Introdução
O presente estudo tem por objetivo compreender de que maneira a convivência no ambiente de trabalho pode implicar uma mitigação da privacidade do empregado, a ponto de submetê-lo a práticas, por vezes abusivas por parte do empregador, como, por exemplo, a revista íntima. Dessa maneira, serão abordadas as condutas do empregador que conflitam com a privacidade e a dignidade do empregado.
Como assevera Rosana Marques Nunes (2008, p. 101), “embora a Constituição Federal já assegurasse o direito à intimidade como forma de proteger as pessoas contra intromissões ilegítimas, o Direito Brasileiro (...) não possuía nenhuma norma protegendo a revista íntima”, sendo assim esse tipo de prática era tolerado por grande parte dos doutrinadores, tendo como fundamento o poder diretivo do empregador e a preservação do patrimônio da empresa.
Com o advento da Constituição de 1988 e, posteriormente, o Código Civil de 2002, a pessoa humana passou a dispor de grande proteção decorrente da personalidade jurídica, proteção expressa nos conhecidos direitos da personalidade.
Dessa maneira, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016, p. 266) afirmam que “obrigar o empregador a expor partes íntimas de seu corpo é desarrazoado e atenta contra suas garantias fundamentais” e acrescentam: “a tutela jurídica da privacidade implica reconhecer como abusivas algumas revistas íntimas em trabalhadores, promovidos por algumas empresas”.
Assim, passa-se a analisar as espécies de revistas realizadas pelos empregadores em seus empregados, que podem ser atentatórias aos direitos da personalidade do empregado, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição Federal.
Revista Íntima e Revista Pessoal
Ab initio, para que se possa estabelecer um limite à realização das revistas por parte do empregador, é importante esclarecer no que consiste tal prática, para posteriormente distinguir a revista íntima da revista estritamente pessoal.
Nas palavras de Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante (2016), “a revista consiste em qualquer ato do empregador que coloque o empregado em situação de constrangimento. Pode haver o contato físico, exposição do corpo com a retirada de vestes ou apenas a inspeção de objetos”.
Ora, as revistas realizadas pelo empregador podem ser íntimas ou simplesmente pessoais. As revistas íntimas são aquelas que ocorrem sobre a pessoa do empregado, com exposição de parte do corpo. Já as revistas pessoais abrangem as revistas sobre os bens do empregado e as revistas consideradas não íntimas, conhecidas como revistas visuais.
Existem posicionamentos distintos acerca do conceito de revista íntima. A princípio, pode-se afirmar que qualquer tipo de revista íntima viola evidentemente o direito do empregado. O mesmo não pode ser dito a respeito da revista pessoal. Não obstante, tal delimitação não é pacífica, razão pela qual surgiram entendimentos doutrinários divergentes sobre a temática ora abordada, senão vejamos.
De acordo com Rosana Marques Nunes (2008, p. 103), representando posicionamento minoritário sobre o tema, “qualquer revista realizada no empregado deve ser considerada íntima, independentemente de haver exposição de partes do corpo ou toque por parte do empregador”. Para ela, qualquer espécie de revista realizada no empregado afronta sua intimidade.
Nesse mesmo sentido, Taíla Mussi e José Lourival de Oliveira (2008, p. 116), seguindo o posicionamento supramencionado, trazem interessante exemplo, versando contra a prática de revistas pessoais em empregados, afirmando que
não merece prosperar o argumento de necessidade das revistas como forma de salvaguardar o patrimônio empresarial, uma vez que as empresas, normalmente, não inspecionam seus clientes e outras pessoas que visitam o estabelecimento. Isso não significa que não haja risco de que promovam furtos, já que a probabilidade é sempre maior, mas pelo simples fato de que o cidadão médio consideraria um desrespeito ter a sua privacidade e dignidade submetida à situação tão constrangedora.
Insta esclarecer, no entanto, que o entendimento predominante é no sentido de que íntima é apenas aquela revista que expõe parte do corpo do empregado, as demais são, portanto, pessoais; sendo, dessa maneira permitidas até certo ponto.
Entretanto, é certo que tal prática necessita ser realizada com razoabilidade e apenas naqueles casos em que se mostra extremamente necessária, sob pena de violar a dignidade do empregado.
O entendimento majoritário é o de que revistas pessoais podem não afrontar a intimidade do empregado, posto que o fato de haver revistas que constrangem o empregado “não significa que toda e qualquer revista pessoal será ilícita” (FARIAS et. al., 2016, p. 267).
Ainda que cause certo constrangimento ao empregado, existem situações onde a realização da revista pessoal mostra-se necessária. Toma-se, como exemplo, as atividades em que o risco de subtração é iminente. Empresas que trabalham com roupas íntimas femininas, remédios, cartões de crédito, joias, e demais produtos de fácil subtração utilizam, frequentemente, a revista como forma de exercer seu poder de controle.
Ainda assim, deve-se sempre observar a razoabilidade na prática, caso contrário, configurará hipótese de prática de ato ilícito por parte do empregador. Nesse sentido:
RECURSO DE REVISTA. 1. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA. O Regional registra que -as revistas ultrapassavam os limites do razoável, tendo em vista que não se davam de forma superficial ou meramente visual, mas sim invasiva, tendo o reclamante que levantar a camisa e as barras da calça, demonstrando assim a excessividade da conduta, realizada de forma ilícita. - Nesse contexto, torna-se inviável a constatação de ofensa aos arts. 186, 927 e 944 do CC, tendo em vista que seria necessário reexame de provas para entender não configurados os elementos viabilizadores da indenização pretendida. Incide o óbice da Súmula nº 126 do TST. Recurso de revista não conhecido. (…) (TST – 8ª T. – RR 1043-18.2011.5.19.0006 – Rel. Min. Dora Maria da Costa – DEJT 3/10/2014).
O entendimento pretoriano já abraçou esse pensamento, ressaltando, todavia, que não pode haver generalizações em tal interpretação. Apenas com a análise do caso concreto pode-se chegar a conclusão se houve afronta à intimidade do empregado, veja-se:
Dano moral. Afronta à honra e à imagem do empregado. Não ocorrência. Reparação indevida. A revista feita diariamente na bolsa dos empregados e a instalação de câmeras nas dependências da empresa não evidenciam constrangimento capaz de afetar a honra e a boa fama deles, quando demonstrado que a revista era usual e abrangia todos os empregados e a implantação de câmeras visava à segurança da empresa (TRT – 12ª Região/SC, Ac 3ª T., RO 4713.2005.050.12.00-6, Ac. 17469/06, Rel. Desa. Lília Leonor Abreu, DJ 13.12.06, p.11) (grifou-se).
Dessa forma, afirma-se exaustivamente que a revista íntima jamais deverá ser utilizada pelo empregador, por violar flagrantemente os direitos do empregado. Quanto à revista pessoal, apenas a análise do caso concreto pode determinar a ilicitude ou a afronta da prática à dignidade do trabalhador.
De qualquer maneira, o dispositivo deve ser utilizado em ultima ratio, evitando abusos e constrangimentos excessivos. “Embora a revista seja uma prática aceitável, desde que não viole os direitos do trabalhador, ela deve ser desestimulada e substituída por medidas alternativas” (NETO; CAVALCANTE, 2016).
A Proteção à Intimidade do Empregado e a Dignidade da Pessoa Humana
Lado outro, como é cediço, o poder diretivo do empregador e a necessidade de que o patrimônio da empresa seja preservado torna medidas como a revista pessoal algo necessário na práxis laboral.
Conforme asseveram Lília Leonor Abreu e Deyse Jacqueline Zimmermann (2005, p. 65), “o poder controlador (fiscalizador) é um corolário do poder diretivo. (...) Esse poder representa o conjunto de prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação de trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço empresarial interno”.
Ocorre que “o Direito brasileiro até muito pouco tempo não possuía norma proibindo a revista íntima” (NUNES, 2008, p. 101). Somente com o advento da constituição de 1988 e com o código civil de 2002 tornou-se possível garantir a proteção mais efetiva do empregado, especialmente no que se refere à preservação da sua intimidade, face ao poder controlador do Empregador.
Nesse diapasão, não é demais rememorar que possuir personalidade jurídica significa estar envolto por uma proteção constitucional. Personalidade, ao contrário do que versava o código civil de 1916, não é a simples aptidão para titularizar relações jurídicas.
Ter personalidade significa estar amparado pelos direitos da personalidade, os quais têm como cláusula geral a dignidade da pessoa humana, alçada ao patamar de fundamento da República pelo constituinte no art. 1º, inciso III da CFRB/88, que inclusive reflete seus efeitos diretamente sobre as relações de trabalho.
Tanto é assim que, visando à proteção constitucional à pessoa humana, a Lei n° 9.799 de 26/05/1999 acrescentou o art. 373-A à CLT, o qual “proíbe o exercício de vários atos de cunho discriminatório, dentre eles, ‘proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas em empregadas ou funcionárias’ (inciso IV)” (NUNES, 2008, p. 103).
Embora tal inciso refira-se apenas às mulheres, é possível estender a proteção aos homens, uma vez que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres conforme redação do art. 5°, inciso I da Constituição Federal.
Seguindo o mesmo raciocínio aventado, cita-se, também, recente lei publicada em 15 de abril de 2016, versando sobre o tema revista íntima, estabelecendo vedações e eventuais sanções a esta prática. Trata-se da lei n 13.271/2016, segundo a qual, em seu artigo 1°, veda-se expressamente às empresas privadas, aos órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, a realização de qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino.
O artigo 1° da mencionada lei cuida em tutelar não apenas as funcionárias, mas também, de maneira louvável, as clientes do sexo feminino, evitando assim abusos por parte de empresas de maneira geral, fora da esfera da relação de emprego.
O dispositivo supracitado refere-se expressamente às mulheres, intentando proteger os interesses da parte mais vulnerável na relação de trabalho; observando, assim, o princípio da igualdade material/substancial, insculpida no texto constitucional. Todavia é importante ressaltar que a opção do legislador em se referir apenas a funcionárias não exclui, a priori, os funcionários do sexo masculino.
Ainda que vulnerabilidade da mulher seja maior, necessitando, portanto, de uma proteção mais incisiva pelo ordenamento jurídico; é perfeitamente possível estender a proteção da referida lei aos homens, evitando assim que estes sejam submetidos a situações vexatórias e violadoras de direitos fundamentais.
Prevê, ainda, a lei nª 13.271 (art. 2°) uma multa pelo não cumprimento do disposto no seu artigo 1°. Ficam os infratores sujeitos às seguintes penalidades, veja-se:
Art. 2º. (...)
I - multa de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) ao empregador, revertidos aos órgãos de proteção dos direitos da mulher;
II - multa em dobro do valor estipulado no inciso I, em caso de reincidência, independentemente da indenização por danos morais e materiais e sanções de ordem penal.
No entanto, consoante restou demonstrado, a expressa vedação da legal não proíbe a realização de todo e qualquer tipo de revista pelo empregador. Ainda é permitido a realização de revistas pessoais, ou seja, aquelas que não expõem o corpo do empregado, ou ainda, que não os submetem a situações vexatórias.
A utilização de detectores de metais, revistas periódicas de bolsas e mochilas, entre outros, são práticas comuns decorrentes da própria relação de emprego e de consumo que não ofendem os direitos da personalidade do empregado.
Sendo assim, é inegável que “a convivência no ambiente de trabalho implicará uma ligeira mitigação de privacidade do trabalhador” (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 266), todavia a conduta do empregador não poderá ir de encontro à privacidade do empregado.
Sobre o tema, a jurisprudência trabalhista confirma tal pensamento:
Revista íntima. A inserção do empregado no ambiente de trabalho não lhe retira os direitos da personalidade, dos quais o direito à intimidade constitui uma espécie. É certo que o empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. Não se admite, contudo, que a ação do empregador se amplie a ponto de ferir a dignidade da pessoa. (...) (TRT-3ª Região/MG, Ac. 2ª T., RO 6177 /03 (1330-2002-039-03-00-5), Rel. Des. Fernando Guimarães A. Viegas Peixoto, DJMG 2.7.03, p. 13) (grifou-se).
Existe, dessa maneira, uma ponderação dos interesses. O interesse patrimonial não pode postergar a dignidade da pessoa humana. Todavia é possível afirmar que existem espécies de revistas pessoais que não ferem esses direitos, modalidades estas em que os interesses econômicos da empresa sobrepõem os interesses do empregado, relativizando a proteção constitucional à privacidade, desde que observada a razoabilidade pelo empregador.
Considerações Finais
Destarte, diante da breve análise realizada, é possível concluir que a jurisprudência brasileira tem tolerado a revista pessoal até o limite do razoável, ou seja, não tem admitido conduta que agrida a dignidade da pessoa do empregado, ante os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.
Nesse contexto, é intolerável a revista (dita íntima) que consiste em desnudar o empregado, ainda que diante de pessoas do mesmo sexo, mesmo na hipótese em que haja suspeita de prática de ato de improbidade, posto que os interesses econômicos e comerciais do empregador não podem fragilizar os diretos e garantias do empregado.
Antes, a proteção ao empregado deve ser efetiva, de modo a garantir a preservação de sua intimidade e honra. Revistas que afrontem esses direitos devem ser consideradas ilícitas. Já a revista pessoal deverá ser admitida desde que seja o último recurso para satisfazer o interesse empresarial, caso não existam outras formas de prevenção de furtos, fraudes entre outras ocorrências semelhantes.
Em suma, a dignidade da pessoa humana e a proteção aos diretos da personalidade devem nortear as relações de trabalho, observando com rigor a ordem constitucional vigente, com as respectivas mitigações necessárias ao caso concreto, especialmente nas situações em que a intimidade do empregado entre em conflito com o poder diretivo e com a proteção do patrimônio do empregador.
Referências
ABREU, Lília Leonor; ZIMMERMANN, Deyse Jacqueline. Direito à intimidade Vs. Revista pessoal do empregado. Revista do Tribunal Regional da 18ª Região. Págs. 65-69. Goiânia, 2005. Disponível em: <http://www2.trt18.jus.br/portal/arquivos/2012/03/Revista2005.pdf#page=65>. Acesso em: 21 jun. 2019.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 14ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016.
MUSSI, Taíla; OLIVEIRA, Lourival José de. Assédio moral na relação de trabalho: da proteção ao empregado no Brasil contra as revistas pessoais. Revista do Direito Público. Págs. 104-126. Universidade Estadual de Londrina (UEL): Departamento de Direito Público. Londrina, 2008. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/direitopub/article/view/10961/9641>. Acesso em: 21 jun. 2019.
NETO, Francisco Ferreira Jorge; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Revista íntima à luz da jurisprudência do TST. Disponível em: < http://genjuridico.com.br/2016/08/22/revista-intima-a-luz-da-jurisprudencia-do-tst/>. Acesso em: 29 out. 2019.
NUNES, Rosana Marques. A revista íntima como cláusula restritiva de direitos fundamentais no Direito do Trabalho. Mestrado em Direito do Trabalho. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2008. Disponível em: <http://dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp063992.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2019.