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O direito social à moradia e os municípios brasileiros

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20/12/2005 às 00:00
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DAS CONDIÇÕES A SEREM OBSERVADAS PELA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL

Dentro do Estado de Direito, todas as ações estatais, inclusive a elaboração de leis, são passíveis de controle, pois as autoridades públicas subordinam-se ao Direito. É por isso que mesmo as normas jurídicas podem ser tidas como inválidas. O controle de validade das normas jurídicas opera-se fundamentalmente com base nos princípios jurídicos, que pairam sobre todo o sistema, e na Constituição da República, manifestação direta da soberania e peça que constitui e delimita o poder estatal, inclusive na função legislativa. Por ser o Brasil um Estado Federal e por vivenciarmos a fase do federalismo solidário, por vezes a própria Constituição atribui à União a capacidade de editar normas nacionais, condicionantes dos demais entes federativos, assegurando assim uma homogeneidade mínima no trato de certas questões. Fique bem claro, porém, que essa ascendência das normas federais sobre Estados e Municípios, não é ontológica, fruto de uma suposta supremacia da União; ela só existirá em razão de mandamento expresso da Carta Constitucional, pois inexiste hierarquia entre as entidades federativas.

Já que o foco do presente trabalho é o estabelecimento da política habitacional pelo Município, que regerá determinada parte da atividade administrativa, destacam-se logo os princípios constitucionais inscritos no artigo 37, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Mais determinante da política habitacional é o princípio, também constitucional, da isonomia. Trata-se de fator importantíssimo no tocante à decisão sobre quem será atendido pelas políticas públicas. Como certamente não há recursos nem capacidade administrativa para atender toda a população municipal, cabe à Municipalidade estabelecer de modo objetivo e justificável quem deva ser atendido pelas ações públicas. A justificativa aí passa necessariamente pela justiça social e pela maior vulnerabilidade de alguns assentamentos, sobretudo os que expõem grave risco aos moradores; como qualquer ação pública não prescinde do lastro financeiro, tudo isso será concebido dentro da sustentabilidade econômica, fator capaz de relativizar certos paradigmas e prioridades do ponto de vista social. Não se cogite, porém, de colocar em primeiro plano a questão financeira, nem tampouco de utilizá-la para justificar a completa omissão municipal.

O que se pretendeu afirmar acima é que a política pública habitacional deve ser pensada a partir do aspecto social envolvido, mas sem perder de vista sua viabilidade financeira; isso permite, por exemplo, justificar o atendimento simultâneo das demandas prioritárias e não-prioritárias, consideradas a partir da maior carência e/ou vunerabilidade habitacional das pessoas atendidas. Para tanto, deverão ser demonstrados os proveitos dessa conjugação ou pelo menos haverá de se comprovar que o programa ou projeto não-prioritário não traz prejuízo às ações mais urgentes. Frise-se que a margem de questionamento aumentará na medida em que predominarem os esforços públicos fora do universo de famílias com maior necessidade, crítica, aliás, comum na história da política nacional de habitação.

Dentro do possível, devem ser também adotadas medidas que permitam melhor condicionar o setor privado à realidade/necessidade brasileira, para capacitá-lo ao atendimento a um número maior de pessoas. Isso passa, inclusive, pela adequação da legislação urbanística, que define a produção de moradia legal e influencia no respectivo custo. É sobretudo por esse motivo que o Estatuto da Cidade estabelece no rol de diretrizes da política urbana "a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais" (art. 2º, XV). Interpretando tal mandamento em harmonia com o sistema de normas que regem a questão, é clara a necessidade de a moradia produzida ser, em todo caso, digna, integrada ao conceito de cidade sustentável. Notadamente, o desafio então é otimizar as exigências urbanísticas, evitando-se o exagero.

Em verdade, vemos acima uma obrigação básica do Poder Público municipal: legislar dentro da razoabilidade, no caso para permitir a ação adequada dos agentes construtores da cidade. Sem ignorar essa etapa, pode o Município avançar para outro estágio: criar maior convergência entre as iniciativas do setor imobiliário e da construção civil com a estratégia traçada para o desenvolvimento urbano. Como é de amplo conhecimento, a lei não constrói, por força própria, a cidade, apenas rege o processo, no mais das vezes estabelecendo balizas. [17] Se a produção de moradias dentro da lei no Brasil já representaria um enorme avanço, melhor ainda é que o processo de construção se desenvolva com coerência e lógica, ocupando gradualmente os locais mais indicados, entre os disponíveis, gerando externalidades positivas à coletividade e evitando a dispersão desnecessária da malha urbana; para tanto, é fundamental que o governo local saiba como induzir a iniciativa privada.

Na busca de soluções à questão habitacional, impende considerar, como fizemos logo acima, os dispositivos do Estatuto da Cidade.

A partir das diretrizes contidas no artigo 2º daquele Diploma Legal, é possível identificar de modo mais ou menos direto, algumas das condições e alternativas que alcançam a produção habitacional. Em verdade, todo o rol ali disposto toca, em graus variáveis, a questão habitacional. Destacamos, porém, os seguintes itens, por considerá-los mais influentes:

- Direito à cidade sustentável (inciso I). Como a letra da lei revela, engloba um feixe de situações, que manifestamente se faz integrado pelo direito à terra e à moradia, reforçando o compromisso do planejamento e gestão urbanos com essas questões. Além disso, nos outros aspectos listados acaba implicitamente definindo como a moradia deve ser produzida, pois não há cidade sustentável se seu núcleo essencial, a habitação, não estiver associado ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao sistema de transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. O próprio inciso V do mesmo artigo 2º do Estatuto da Cidade explicita essa conclusão. Outro desdobramento dessa diretriz é aquele relacionado à adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites de sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência (inciso VIII).

- Gestão democrática da cidade por meio da participação popular e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (inciso II). Forçosamente a formulação e execução da política habitacional se inserem nessa perspectiva, exigindo canais comunicativos entre a Administração Pública e a sociedade civil, devidamente instituídos, como Conselhos, audiências públicas, fóruns etc.. Em verdade, a própria Constituição já requer a abertura para a participação popular no processo de planejamento municipal (art. 29, XII);

-Cooperação intergovernamental e também da iniciativa privada e demais setores da sociedade na urbanização (inciso III). Na questão habitacional tal cooperação é fundamental, dada à complexidade do tema, especialmente em se tratando da habitação pensada para uma cidade sustentável. Um dos consensos sobre a questão é que os municípios brasileiros isoladamente não têm fôlego para suprir o déficit habitacional. Devem se consorciar ou mesmo celebrar convênios com Estados e União, para otimizar a ação, como, aliás, já orienta o próprio artigo 23 da Lei Maior, em seu parágrafo único. Parceiros na sociedade civil também devem ser buscados, e o Estatuto da Cidade prevê alguns instrumentos que facilitam tal relacionamento, como é o caso do consórcio imobiliário (art. 46) e da operação urbana consorciada (arts. 32 a 34).

-Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município (inciso IV). A Carta Constitucional já associa a questão urbana, e conseqüentemente a política habitacional, ao planejamento municipal (art. 30, VIII). As ações municipais na área de habitação devem ser concatenadas, conduzidas por uma ordem lógica e coerente, com bases predeterminadas; ainda que moldável pelos fatos supervenientes, não se admite o completo improviso ou ações que respondam isoladamente aos problemas concretos apresentados pela urbanização. Não pode aqui ficar de lado uma compreensão prévia desses problemas, até porque o planejamento não há de ser feito para estabelecer um modelo ideal e abstrato de cidade. Como adverte Nelson Saule Júnior, a atividade planejadora "deve contemplar os conflitos e possuir uma função de correção de todos os desequilíbrios causados pela urbanização". [18]

-Regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo (inciso XIV). Para tanto, deverão ser consideradas a situação sócio-econômica da população residente e as normas ambientais incidentes. Diante da realidade brasileira, um espaço significativo da política habitacional há de ser ocupado pela regularização da habitação existente. Dada a importância e a complexidade, o assunto será retomado no tópico seguinte.

-Justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização, com a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado valorização de imóveis urbanos (incisos IX e X). A urbanização é processo coletivo, não devendo ficar entre algumas poucas pessoas a chamada "mais-valia urbana", isto é, o excedente de riqueza produzido nesse contexto, especialmente o verificado pela valorização imobiliária. Esse valor deve ser apropriado pela coletividade, não só por uma questão de justiça social, mas também para viabilizar a continuidade do processo e corrigir as distorções verificadas. Tudo isso se reflete na política habitacional, por vezes até como modo de financiar o imenso desafio imposto ao Poder Público.

Vale o registro quanto às Leis Federais nº 6.766/79 e nº 10.098/00. A primeira traz normas gerais sobre o parcelamento do solo para fins urbanos, procedimento que muito provavelmente será utilizado na produção de habitação popular. Por sinal, para essa hipótese específica há previsões excepcionais, objetivando facilitar o loteamento para população de baixa renda e a regularização de tais empreendimentos. A segunda lei contempla regras a serem observadas na "construção da cidade" de modo a assegurar a acessibilidade às pessoas portadoras de deficiência física ou com mobilidade reduzida. Na realidade, toda e qualquer moradia precisa ser produzida dentro desse marco legal nacional.

Não se perca de vista também que a legislação de alguns temas correlatos à questão urbana podem acabar trazendo condicionantes para a questão habitacional. Notadamente é o caso da proteção ambiental, a qual muitas vezes estabelece normas que interferem na construção e no uso dos imóveis urbanos. Em geral, esses mandamentos devem também ser observadas.

O Município seguirá também os dispositivos estaduais incidentes sobre sua política habitacional, elaboradas dentro do limite da competência daquele ente da federação (art. 24, § 2º da CRFB). Normalmente, a Constituição Estadual costuma dedicar alguns artigos à causa, bem como, de modo reflexo, outros temas acabam por condicionar a política habitacional, especialmente a proteção ambiental.

A Política Habitacional do Município, mesmo quando constituída em lei própria, necessita observar certas normas locais que possuem ascendência sobre as demais. Referimo-nos especialmente àquelas estabelecidas na Lei Orgânica Municipal (LOM) e no Plano Diretor.

O primeiro Diploma condiciona toda a legislação municipal, sendo chamada, informalmente e com certa razão, de Constituição Municipal. É comum que, além de organizar os Poderes, acabe avançando sobre temas julgados relevantes, entre os quais a proteção ambiental, o desenvolvimento urbano e até a habitação.

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Já o Plano Diretor é, por definição constitucional, o instrumento básico da política urbana (art. 182, § 1º). Para bem cumprir sua função há de abranger as muitas questões compreendidas no desenvolvimento urbano, desde o disciplinamento do regime urbanístico do solo à concepção e execução de políticas setoriais especialmente relacionadas à causa. Certamente entre essas está a política habitacional. Advirta-se, que não se espera, nem se recomenda, que o Plano Diretor esgote assuntos tão complexos. Deve, sim, traçar objetivos, diretrizes e outras balizas que estabeleçam o compromisso com a ação orgânica e sistêmica. Para tanto, precisa conceber as linhas gerais da estratégia, coordenado os agentes envolvidos e estabelecendo os instrumentos a serem utilizados.

A obra "Estatuto da Cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos", parte da mesma perspectiva para considerar que

"O objetivo do Plano Diretor não é resolver todos os problemas da cidade, mas sim ser um instrumento para a definição de uma estratégia para a intervenção imediata, estabelecendo poucos e claros princípios de ação para o conjunto dos agentes envolvidos na construção da cidade, servindo também de base para a gestão pactuada da cidade". [19]

Além de afirmar qual a cidade desejada, através dos objetivos fixados, o Plano Diretor cuidará de assegurar a coerência no trato do desenvolvimento urbano e ambiental, para que as ações sejam concatenadas. A lei que instituir a política habitacional municipal não deixa de ser um aspecto daquela pauta e precisa estar em conformidade com o Plano Diretor, sob pena de se revelar inválida. Em caráter mais pontual, cumpre mencionar também que a utilização de alguns dos instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade – e aqui mencionados – dependem de previsão expressa na lei básica do desenvolvimento urbano.

Importa observar ainda que a inserção do tema - política habitacional - no Plano Diretor é fator capaz de trazer efeitos práticos na elaboração das leis financeiras municipais. Isto porque o Plano Plurianual, as Leis de Diretrizes Orçamentárias e os orçamentos anuais devem ser elaborados de modo a incorporar as diretrizes e prioridades contidas naquela peça de planejamento. [20] Como não é usual ao Plano Diretor conceber ações concretas e auto-executáveis na área habitacional, a bem da verdade esse desdobramento financeiro provavelmente dependerá das outras leis que estabeleçam formas de agir a partir das diretrizes e previsões gerais; ou seja, será necessário editar a política habitacional, bem como programas e projetos, que, devidamente estabelecidos, condicionarão a programação financeira municipal, com o devido respaldo do Plano Diretor.

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Sobre o autor
Marcos Pinto Correia Gomes

advogado, mestre em Direito da Cidade, professor de Direito Administrativo na UNIGRANRIO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marcos Pinto Correia. O direito social à moradia e os municípios brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 900, 20 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7746. Acesso em: 19 abr. 2024.

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