ligações e SMSs, como o MSN. É nesse ano que surge o WhatsApp que foi fundado pelo norte-americano Brian Acton, que trabalhou em vários lugares como engenheiro, e pelo ucraniano Jan Koum, esse de família pobre que foi para os EUA ainda criança, onde chegou a trabalhar como zelador. Após um grande investimento, o que possibilitou fornecer várias novidades como mensagens de áudios, num curtíssimo espaço de tempo o aplicativo chegou a marca de 400 milhões de usuários ativos no mundo em 2013.
Em 2014, o dono do Facebook, Mark Zuckerberg, faz uma proposta de mais de uma dezena de bilhão de dólares aos fundadores, e compra a empresa dona do aplicativo WhatsApp. A compra o tornou dono de mais uma das principais redes sociais usadas pelos brasileiros, tendo em vista que ele é dono também do Facebook e Instagram.
O WhatsApp é um software (programa/aplicativo) multiplataforma. Tem uma vasta gama de utilidades e permite ao usuário, através de uma conexão com a internet, trocar mensagens de texto, áudio, vídeos, realizar chamadas de voz, chamadas de vídeo, vídeo conferência, trocar arquivos digitais de qualquer natureza, inclusive com várias pessoas ao mesmo tempo, de forma instantânea, dentre outras utilidades.
É um meio de comunicação telemático, onde o emissor envia uma mensagem (texto, foto, vídeo, arquivo, etc) que tem obrigatoriamente que passar por um canal até chegar ao receptor. Há então três possibilidades de interceptar a mensagem: 1) no equipamento do emissor; 2) no canal(rede telemática) ou; 3) no equipamento do receptor.
Entretanto, em 2016, o WhatsApp passou a exibir uma mensagem no formato de um alerta amarelado, e nele um cadeado com os seguintes dizeres: “As mensagens que você enviar para esta conversa e chamadas agora são protegidas com criptografia de ponta a ponta.” Significando que as mensagens transitarão com uma tecnologia de criptografia. E que sequer o próprio WhatsApp, nem mesmo terceiros que consigam hackear o processo, conseguirão o teor da mensagem.
Apenas o emissor e receptor podem ver a mensagem, pois, no momento que ela é enviada o aplicativo codifica-a (criptografa), segue pelo canal também codificada, e chega até o aparelho receptor também codificada, este decodifica (descriptografa) a mensagem e tem acesso a ela. O resultado é que só quem está numa ponta e na outra consegue ler a mensagem. Um terceiro consegue até capturar, mas precisará das chaves para decodificá-la.
Matt Steinfeld, diretor de comunicação do aplicativo, sendo entrevistado por Renato Santino, em matéria publicada no dia 07/03/2016 no site Olhar Digital, traz informações relacionadas ao assunto:
É importante observar que o WhatsApp não armazena o conteúdo das mensagens. A partir do momento em que entregue entre duas pessoas, ela é apagada dos nossos servidores. Nós só temos nossos servidores com o propósito de entregar as mensagens. Não mantemos registros sobre o que as pessoas conversam nos nossos servidores. Outra coisa importante é que nos últimos dois anos, nós implantamos um recurso chamado criptografia ‘end-to-end’. Ela basicamente ‘bagunça’ a mensagem enviada, o que inclui texto, fotos, vídeos, clipes de voz para que ela não possa ser acessada por cibercriminosos ou outros agentes maliciosos.[...] Nós usamos um tipo de criptografia end-to-end de código aberto, uma ferramenta chamada TextSecure criada pelos engenheiros de uma empresa chamada Open Whisper Systems. Quando eu abro uma janela de chat, o que acontece por trás das cortinas é que uma chave de encriptação é trocada entre nós. Isso cria um canal seguro para comunicação; só eu e você temos a chave para desbloquear esta comunicação. Quando eu mando uma mensagem, aquela chave que nós compartilhamos desencriptará a mensagem. Ela é enviada pelos nossos servidores até o seu aparelho em uma forma criptografada, chegará ao seu aparelho, e porque você tem esta chave, ela irá desencriptar a mensagem, para que você possa lê-la. Esta mensagem é uma nova chave. Então, se você quiser responder à minha mensagem, o sistema lhe dá uma nova chave, para que a sua resposta seja encriptada com uma chave completamente diferente. Este tipo de criptografia se chama “Forward Secrecy”. O motivo pelo qual isso é importante, é que, se, por um acaso, alguém tem acesso à nossa chave da nossa primeira mensagem, ele só será capaz de ler uma das nossas mensagens, porque todas as outras usam uma chave de encriptação diferente. Então, em caso de um ataque, para ter acesso às suas mensagens, a pessoa teria que quebrar a criptografia em cada uma das mensagens, o que é uma tarefa gigantesca (SANTINO. 2016. p.3-5).
[NOTA DA REDAÇÃO: o protocolo TextSecure é aprovado por Edward Snowden, ex-analista da CIA, para a troca de mensagens seguras].
São várias as ordens judiciais para a interceptação do WhatsApp, só em 2016 foram 3500, contudo, a empresa não cumpre nenhuma delas, pois alega não ter tecnologia para executar e que não faz guarda do conteúdo das mensagens. A consequência foram os inúmeros bloqueios que o aplicativo sofreu no Brasil por determinação judicial, onde a principal motivação para as suspensões é o fato de a empresa não cumprir a ordem de interceptação. Essa é uma parte da manifestação da juíza Daniela Barbosa de Souza, ao ordenar uma das suspensões, conforme O Globo em 19/07/2016:
Se as decisões judiciais não podem efetivamente ser cumpridas, e esta informação é sempre rechaçada por peritos da Polícia Federal e da Polícia Civil que afirmam ser possível o cumprimento, como foi possível ao Google do Brasil, em determinada ocasião, cumprir as decisões judiciais que até então alegava ser impossível, deveremos, então, concluir que o serviço não poderá mais ser prestado, sob pena de privilegiar inúmeros indivíduos que se utilizam impunemente do aplicativo WhatsApp para prática de crimes diversos. (2016. p.3).
O assunto está no momento em pauta para ser analisado pelo STF na ADPF 403 e ADI 5527, conforme notícia do dia 25/01/2017 do site de notícias do STF:
Diante da relação entre as discussões postas nas duas ações, os relatores concluíram pela ampliação do escopo da audiência pública, a fim de abranger os dois temas.
Na ADPF 403, o Partido Popular Socialista (PPS) sustenta que os bloqueios judiciais do WhatsApp violam o preceito fundamental da liberdade de comunicação e expressão, garantido no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal e também no Marco Civil. A ADI 5527 foi ajuizada pelo Partido da República (PR) contra os dispositivos da Lei 12.965/2014 que dão suporte jurídico à concessão de ordens judiciais para que aplicações de internet forneçam o conteúdo de comunicações privadas e preveem sanções em caso de descumprimento (STF. p.1).
Com a frase “The future is private" estampada de forma destacada no telão do palco do discurso, o presidente-executivo, Mark Zuckerberg, na abertura do encontro anual do Facebook com desenvolvedores, o F8, ocorrido no dia 30/04/2019, afirmou em alto e bom tom que “O futuro é privado" (notícia veiculada pelo jornalista Thiago lavado do portal G1). Disse também que “[…] após a internet permitir que o mundo todo se conectasse, como numa grande praça, o próximo desafio é criar experiências mais íntimas, como numa sala de estar”. Indicando que fortalecerá ainda mais as barreiras ao acesso Isso posto, significa que, na prática, não é possível a interceptação do WhatsApp pelos agentes do Estado, de forma legal, sob nenhuma hipótese, haja vista a impossibilidade técnica para se operacionalizar esse procedimento.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante tudo que nesse trabalho foi exposto, obtivemos resultados primeiramente na análise do fenômeno das organizações criminosas quanto ao seu conceito. Entendemos que se trata de pessoas que se associam por diversos motivos, mas principalmente com o objetivo de obter ganhos econômicos, cometendo crimes para tanto. Dos conceitos trazidos à discussão foi possível encontrar algumas características que são comuns a quase totalidade de qualquer associação delinquente, como é o caso da hierarquia, domínio territorial, finalidade de lucros, dentre outros.
Frutos também foram colhidos na análise histórica do crime grupal. Foi possível verificar a provável gênese na China com as Tríades, onde os membros inicialmente se aliaram para expulsar povos invasores, mas depois se consolidaram 23 praticando ilícitos; no Japão foi examinada a atuação da Yakuza, que explorava diversas atividades criminosas, como cassinos, casas de prostituição, lavagem de dinheiro, etc, agindo em todo território japonês. Ainda foi possível entender as Máfias italianas, essas constituíam uma sociedade secreta, praticando toda sorte de infrações penais concernentes a esse tipo de criminalidade. Essa Máfia, em meio à crise econômica, imigrou para os EUA, o que, de certa forma, contribuiu para o aumento do crime organizado na América do Norte.
Resultou, por afinidade, a compreensão das estruturas criminosas que foram concebidas no Brasil. O início com o Cangaço de Lampião e em seguida o surgimento de facções que até os dias de hoje afrontam o Estado e minam a paz dos brasileiros. O CV no Rio e hoje em dia com atuação em parte dos Estados brasileiros; os Amigos dos Amigos, Terceiro Comando Puro, além de grupos milicianos. E o maior e mais bem sucedido grupo, que tem negócios em quase todo país e no exterior, inclusive com organizações terroristas; comanda um exército de mais de 30.000 homens; tem um faturamento milionário e projetos de expansão, o PCC. Não só essas, mas também uma infinidade de organizações fazem toda sorte de negócios e cometem uma gama extensa de crimes em nosso território, como por exemplo os “Mensaleiros” e tantas outras organizações políticas, empresariais e de vários outros ramos.
Os sentimentos de otimismo e preocupação tiveram lugar ao nos debruçarmos na reação normativa estatal. Apenas em 1995 tivemos uma lei que se preocupou com o problema, porém, essa lei tinha um problema sério de eficácia. Em 2004 trouxemos uma norma alienígena para nosso ordenamento, mas também carecia de ferramentas e eficácia. Em 2012, com os assassinatos de juízes, o Estado passou a tratar o tema de forma mais enérgica ao inserir vários dispositivos, principalmente de proteção a juízes. Culminando em 2013 com a feitura de uma lei mais arrojada, com diversas ferramentas, mais preocupada com o avanço do crime organizado, porém, ainda não satisfatória, tendo em vista o estrago que a criminalidade organizada provoca em nosso seio social.
Quando fomos pesquisar sobre a outra face do objeto, que é uma ferramenta, um meio de produção de prova previsto na Lei de Combate às Organizações Criminosas: a interceptação de comunicações via WhatsApp, descobrimos uma dimensão a ser explorada. Nessa exploração fomos em busca da resposta para um questionamento: possibilidade ou não de interceptação do aplicativo. Nos deparamos com a Constituição e o direito fundamental à inviolabilidade das comunicações e sua ressalva por reserva jurisdicional. Desse ponto fomos levados até a Lei das Interceptações Telefônicas - LIT, no caminho tiramos algumas dúvidas com relação ao Marco civil da Internet. Voltamos para LIT e vimos a adequação dela com a CF/88 reconhecida pelo STF (é constitucional a interceptação telemática) o que significa dizer que é possível, normativamente, a interceptação do WhatsApp, conclusão que poria fim ao presente trabalho.
Porém, antes de finalizar, por conta da descoberta da impossibilidade prática, foi necessária uma análise do procedimento em sua dimensão pragmática. Foi vista a mudança na matriz de comunicação do brasileiro, a história e características do WhatsApp, dentre elas a natureza telemática de seu funcionamento. Fomos surpreendidos com a criptografia de ponta a ponta, a qual impossibilita tecnicamente a interceptação e declarações recentes de Mark Zuckerberg, que indicam o fortalecimento dos mecanismos de proteção ao acesso de conteúdos de comunicação. Além de serem observadas as consequências desse fato perante o judiciário com bloqueios do aplicativo e a chegada da discussão ao STF. No final concluindo não ser possível a interceptação do WhatsApp no combate às organizações criminosas.
Pois bem, a dinâmica do mundo não permite que uma situação no espaçotempo se eternize. Com o passar do tempo essa situação trilhará um caminho, pelo qual, no momento, não temos resposta de onde vai dar. Por esse motivo, acompanhar uma continuidade, críticas ou pesquisas relacionadas a esse trabalho seria não só um espanto filosófico, mas também uma honra a este pequeno esforço que acabamos de fazer.