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O direito social à moradia e os municípios brasileiros

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20/12/2005 às 00:00
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SEGURANÇA DA POSSE E REGULARIDADE URBANÍSTICA

Vale a pena ressaltar que das considerações acima não se extrai modelo único para atuação municipal.

A propósito, descabe considerar que apenas a aquisição da propriedade confere segurança à posse, havendo outros direitos capazes de satisfazer tal requisito (direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia, direito de superfície, locação etc.). Por seu turno, também não há definição apriorística, no direito nacional, sobre a gratuidade ou onerosidade da relação a ser estabelecida com a família beneficiada pela política habitacional. O direito social à moradia não tem como elemento característico a gratuidade. Cumpre ao Município examinar a melhor alternativa para cada tipo de atuação. Poderá prever a cobrança até mesmo para dar maior fôlego às ações municipais, já que os recursos são sempre escassos.

Em respeito ao princípio da eficiência, deve o Município estruturar sua política habitacional de modo a ter o melhor resultado possível, examinando as frentes em que pode atuar, a partir da realidade em que se encontra a população e dos meios de que dispõe. Em suma, os investimentos públicos e os esforços administrativos devem ser canalizados para viabilizar o maior lastro de atuação municipal, com o melhor resultado possível.

As considerações reforçam a tendência em se afirmar que legalizar e urbanizar adequadamente as áreas ocupadas por população de baixa renda são tarefas exigíveis ao Município, como alguns tribunais já vêm reconhecendo. [21] Afora isso, o dever de o Município em promover o adequado ordenamento territorial, conjugado com suas obrigações perante o direito social à moradia, torna hoje a remoção e o reassentamento de população de baixa renda medidas absolutamente extremas, cuja ocorrência depende de circunstâncias especiais.

A política municipal de habitação precisa, portanto, ser elaborada com a seguinte perspectiva: sempre que for viável, a regularização urbanística é a medida a ser adotada pelo Município diante da ocupação irregular; em outras palavras, exceto em caso de sua absoluta incompatibilidade com outro dever estatal que esteja manifestamente comprometido com a ocupação, como a proteção à saúde pública, a regularização é a única medida aceitável.

Note-se que hoje soa difícil até mesmo invocar qualquer tipo de interesse público para se desconstituir ocupação irregular, especialmente aquela classificável como consolidada, quando os laços sociais já se formaram e as famílias já se organizaram a partir da localização da moradia. Para se desfazer esse quadro, há de ser demonstrada necessidade que soe como um imperativo, sem existir alternativas razoáveis para realização do dever estatal que clama tal providência. De um modo geral, seria altamente polêmico, por exemplo, alegar simplesmente a existência de projeto urbanístico que requeira outra destinação para aquela área, como a instalação de parque industrial ou mesmo o desenvolvimento do turismo e/ou lazer. [23] Em todo e qualquer caso, porém, normalmente será exigível que o próprio Poder Público ofereça solução para a habitação em local próximo ao desocupado ou mesmo que dê condições materiais à família para prover a moradia, conforme, seu interesse em outra localidade.

A regularidade ou irregularidade de uma casa define-se basicamente pelas regras locais, afinal ao Município compete ordenar o parcelamento, uso e ocupação do solo para fins urbanos; consequentemente a chamada regularização deve ser trabalhada na grande maioria dos casos em torno da competência municipal. [24] Normalmente a regularização urbanística ocorre através da instituição de Zona de Especial Interesse Social (ZEIS), com parâmetros urbanísticos específicos, feitos especialmente para a área ocupada

Em condições normais, uma situação de fato que viola as normas de direito público, como são as normas urbanísticas, não pode prosperar. A legalidade, bem como o interesse público, requerem a reparação da ordem jurídica e o desfazimeto daquilo que não se conforma à legislação. Isso lança incertezas sobre a ocupação irregular, gerando insegurança social.

Ocorre que não bastará aqui examinar o cumprimento ou não dos parâmetros urbanísticos estabelecidos, pois há uma série de valores envolvidos, sobretudo em se tratando de área ocupada por população de baixa renda. Como já foi dito, o direito social à moradia, bem como os objetivos de erradicação da marginalização da pobreza e diminuição das desigualdades sociais indicam que a regularização deve ser buscada, sempre que possível, com a manutenção dos moradores de baixa renda no local ocupado. O Estatuto da Cidade, repita-se, é claro nesse sentido e inclusive indica a forma apropriada para ela ocorrer: "mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais". [25]

Nota-se aqui a perspectiva da particularização do nosso Direito, cujas normas, ao menos na hipótese descrita na lei, serão produzidas para o caso concreto; aliás, aqui se firma um elemento ainda mais diferenciado em relação ao Direito Moderno: as normas jurídicas serão definidas a partir da realidade social em que elas incidirão, considerando-se as pessoas envolvidas no fato jurídico, sem partir de uma compreensão uniforme para todos os homens.

Mas uma vez o quadro confirma lições de Boaventura de Sousa Santos, desta feita no sentido de que perante o dinamismo das sociedades capitalistas e o papel do Estado no século XX, "o direito abstracto, formal e universal, recua perante o direito contextualizado, particularista e circunstancial". [26] No caso em exame, há motivos especiais para tanto.

A premissa de editar normas gerais e abstratas (idealismo jurídico) associada à adoção de padrões de qualidade urbana de alto nível (idealismo urbanístico) teve seu reflexo econômico natural: o encarecimento do solo aproveitável. Se considerarmos que boa parte de nossa população sempre viveu com baixíssima remuneração ou mesmo sem remuneração regular não é necessário mais nada para compreender por que os índices de irregularidade urbanística são tão altos no Brasil, a ponto de instigar a discussão sobre o que é regularidade e o que é irregularidade nestas terras. Entretanto, não sejamos ingênuos, considerando o quadro como mero fruto de idealismos, pois decerto a combinação atendeu a importantes expectativas de uma outra parte de nossa sociedade, menor numericamente, mas muito mais importante para a governabilidade do país.

Como é de amplo conhecimento, antes mesmo do Estatuto da Cidade propagar a diretriz da regularização, muitos Municípios já continham em sua legislação previsão semelhante, fosse em Leis Orgânicas, Planos Diretores ou normas mais específicas. Mais do que isso, em alguns deles verificou-se a criação do instrumento que, dentro da lógica do zoneamento, promovia exatamente a edição de parâmetros urbanísticos especiais que traduzissem a realidade das ocupações informais. Modificava-se a legislação para tornar lícito aquilo que pela letra fria da lei seria ilícito.

A referência acima é certamente para as chamadas Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) – em alguns locais são chamadas de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) -, que representam "a flexibilização dos parâmetros urbanísticos quanto ao uso, ocupação e parcelamento do solo, a partir do reconhecimento das tipicidades locais, para facilitação da regularização fundiária do assentamento". [27] Ou seja, o Município identificará como zona especial a extensão territorial ocupada por população de baixa renda, como as favelas ou loteamentos irregulares, de modo a editar índices urbanísticos específicos. Tais regras deverão refletir, na medida do possível, os parâmetros que de fato são vivenciados no local, afastando-se aqueles até então (hipoteticamente) aplicáveis, que deixavam os moradores na ilegalidade. As primeiras experiências nesse sentido remontam ao início da década de 1980, em Municípios como Recife e Belo Horizonte.

Já no tocante à titulação (aquisição de título formal) a participação do Município é mais direta em se tratando de ocupação de imóveis municipais, pois na qualidade de proprietário lhe assiste instituir direitos à população residente, afora o dever de observar o direito à concessão de uso especial para fins de moradia nos termos previstos na Medida Provisória 2220/01.

A propósito registro aqui minha opinião pela inconstitucionalidade do prazo delimitado naquela Medida Provisória para obtenção do direito de uso especial para fins de moradia. Pelo texto legal hoje em vigor, a posse capaz de ensejar o direito em tela não só deveria ser continuada por cinco anos, como também esse período deveria ser completado, no máximo, em 30 de junho de 2001. Sucede que, no texto constitucional que lhe serve de esteio, não há qualquer limite temporal (art. 183, caput e § 1º). Não se afigura, portanto, apropriado à lei ordinária condicionar de modo mais restritivo o que foi assegurado pela Lei Maior de modo mais elástico, especialmente por não se tratar de preceito de eficácia contida (ou restringível), na clássica lição de José Afonso da Silva; [28] francamente, não há nenhuma menção na Lei Maior de que o direito ali assegurado possa ser condicionado por norma infraconstitucional.

Em se tratando de imóvel particular, em tese, poderá recorrer à desapropriação, o que, no entanto, requer capacidade financeira para pagar a indenização correspondente; sendo o imóvel particular ou pertencente a outro ente federativo, há também a alternativa de se aplicar a transferência do direito de construir, caso implementada pelo Município e aceita pelo proprietário (art. 35 do Estatuto da Cidade). No mais, o governo local não tem como diretamente definir a segurança da posse, questão que deverá ser tratada na via judicial, na maior parte das vezes, através da ação de usucapião. Mesmo nesse último caso, o Município, de acordo com seu potencial, pode e deve ser um importante colaborador, orientando os possuidores como proceder, bem como realizando atividades que facilitem o pedido judicial.

É imprescindível a atuação municipal de modo a divulgar os direitos à população, prestando inclusive esclarecimentos técnicos, sobretudo se relacionados ao alcance dos direitos sociais. Questão hoje debatida é se o Município poderia ou mesmo deveria prestar a assistência judiciária, isto é, se os agentes municipais, dentro de suas atribuições públicas, promoveriam ações ou a defesa de interesse particular junto ao Poder Judiciário e em caráter gratuito. A Carta Constitucional atribui ao Estado essa incumbência, quando a pessoa interessada demonstrar a insuficiência de recursos para arcar com as despesas para constituir advogado (art. 5º, LXXIV). Não resta dúvida que a referência ao Estado, ali, é genérica, como entidade que detém (e representa) o Poder Público; assim ó é ao longo de todo o artigo 5º; pela leitura isolada do dispositivo, a inclusão dos Municípios seria plenamente aceitável. A discussão procede, porém, do fato de a própria Lei Maior associar essa obrigação estatal à Defensoria Pública, a ser organizada em nível federal e estadual, dentro de condições especiais (art. 134). A principal indagação é se o exercício de tal atividade, no âmbito estatal, seria exclusivo daqueles entes federativos e, mais especificamente ainda, das respectivas Defensorias Públicas.

Entre os que defendem a extensão da tarefa à Administração Municipal encontram-se Nelson Saule Júnior, Dalmo Dallari e Walter Piva Rodrigues. [29] Todavia é mais tradicional o entendimento pelo qual a Constituição, quando destina uma atribuição a determinado órgão ou entidade, presumidamente o faz em caráter privativo, ao menos dentro da esfera pública. Essa perspectiva foi adotada expressamente em um dos votos que compõem interessante acórdão do Supremo Tribunal Federal, relacionado à assistência judiciária gratuita, posicionamento esse que parece ter orientado os demais votos. [30] Além disso, a defensoria pública está associada diretamente à função jurisdicional do Estado, a qual inexiste em sede municipal.

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Dentro desse contexto, parece difícil justificar a atuação dos procuradores municipais em ações judiciais movidas por particulares, mesmo quando presente o interesse social. Nada impede, porém, que o Município celebre convênios com a Defensoria Pública, com Universidades, com a Ordem dos Advogados, com organizações não-governamentais e com as instâncias do Poder Judiciário, objetivando o melhor desenvolvimento dos processos judiciais relacionados ao acesso à terra, tudo em conformidade com seu dever perante o direito social à moradia. Outra alternativa seria o Município agir em nome próprio, tese que pode ser construída até mesmo diante do seu dever de promover a regularização urbanística, que em alguns casos, como no parcelamento, talvez fiquem pendentes da questão fundiária.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cumpre rapidamente registrar que para respeitar os fundamentos e atingir os objetivos de nossa República, toda política pública precisa ser promovida para a emancipação do indivíduo, dotando-o da capacidade para autodeterminação em suas relações sociais, observando, sempre, a legislação aplicável. Só assim se assegura o primado da dignidade da pessoa humana e se busca construir uma sociedade livre e justa, para ficarmos apenas nas condicionantes que mais visivelmente requerem a perspectiva emancipatória.

Tamanho é o hiato entre o plano desejado e as condições materiais hoje presentes, que a prática de medidas compensatórias e parciais se tornam aceitáveis, desde que o agir estatal claramente caminhe rumo à transformação do quadro, progressivamente

Um perigo que a experiência recomenda evitar é a chamada "expulsão branca", onde as intervenções de melhorias e/ou de regularização urbanísticas ou ainda de construção de moradias em pouco tempo ensejam a retirada dos beneficiados, tornando ineficaz todo o esforço público. Normalmente isso se dá exatamente porque às melhorias materiais do espaço urbano não são acompanhadas de políticas que permitam às famílias se integrarem na sociedade em um novo patamar. É preciso melhorar a capacidade delas quanto à produção de renda

Tudo isso leva à compreensão de que a política habitacional não deve ser apenas pensada como a concessão de casa a cada família necessitada, mas precisa estar associada a uma nova forma de inclusão social daquele núcleo familiar. Do contrário, não só os objetivos fundamentais não serão alcançados, mas haverá clara violação do princípio da eficiência.

Importante também que a legislação local seja adequada para ensejar a produção de habitação a preço acessível, pelo menos, para grande parte da população.

Do compromisso em construir uma sociedade livre e do respeito à diferença, enfim, do pluralismo social francamente acolhido em nossa Lei Maior, também se conclui pelo dever de a produção habitacional adequar-se à identidade cultural da comunidade beneficiada. Em vez de conjuntos habitacionais e de urbanizações padronizadas, concebidas em gabinetes, impende à ação pública considerar os elementos culturais da população a ser atendida. A observação evoca, a um só tempo, a dignidade da pessoa humana, como também o dever do Estado em preservar a cultura (art. 215 da CRFB), e alcança situações díspares, que vão do eventual atendimento de demandas de grupos sociais mais homogêneos, como quilombolas ou índios de determinada tribo, à regularização urbanística de áreas que possuem bens culturais ou de valor histórico (como quadras de escolas de sambas em determinadas favelas ou locais onde se exercem manifestações folclóricas há muito tempo).

As normas urbanísticas, a começar pelo Plano Diretor, devem disponibilizar os instrumentos capazes de auxiliar nessa difícil e complexa missão que é assegurar o direito à moradia e, conseqüentemente, a dignidade da pessoa humana. Alguns instrumentos já foram citados aqui, e caberia ainda mencionar a outorga onerosa do direito de construir, como forma de financiar a política habitacional ou mesmo de induzir o mercado para a habitação popular (arts. 28 a 30 da Lei Federal nº 10.257/01); serventia também pode ter o direito de preempção para a aquisição de imóveis utilizáveis para construção de moradias ou na regularização fundiária, embora sua utilização seja muito pontual (arts. 25 a 27 da Lei Federal nº 10.257/01).

A retenção especulativa de imóvel urbano deve ser combatida, e o Estatuto da Cidade progrediu nesse campo, ao disciplinar as condições para implementação das sanções constitucionais previstas para a hipótese: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; [30] IPTU progressivo e desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública (arts. 5º a 8º).

A efetividade do direito social à moradia, que passa pela melhoria das condições habitacionais – melhoria no plano material e no plano jurídico - e o dever de o Município em promover o adequado ordenamento territorial, torna hoje a remoção e o reassentamento de população de baixa renda medidas absolutamente extremas, a depender de circunstâncias de extrema excepcionalidade.

A política municipal de habitação precisa, portanto, ser elaborada com a seguinte perspectiva: sempre que for viável, a regularização urbanística é a medida a ser adotada pelo Município diante da ocupação irregular; em outras palavras, exceto em caso de absoluta incompatibilidade com outro dever estatal que esteja manifestamente comprometido com a ocupação, como a proteção à saúde pública, a regularização é a única medida aceitável.

Inegavelmente o desafio é imenso, desde buscar a compreensão das causas que atuam para compor o quadro atual da habitação até a elaboração e implementação da política habitacional. A complexidade para o Município aumenta porque as questões macroeconômicas, que influenciam brutalmente o acesso à moradia não são definidas no âmbito local e só em raras ocasiões seus efeitos nocivos (desemprego, baixa renda etc.) podem ser significativamente minimizados pelos agentes municipais. Isso não exime o Município de suas responsabilidades constitucionais: cumpre-lhe, inequivocamente, atuar na medida de suas capacidades, e até mesmo buscar ampliá-las, para efetivar o direito constitucional à moradia, servindo de modo orgânico e sistemático aos propósitos e fundamentos da República Federativa do Brasil. Em outras palavras, seu compromisso, sempre e da melhor forma possível, é fazer progredir a realização do homem e da vida social, digna como tem que ser.

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Sobre o autor
Marcos Pinto Correia Gomes

advogado, mestre em Direito da Cidade, professor de Direito Administrativo na UNIGRANRIO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Marcos Pinto Correia. O direito social à moradia e os municípios brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 900, 20 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7746. Acesso em: 26 abr. 2024.

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