O mar encobriu a linha da preamar e apagou os terrenos de marinha

04/11/2019 às 10:33
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A elevação das águas do mar encobriu algumas áreas consideradas terrenos de marinha, cuja medição foi da linha do preamar de 1831.

Para que uma construção invada os limites compreendidos como terreno de marinha deve estar situada dentro da área de 33 metros contados da linha da preamar média do ano de 1831, consoante a dicção do art. 13, do Decreto n° 23.643, de 10 de julho de 1934, que dispõe sobre o Código de Águas:

Art. 13. Constituem terrenos de marinha todos os que, banhados pelas aguas do mar ou dos rios navegáveis, vão até 33 metros para a parte da terra, contados desde o ponto a que chega o preamar médio.

Este ponto refere-se ao estado do lugar no tempo da execução do art. 51, § 14, da lei de 15/11/1831.

A linha da preamar-média significa a média da maré alta em determinado período. Já a linha da preamar-média de 1831 é a média da maré alta apurada em 1831.

Cumpre observar que a Lagoa da Conceição se localiza na parte leste da Ilha de Santa Catarina, à latitude 27°34’ S e longitude 48°27’ W.

A Lagoa de fato constitui-se em um estuário lagunar com área total aproximada de 19,2 km2, extensão de 13,5 km no sentido norte-sul, e largura variável entre 0,15 e 2,5 km.

A ligação com o mar é feita através de um canal longo e estreito, que meandra por cerca de 2,5 km de extensão, apresentando largura variável entre 20 e 40 m.

O Canal da Barra tem sua foz em frente ao mar aberto, na praia da Barra da Lagoa. Até 1981, eram constantes os assoreamentos que ocorriam no canal, impedindo inclusive o acesso de pequenas embarcações.

O fluxo neste canal foi regularizado em 1982, após a construção de guia-correntes para a fixação da embocadura, além da dragagem e retificação de alguns meandros do canal.

A Lagoa da Conceição recebe também aportes de água doce provenientes de precipitações regulares diretas ou indiretas, resultantes do escoamento superficial.

Há também pequenos córregos e rios afluentes à Lagoa, dentre os quais pode-se destacar o Rio João Gualberto (ou Rio das Capivaras).

Este rio, situado no extremo norte do sistema lagunar, possui uma bacia hidrográfica de 4,0 km2, e contribui com uma vazão média de 1,0 m3/s, medida nas proximidades da foz.

Por outro lado, a legislação sobre os terrenos de marinha foi criada pela Ordem Régia de 18 de novembro de 1818, estabelecendo uma faixa territorial nas margens marítimas da costa brasileira de 15 braças craveiras (unidade antiga de medida em que cada braça craveira é equivalente a 2,20 m), contadas para o lado de terra a partir da “borda do mar nas marés de águas vivas”.

Entretanto, foi a partir de 1832 que os problemas sobre as demarcações destas parcelas imobiliárias sugiram, pela mudança do referencial que passou a ser a “linha da preamar média do ano de 1831”, em conformidade com o artigo 4° das Instruções do Ministério da Fazenda, datada de 14 de novembro de 1832.

Desde os tempos mais remotos até os anos atuais os terrenos de marinha e seus acrescidos vêm sendo demarcados pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU, órgão do Ministério do Orçamento, Gestão e Planejamento, a partir de uma “linha presumida de preamar média de 1831”, porque aquele órgão do Governo Federal não tinha meios de calcular a LPM/1831 com a precisão e exatidão métrica requerida na caracterização destas parcelas imobiliárias.

Com isto, em muitos casos os proprietários das parcelas alodiais limitantes com os terrenos de marinha tiveram as suas propriedades invadidas pelo Governo Federal, além de serem compulsados a pagar as correspondentes taxas de ocupações ou aforamentos anuais, em caráter permanente, e mais os laudêmios nos casos de transferências desses bens para terceiros.

Decorridos quase dois séculos da criação deste instituto jurídico, surgiu finalmente a solução para a demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, através de um procedimento técnico-científico que não deixa qualquer dúvida sobre a sua verdadeira localização no espaço geográfico.

Apesar disso, é importante ressaltar que os terrenos de marinha partem da linha da preamar-média de 1831, não da linha da preamar-média atual, do próximo ano ou de qualquer outro período.

Contudo é impossível negar o avanço do mar ao longo dos anos em direção ao continente, tomando as áreas de terrenos de marinha.

Nessas situações, o terreno de marinha não avança sobre os terrenos alodiais, mas continua onde sempre esteve a contar da linha da preamar-média de 1831.

Se o mar avança sobre os terrenos de marinha, o prejuízo é da União, que acaba por perder a área.

Trata-se de espécie de grilagem oficializada em favor da União e em desfavor de todos os proprietários de terrenos alodiais.

Esse procedimento não se afaz à legalidade, bem como à própria moralidade administrativa e deve ser veementemente repudiado pelo Poder Judiciário, por meio das ações que tocam à espécie.

Obéde Pereira de Lima1 apresentou tese de doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulada Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, propondo-se a comprovar a viabilidade técnica de demarcar nos dias de hoje a linha da preamar-média de 1831, valendo-se das técnicas e dos avanços científicos da atualidade, refutando os procedimentos adotados pela Secretaria do Patrimônio da União.

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Em aperta síntese, de acordo com a metodologia desenvolvida pelo autor do estudo, deve-se instalar e colocar em operação estação maregráfica, visando a obtenção de dados amostrados da maré durante período mínimo de um ano, em conjunto com a determinação das coordenadas geodésicas de pelo menos dois pontos extremos, utilizando aparelho de GPS (Global Positioning System) em posicionamento com precisão de 01 ppm, para amarração de controle de levantamento plani-altimétrico da linha de costa e dos perfis de praia.

Em seguida, se deve processar os dados levantados, efetuando-se a análise harmônica das marés e a retrovisão da preamar-média para o período de 1831, utilizando o auxílio de computadores.

Então, processados esses dados, basta se valer de técnicas de topografia para precisar a linha da preamar-média de 1831 no terreno em análise e, por consequência, os verdadeiros limites do terreno de marinha.

O referido autor, no desenvolvimento da tese, procedeu à pesquisa de campo, tendo determinado através da metodologia que propõe, a linha da preamar-média de 1831, na Praia da Enseada, no Município de São Francisco do Sul, Estado de Santa Catarina.

O resultado dessa pesquisa de campo é deveras surpreendente, especialmente para os leigos, dado que se constatou avanço do mar em direção ao continente de mais de 100 metros, por efeito do que a faixa de terreno de marinha, de 33 metros a contar da linha da preamar-média de 1831, está totalmente encoberta, não existe mais, ao contrário do que pretende a União.

Isso traz enormes repercussões jurídicas, tendo em vista que na Praia da Enseada, em São Francisco do Sul os pretensos terrenos de marinha, em verdade, pertencem aos proprietários dos terrenos alodiais.

Ademais, a imposição aos proprietários de tais terrenos alodiais de pagamento de foros, laudêmios, taxas de ocupação, etc., constituem atos administrativos inválidos. As importâncias já pagas, por sua vez, devem ser ressarcidas.

Cumpre ressaltar, a esta altura, que o avanço do mar ocorrido na Praia da Enseada não se constitui fenômeno isolado. Repita-se que isso é resultado do aquecimento global, que, por sua vez, produz o degelo das camadas glaciais.

Portanto, cabe vaticinar que fenômenos semelhantes se sucederam ao longo de toda a costa brasileira e que, por corolário, em muitos lugares, já não há terrenos de marinha.

Ou seja, muitos dos terrenos que a União reputa como seus, a rigor jurídico, não o são, porquanto pertencem a terceiros, aos proprietários dos terrenos alodiais, já que as faixas de 33 metros a contar da linha da preamar média de 1831, correspondente aos terrenos de marinha, foram encobertas pelo mar.

Na mesma esteira, as obrigações de pagamento de foros, laudêmios, taxas de ocupações e outras injunções impostas pela União são inválidas. Por derradeiro, ganha importância o fenômeno do degelo das calotas polares que provocou ao longo dos anos o avanço do mar em direção ao continente.

Isso fez com que, em muitos lugares da costa brasileira, já não existam terrenos de marinha, porque os foram encobertos pelo mar.

Daí que a mudança da preamar para o ano de 2000, por exemplo, produz o efeito de fazer ressurgir e de avançar os terrenos de marinha sobre o continente, mais precisamente sobre os terrenos alodiais, pertencentes a terceiros, o que fere de morte o inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal, cujo texto garante o direito de propriedade.

Portanto, eventual ordem de demolição ou auto de infração ambiental lavrado por construir ou edificar, por exemplo, em área que se entenda ser terreno de marinha, deve ser cuidadosamente analisado, antes a possível inexistência do terreno de marinha.


Nota

1 LIMA, Obéde Pereira de. Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Florianópolis, SC, 2002. xx, 250 p. Tese (Doutorado em Engenharia) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, UFSC, 2002.

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Sobre o autor
Cláudio Farenzena

Escritório de Advocacia especializado e com atuação exclusiva em Direito Ambiental, nas esferas administrativa, cível e penal. Telefone e Whatsapp Business +55 (48) 3211-8488. E-mail: [email protected].

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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