Considerações finais
Debruçou-se, aqui, sobre a recentíssima ideia de herança digital e seus temas adjacentes. A pertinência do estudo se dá pela presença pujante da internet e de ferramentas tecnológicas no dia-a-dia de um número sempre crescente de pessoas, o que ocasiona a formação de acervos digitais cuja destinação post mortem tem sido um desafio aos legisladores, doutrinadores e tribunais.
O surgimento de novas formas de relacionamento social e armazenamento de dados fez com que o Direito Sucessório, tal qual se põe hodiernamente, se mostrasse insuficiente para regular a transmissão mortis causa dos bens virtuais, que passaram a fazer parte do patrimônio e, por extensão, da herança dos indivíduos. Entre os ditos bens intangíveis que ora compõem o acervo patrimonial de muitas pessoas, podem-se citar imagens, livros, músicas, e-mails, bitcoins, perfis em redes sociais, contas em Massively Multiplayer Online Games, trabalhos acadêmicos, contratos eletrônicos, programas de computador, aplicativos, e uma infinidade de outros formatos de arquivos armazenados em nuvens, computadores, celulares, hard drives, entre outros.
O cerne do imbróglio reside no fato de esses bens digitais conterem - muitas vezes concomitantemente - conteúdos de cunho tanto patrimonial quanto pessoal, afetando princípios de igual quilate jurídico e importância social. Essa ambivalência, somada à ausência de regulação específica da matéria, tem se revelado um verdadeiro entrave à compreensão desse novel modelo de herança e sucessão, porquanto há uma colisão entre interesses constitucionalmente tutelados, quais sejam, os direitos de herança e de propriedade dos sucessores versus os direitos personalíssimos atinentes à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem do de cujus.
Da breve análise que aqui se teceu, acerca dos projetos de lei existentes até agora sobre a matéria, pode-se concluir que nenhuma das proposições apresentadas abordou a contento a herança digital, máxime por não cotejar os diferentes direitos fundamentais envolvidos, tratando o tema de forma deveras elementar.
É cediço que, para a superação de uma querela como tal, que envolve colisão de princípios, deve-se ir muito além das soluções rudimentares apresentadas pelos legisladores, perpassando inescapavelmente pelo crivo da ponderação. Para tanto, requer-se - além de um robusto alicerce jurídico-doutrinário - que seja adotado o “meta-princípio” da proporcionalidade, com o escopo de que sejam preservados, tanto quanto possível, todos os interesses constitucionais em jogo, sem o sacrifício completo de nenhum direito.
Destarte, imagina-se que uma possível regulamentação satisfatória para o tema da herança digital deva se orientar, a priori, pela classificação dos ativos digitais passíveis de sucessão. Entre eles estariam aqueles que envolvem aspectos essenciais da personalidade e da vida íntima do de cujus, e que por esse bastante motivo não seriam objeto de sucessão, e aqueles que detêm importância exclusivamente econômica, os quais poderiam transmitir-se aos herdeiros legítimos.
Por fim, quanto aos arquivos digitais que mesclam aspectos de cunho pessoal e patrimonial, entende-se que estes não devem fazer parte da herança digital, pois, ao sopesarem-se os princípios, avalia-se que os direitos que tocam a esfera íntima de um indivíduo merecem guarida, sobrepondo-se aos interesses meramente patrimoniais.
Referências
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