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A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

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30/10/2019 às 17:59
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5. Conclusões

O art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.874/19 estabeleceu que a incidência das normas dela decorrentes incide sobre “relações jurídicas que se encontram em seu âmbito de aplicação”, do que se conclui que a Lei deixa margem para que o intérprete continue a definir quais as disposições da Lei que incidem sobre cada tipo de relação jurídica em cada ramo do direito.

Diante disso, a incidência dos dispositivos da nova lei no âmbito do direito do trabalho, ressalvados aqueles que expressamente alteram dispositivos da CLT, deve ser analisada em face do art. 8º da CLT, que autoriza a aplicação subsidiária do direito comum no âmbito trabalhista, e sempre à luz das normas da Constituição Federal que garantem a eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

Nessa esteira, considerando que a aplicação do direito comum no direito do trabalho é subsidiária, não tem lugar a aplicação de normas que regem a desconsideração da personalidade jurídica em outros ramos do direito, uma vez que, a partir da vigência da Lei 13.467/17, o art. 10-A da CLT, em interpretação conjunta com os arts. 10 e 448 do mesmo diploma, passou a estabelecer regra própria sobre o instituto.

Não fosse isso, a aplicação subsidiária do direito comum não significa aplicação subsidiária exclusivamente do direito civil, cabendo definir quais as normas de outros ramos que melhor se adaptam às características do direito do trabalho. Nesse sentido, tornam-se aplicáveis as regras do CDC, diploma que rege relações jurídicas em que existente a hipossuficiência de um dos contratantes, assim como no direito do trabalho.

Seja pela incidência das normas próprias do direito do trabalho, seja pela incidência subsidiária do art. 28, § 5º, do CDC, a desconsideração no âmbito trabalhista permanece autorizada sempre quando se verificar a insuficiência patrimonial da sociedade, sendo inaplicáveis as regras do Código Civil e da Lei 13.874/19 para fins de tornar obrigatória a demonstração de abuso da personalidade jurídica.

Tal interpretação, ademais, é que a melhor se compatibiliza com a ordem constitucional centrada na dignidade da pessoa humana, a qual subordina o exercício da livre iniciativa, fundamento da proteção à personalidade jurídica, à garantia de eficácia aos direitos fundamentais, entre os quais os direitos fundamentais dos trabalhadores previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional.


6. Referências Bibliográficas

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BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho TST. 3ª Turma. ARR-3148-91.2014.5.05.0251, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte. Brasília, 3 de abril de 2019. DEJT de 5/4/2019.

CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito Material e Processual do Trabalho e a Pós-Modernidade: a CLT, o CDC e as repercussões do novo Código Civil. São Paulo: Ltr, 2003.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. De acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

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RAMOS, André Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial: o novo regime jurídico empresarial brasileiro. 3ª ed. Salvador: Editora JusPodium, 2009.

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TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Execução no Processo do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: Ltr, 2005.


Notas

[1] O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, observado em relação às sociedades empresárias, socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno dos investimentos. (COELHO, 2002, p. 38)

[2] A personalização é uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos — autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais — não recobrindo toda a esfera da subjetividade, em direito. Nem todo sujeito de direito é uma pessoa. Assim, a lei reconhece direitos a certos agregados patrimoniais como o espólio e a massa falida, sem personalizá-los. (COMPARATO, 1983, ps.268).

[3] Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.

[4] O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.

(COELHO, 2002, ps. 34-35).

[5] A teoria maior propugna que somente poderá o juiz, episodicamente, no caso concreto, ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como forma de combate a fraudes e abusos praticados através dela. Esta tese diferencia, com nitidez, a teoria do disregard de outras figuras jurídicas que imponham a responsabilidade pessoal do sócio (como a responsabilidade por ato de má gestão nas sociedades anônimas). (ROSENVALD e CHAVES, 2008, p. 281)

[6] § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[7] Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

[8] [...] a teoria menor trata como desconsideração da personalidade jurídica toda e qualquer hipótese de comprometimento do patrimônio do sócio por obrigação da empresa. Centra o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a autonomia patrimonial. (ROSENVALD e CHAVES, 2008, p. 281).

[9] [...] a supremacia da Constituição é o postulado sobre o qual se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo, tendo sua origem na experiência americana. Decorre ela de fundamentos históricos, lógicos e dogmáticos, que extraem de diversos elementos, dentre os quais a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder constituído, a rigidez constitucional (v. supra), o conteúdo material das normas que contém e sua vocação de permanência. A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir se for com ela incompatível. (BARROSO, 2012, ps. 106-107).

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[10] “[...] a despersonalização do empregador tem despontado como importante fundamento para a desconsideração do manto da pessoa jurídica, em busca da responsabilização subsidiária dos sócios integrantes da entidade societária, em contexto de frustração patrimonial pelo devedor principal na execução trabalhista. Pela despersonalização inerente ao empregador, tem-se compreendido existir a intenção da ordem juslaborativa de enfatizar o fato da organização empresarial, enquanto complexo de relações materiais, imateriais e de sujeitos jurídicos, independentemente do envoltório formal a presidir sua atuação no campo da economia e da sociedade. Com isso, a deconsideração societária, em quadro de frustração da execução da coisa julgada trabalhista derivaria das próprias características impessoais assumidas pelo sujeito passivo no âmbito da relação de emprego.” (DELGADO, p. 381)

[11] Art. 10-A.  O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência:

I - a empresa devedora;

II - os sócios atuais; e

III - os sócios retirantes.

Parágrafo único.  O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato

[12] Desse modo, uma vez constatada a insuficiência do patrimônio social, é possível buscar-se, em toda e qualquer hipótese, o patrimônio pessoal dos sócios, pois o respeito à personalidade jurídica da sociedade, como distinta da personalidade dos sócios, obstacularizaria a efetividade da execução trabalhista, fazendo com que os trabalhadores suportassem eventuais prejuízos da empresa sem que pudessem usufruir de seus lucros ou de exercer o poder diretivo, o que, mais do que tudo, seria injusto. (KOURY, 2004, p. 24)

[13] O desvio dos princípios e finalidades da empresa e a promiscuidade entre os bens da entidade e de seus sócios ou administradores, via de regra, caracterizam conduta dolosa com a finalidade única de embaraçar interesses de credores. O ordenamento jurídico pátrio possui disciplina específica para essas situações no artigo 50 do CCB, que confere ao Poder Judiciário a prerrogativa de levantar o véu da pessoa jurídica para que as obrigações desta sejam estendidas aos bens particulares dos integrantes de seus quadros societários e administrativos. Trata-se da positivação da chamada Teoria Maior, amplamente reconhecida pela doutrina civilista. A segunda possibilidade abraçada pela doutrina e pela jurisprudência encontra fundamento na desigualdade material intrínseca à relação entre a empresa devedora e seu credor. A hipossuficiência de quem persegue o crédito é considerada o único pressuposto do afastamento da personalidade jurídica por aqueles que defendem a Teoria Menor, formalizada, no plano legislativo, pelos artigos 28, §5º, do CDC e 4º da Lei nº 9.605/1998. Por não encontrarem disciplina específica no âmbito da CLT, os trabalhadores são jurisprudencialmente equiparados aos atores hipossuficientes do microssistema consumerista. (BRASIL, TST, 2019)

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Sobre o autor
Inácio André de Oliveira

Juiz do Trabalho no TRT da 21ª Região, Assessor de Ministro no TST de 2008 a 2012, Professor da ESMAT21, Professor de cursos sobre “Recursos no TST”.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Inácio André. A lei da liberdade econômica e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5964, 30 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77494. Acesso em: 23 abr. 2024.

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