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A violência doméstica como violação dos direitos humanos

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3. VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

            3.1. A Violência

            Enfrentar o tema violência doméstica implica abordar a questão do sofrimento intenso que a acompanha, sempre disseminado no ambiente em que ela impera. O universo da violência é sempre um universo de dor e sofrimento.

            Sônia Felipe conceitua a violência como:

            Uma série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como sujeito das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas e eróticas... No ato de violência, há um sujeito...que atua para abolir, definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo, da autonomia e da liberdade.

            3.2. Conceito de Violência de gênero

            Violência, em seu significado mais freqüente, quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma forma de violação dos direitos essenciais do ser humano.

            Esse trabalho preocupa-se com a violência de gênero. O que é gênero? O termo gênero é bastante amplo, empregado com diferentes sentidos. Significa espécie, como quando se trata do gênero humano.

            A sociologia, a antropologia e outras ciências humanas lançaram mão da categoria gênero para demonstrar e sistematizar as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, e criaram pólos de dominação e submissão.

            O gênero, no entanto, aborda diferenças sócio-culturais existentes entre os sexos masculino e feminino, que se traduzem em desigualdades econômicas e políticas, colocando as mulheres em posição inferior à dos homens nas diferentes áreas da vida humana.

            O estudo das ciências humanas, com o uso da categoria gênero, não só tem revelado a situação desigual entre mulheres e homens, como também tem mostrado que a desigualdade não é natural e pode, portanto, ser transformada em igualdade, promovendo relações democráticas entre os sexos.

            O conceito de violência de gênero deve ser entendido como um relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas.

            Assim, não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos das mulheres. Os costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar e preservar estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres.

            Em pesquisa realizada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos da Mulher [16], a violência de gênero é concebida como resultado "das motivações que hegemonicamente levam sujeitos a interagirem em contextos marcados por e pela violência". O trabalho ressalta que "a prática da violência doméstica e sexual emerge nas situações em que uma ou ambas as partes envolvidas em um relacionamento não cumprem os papéis e funções de gênero imaginadas como naturais pelo parceiro. Não se comportam, portanto, de acordo com as expectativas e investimentos do parceiro, ou qualquer outro ator envolvido na relação".

            A própria expressão violência contra a mulher foi assim concebida por ser praticada contra pessoa do sexo feminino, apenas e simplesmente pela sua condição de mulher. Essa expressão significa a intimidação da mulher pelo homem, que desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu disciplinador.

            Nesse contexto, violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado, motivada apenas pela sua condição de mulher.

            Muito se tem feito para mudar essa situação. Houve êxitos importantes. Desenvolveram-se por toda parte a luta pela igualdade de direitos, o reconhecimento da situação das mulheres e as proposituras de ações afirmativas que garantem oportunidades e condições iguais. São tratados, declarações internacionais, assinados praticamente em todos os países do mundo e que representam instrumentos de desenvolvimento e progresso para a sociedade.

            Mesmo com esses avanços, há problemas sérios que continuam a se perpetuar, como ocorre com a violência praticada diariamente contra as mulheres.

            3.3. Conceito de Violência doméstica

            Violência doméstica ou intrafamiliar é aquela praticada no lar ou na unidade doméstica, geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo ser esta homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto.

            A violência doméstica pode ser praticada contra o gênero feminino e masculino. É um tipo de violência que ocorre dentro de casa, nas relações entre as pessoas da família, entre homens e mulheres, pais, mães e filhos, entre jovens e idosos. Pode-se afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres, crianças e adultas são os principais alvos.

            Há os que preferem denominá-la violência intrafamiliar e, neste caso, pode ocorrer fora do espaço doméstico, como resultado de relações violentas entre membros da própria família. Existe uma crítica com relação a essa terminologia porque, mais uma vez se estaria escondendo a violência praticada contra a mulher.

            O termo violência intrafamiliar tem sido bastante usado nos programas nacionais adotados por governos latinos e caribenhos. Por exemplo, na Bolívia, a lei que impulsiona as políticas públicas nessa área denomina-se "Violência na Família ou Doméstica", compreendida como "agressão física, psicológica ou sexual cometida pelo cônjuge ou convivente, pelos ascendentes e descendentes, irmãos, parentes civis ou afins em linha direta ou colateral; os tutores, curadores ou encarregados da justiça".

            No Chile, há uma legislação específica sob o título "Lei de Violência Intrafamiliar" definida como "todo maltrato que afete a saúde física ou psíquica de ascendente, cônjuge, convivente, menores de idade ou incapazes, sejam descendentes, adotados, tutelados, colaterais consangüíneos até o quarto grau, inclusive dependente de qualquer dos membros do grupo familiar".

            Estudos intitulados "Informes sobre a situação da violência de gênero contra as mulheres", organizados pelas Nações Unidas e realizados em 1999, em relação à Bolívia, revelam que, das vítimas de violência intrafamiliar, 98,4% são mulheres. Por sua vez, estatísticas policiais realizadas com base em atendimentos realizados no Chile, referentes ao ano de 1997, identificaram o homem como a principal figura agressora, representando 85% dos que praticam a violência intrafamiliar [17].

            A violência doméstica é um problema que acomete ambos os sexos e não costuma obedecer nenhum nível social, econômico, religioso ou cultural específico, como poderiam pensar alguns.

            Segundo o Ministério da Saúde, as agressões constituem a principal causa de morte de jovens entre 5 e 19 anos. A maior parte dessas agressões provém do ambiente doméstico. A Unicef estima que, diariamente, 18 mil crianças e adolescentes sejam espancados no Brasil. Os acidentes e as violências domésticas provocam 64,4% das mortes de crianças e adolescentes no País, segundo dados de 1997.

            A vítima de violência doméstica, geralmente, tem pouca auto-estima e se encontra atada na relação com quem agride, seja por dependência emocional ou material. O agressor geralmente acusa a vítima de ser responsável pela agressão, a qual acaba sofrendo os efeitos da discriminação, culpa e vergonha.. A vítima também se sente violada e traída, já que o agressor promete que nunca mais vai repetir este tipo de comportamento e termina não cumprindo a promessa.

            Estudos da socióloga Heleieth Saffiori concluíram que quando as mulheres se atrevem a prestar queixa às autoridades já estão sofrendo em silêncio há pelo menos dez anos. [18]

            Para entender a violência doméstica, deve-se ter em mente alguns conceitos sobre a dinâmica e diversas faces da violência doméstica, como por exemplo:

            Violência física é o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não marcas evidentes. São comum murros e tapas, agressões com diversos objetos e queimaduras por objetos ou líquidos quentes. Quando a vítima é criança, além da agressão ativa e física, também é considerado violência os atos de omissão praticados pelos pais ou responsáveis.

            O abuso do álcool é um forte agravante da violência doméstica física. A embriagues patológica é um estado onde a pessoa que bebe torna-se extremamente agressiva, às vezes nem lembrando com detalhes o que tenha feito durante essas crises de furor e ira. Nesse caso, além das dificuldades práticas de coibir a violência, geralmente por omissão das autoridades, ou porque o agressor quando não bebe "é excelente pessoa", segundo as próprias esposas, ou porque é o esteio da família e se for detido todos passarão necessidade, a situação vai persistindo.

            Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram agredidas fisicamente por seus parceiros entre 10% a 34% das mulheres do mundo. De acordo com a pesquisa "A mulher brasileira nos espaços públicos e privados" – realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2001, registrou-se espancamento na ordem de 11% e calcula-se que perto de 6,8 milhões de mulheres já foram espancadas ao menos uma vez.

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            A violência psicológica ou agressão emocional, às vezes tão ou mais prejudicial que a física, é caracterizada por ameaça, rejeição, depreciação, discriminação, humilhação, desrespeito, punições exageradas. Trata-se de uma agressão que não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente causa cicatrizes indeléveis para toda a vida.

            3. A VIOLÊNCIA NA FAMÍLIA: BERÇO DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE

            3.1. A importância da família na formação do ser humano

            A criança tem no adulto um modelo a ser seguido. A relação com os familiares é a primeira relação do indivíduo com o mundo. É nela que ele aprende as regras de convivência que norteiam a vida em sociedade. É a partir dela que a criança vai gradativamente construindo seus conceitos sobre o respeito ao outro, os limites, os direitos e deveres.

            É na família que o indivíduo começa a perceber a si mesmo e ao mundo que o cerca. Se ele encontra um ambiente de respeito e equilíbrio, tende a utilizar como paradigma ao longo de sua vida. Se, ao contrário, convive com adultos desequilibrados e violentos, muito provavelmente utilizará esse padrão para se relacional com todos a sua volta. Geralmente filhos de pais violentos acabam repetindo a estória de seus pais no futuro.

            A família, sendo o primeiro grupo social do indivíduo, homem ou mulher, tem o dever de oferecer a ele condições dignas para o seu pleno desenvolvimento físico e psíquico, garantindo-lhe segurança e proteção.

            No entanto, a cada dia mais e mais crianças são vitimizadas com atos violentos dentro da sua própria casa, caracterizando assim a violência doméstica – aquela que se dá no âmbito familiar ou entre pessoas muito próximas da família.

            Afinal, se a criança e o adolescente não conseguem encontrar segurança e estabilidade em suas próprias casas, que visão levarão para o mundo lá fora? Os conflitos nas crianças podem resultar da disparidade entre o que diz a mãe, sobre ter medo de estranhos, e a violência sofrida dentro de casa, cometida por pessoas que a criança conhece muito bem. Além disso a violência doméstica pode ainda perpetuar um modelo de ração agressiva e violenta nas crianças que estão com a personalidade em formação.

            A violência doméstica é considerada um dos fatores que mais estimula crianças e adolescentes a viver nas ruas. Em muitas pesquisas feitas, as crianças de rua referem maus-tratos corporais, castigos físicos, violência sexual e conflitos domésticos como motivo para sair de casa.

            3.2. Infância vítima de violência

            A infância vítima de violência compreende o contingente social de crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco pessoal e social, daqueles que se encontram em situações especialmente difíceis, ou, ainda, daqueles que por omissão ou transgressão da família, da sociedade e do Estado estejam sendo violados em seus direitos básicos.

            A eles a Constituição Federal de 1988 e a Lei n. 8.069/90 asseguram o direito de Proteção Especial, como forma de defesa contra a violência em suas várias modalidades.

            As crianças vítimas de violência formam no Brasil um país chamado infância que está longe de ser risonho e franco. Nele encontram-se:

            - a infância pobre, vítima da violência social mais ampla;

            - a infância explorada, vítima da violência no trabalho;

            - a infância fracassada, vítima da violência escolar;

            - a infância vitimizada, vítima da violência doméstica.

            O objetivo deste trabalho é estudar a infância vitimizada pela violência doméstica. Este é o contingente vítima da violência praticada no lar e, por isso mesmo, a mais secreta de todas. Aqui estão as vítimas da pedagogia negra – maus tratos físicos, da negligência, do abuso sexual quase sempre de natureza incestuosa e da perversa doçura, ou seja, da violência psicológica. As notícias a seguir dão uma idéia da amplitude e da gravidade dessas formas de violência doméstica:

            - Bebê de cinco anos é morto por pai bêbado. [19]

            - Mãe é acusada de acorrentar filha à cama [20].

            - Abuso sexual de natureza incestuosa [21].

            - Menina passou meses trancada e sem comida em casa [22].

            - Desde 2000, país já mataram 456 filhos [23].

            Estudo inédito do Lacri (Laboratório de Estudos da Criança e do Adolescente) da USP indica que, desde 2000, ao menos 456 crianças ou adolescentes morreram em conseqüência de atos de violência sofridos dentro de casa no Brasil. Segundo o estudo, ocorreram no primeiro trimestre do ano passado, em 128 municípios pesquisados (20 Estados), 20.757 notificações e 456 óbitos.

            Tais formas de violência compõem um triste mosaico: o da infância em dificuldade, da infância violentada e violentada cotidianamente.

            Essas crianças necessitam de proteção especial. Mas, dentre todas, existe um grupo que até recentemente tinha ficado esquecido e que agora está sendo tirado da clandestinidade – é o grupo das crianças vítimas, principalmente meninas, da violência doméstica.

            A violência sexual também é forma de violência doméstica. Quando a violência sexual é praticada por familiares ou pessoas que gozam da confiança da vítima, as conseqüências são ainda muito mais graves, posto que a relação da criança e do adolescente com a família é elemento fundamental na construção da sua identidade.

            Os pais exercem poder e fascínio sobre os filhos que necessitam sentir que são amados, que possuem uma relação de confiança e segurança, onde haja troca de carinho, diálogo e compreensão.

            Entre os abusadores, os padrastos aparecem como os mais freqüentes, seguidos dos pais biológicos, avós, tios e outros parentes próximos.

            3.3 A violência doméstica como uma das causas da violência na sociedade

            Ao afirmar que a violência na família é o berço da violência na sociedade, pretende-se enfatizar o quanto uma estrutura familiar emocionalmente equilibrada é importante para a formação de adultos responsáveis e conscientes do seu papel de cidadãos. Não se pode, contudo, deixar de identificar outras matrizes geradoras da violência no bojo da própria sociedade.

            A questão da violência doméstica só pode ser entendida dentro do contexto social mais amplo, pois a estrutura familiar não está isolada da estrutura da sociedade. Uma está contida na outra, influenciando as relações entre as pessoas.

            A exclusão social, o autoritarismo, o abuso de poder, as imensas desigualdades entre os povos, raças, classes e gêneros, são elementos que desencadeiam estresse, competitividade, sentimento de humilhação e de revolta, falta de diálogo e de respeito ao outro. Esses elementos da estrutura social se inserem na estrutura familiar sem que seus membros se dêem conta, desencadeando relações carregadas de intolerância e violência, atingindo principalmente a criança e as mulheres, por se encontrarem em condições de maior vulnerabilidade.

            Enquanto a violência das ruas e o crime organizado vêm sendo temas de muitas discussões, mobilizando cada vez mais pessoas no mundo inteiro, a violência dentro da estrutura familiar é ainda intocável, protegida sob o manto do silêncio, pelo mito de que toda família é amorosa e protetora, não sendo capaz de maltratar seus próprios membros. No entanto, não se pode pensar em um mundo mais pacífico enquanto não se conseguir garantir a todos uma infância de respeito e uma vida digna junto a sua família.

            O ambiente de paz em casa contribui efetivamente para que a criança, ao tornar-se adulta, estabeleça relações emocionalmente mais equilibradas com as outras pessoas. A paz em casa, portanto, é um grande começo para a paz nas ruas.

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Sobre a autora
Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti

promotora de Justiça em Maceió (AL), mestra em direito público pela Ufal, autora do livro "Violência Doméstica contra a mulher: análise da lei Maria da Penha"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares Farias. A violência doméstica como violação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7753. Acesso em: 18 abr. 2024.

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