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Perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças

15/01/2006 às 00:00
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1. Introdução

A Constituição é considerada, na lição de Rui Barbosa, a rainha das leis, a verdadeira soberana dos povos. Uma leitura atenta da obra de Hans Kelsen [01] evidencia os fundamentos deste entendimento, que tem como base a norma fundamental, e o princípio da hierarquia das leis, representado por uma pirâmide, e desenvolvido pelo jusfilósofo alemão.

A Constituição Federal de 1988 pode ser considerada uma Constituição jovem quando comparada com a Constituição de 1824, que vigorou até 1891 [02], e extremamente recente quando comparada com a Constituição dos Estados Unidos da Americana, que data de 17 de setembro de 1787 [03]. Apesar destas diferenças, até o mês de junho de 2004, a Carta de 1988 já havia sido alterada por quarenta e quatro Emendas, sem contar as Emendas de Revisão, que foram seis.

Na realidade, uma nova Constituição está sendo escrita por meio do poder constituinte derivado, que somente conhece um limite, pelo menos por enquanto, o das cláusulas pétreas, que não podem ser objeto de Emenda Constitucional, conforme dispõe o art. 60, § 4º, da CF, sob pena de quebra do Estado de Direito.

As edições reiteradas de Emendas Constitucionais demonstram que o país ainda não alcançou uma maturidade constitucional, sendo necessário que a norma fundamental seja modificada para atender aos denominados princípios de governabilidade, que estão intrinsecamente relacionados com os princípios que devem reger a política como Ciência, conforme a lição dos pensadores socráticos.

As várias modificações realizadas no texto constitucional têm produzido reflexos na legislação infra-constitucional, e também nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, guardião dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, e o único órgão com competência para dizer o direito no caso concreto, em atendimento ao art. 5º, inciso XXXV, da CF, princípio da jurisdição única, que foi adotado pelo legislador constituinte originário.


2. Servidores militares

Em razão da dicotomia que ainda existe entre civis e militares, surgem vários questionamentos aos direitos e garantias que são assegurados aos integrantes das Forças de Segurança (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), e as Forças Armadas, que possuem as suas funções previstas no texto constitucional.

As prerrogativas que são estabelecidas a determinados estamentos da Administração Pública têm por objetivo assegurar a autonomia dos servidores, para que estes possam bem desenvolver as suas funções. Mas, ao mesmo tempo, a lei prevê os meios necessários a fiscalização e controle por parte dos órgãos competentes das atividades desenvolvidas pelos agentes públicos.

Os militares segundo a Constituição Federal dividem-se em: militares federais, e militares estaduais. Na seara do direito militar, os integrantes de uma mesma Corporação podem ser divididos basicamente em dois círculos: praças e oficiais. Nas Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, os oficiais podem chegar até o posto de Coronel, enquanto que nas Forças Armadas podem alcançar o posto de Oficial General.

A estabilidade destes servidores públicos não é adquirida de forma semelhante a dos servidores civis. Nas Forças Armadas, as praças adquirem a estabilidade com 10 anos de efetivo serviço prestado, em atendimento as normas do Estatuto dos Militares. Nas Forças de Segurança, a aquisição da estabilidade dependerá das disposições da legislação estadual. No Estado de Minas Gerais, o Código de Ética e Disciplina estabelece que a estabilidade é adquirida com três anos de efetivo serviço, enquanto que no Estado de São Paulo, por força do Regulamento Disciplinar, a estabilidade é adquirida com 10 anos de efetivo serviço.

Os oficiais adquirem a sua estabilidade, ou na melhor técnica jurídica, a vitaliciedade, após serem declarados 2º ou 1º Tenente, dependendo do curso freqüentado, Curso de Habilitação a Oficiais, Curso de Formação de Oficiais, Curso Complementar Técnico, pelo aluno ou cadete. Enquanto estiver na condição de aspirante-a-oficial, aluno, ou cadete, o militar fica sujeito as mesmas disposições que são aplicadas as praças, soldado a subtenente, ou suboficial.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu nos arts. 42, e 144, os direitos e prerrogativas que são assegurados aos oficiais das Forças de Segurança, e também aos oficiais das Forças Armadas. No art. 125, § 4º, última parte, também foram estabelecidas as prerrogativas que são asseguradas as praças, e a maneira que estas e os oficiais poderão perder a graduação, posto ou patente.


3. Perda do posto e da patente

A Constituição Federal, em nenhum momento, estabeleceu que os oficiais, Forças Armadas e Forças de Segurança, poderão perder o posto ou a patente por meio de um procedimento que não seja o decorrente de uma decisão judicial, proferida por Tribunal Militar em tempo de paz, ou um Tribunal Especial em tempo de guerra, conforme estabelece o art. 142, § 3º, inciso VI.

Os Juízes e Tribunais Militares também possuem expressa previsão na Constituição Federal, conforme dispõe o art. 92, inciso VI, o que significa que somente este órgão do Poder Judiciário previsto na lei fundamental é que poderá decidir sobre a perda do posto ou da patente dos oficiais, e da graduação das praças.

A natureza do ilícito, comum ou militar, previsto em Lei Especial, Código Penal, ou Código Penal Militar, ou Leis Especiais Militares, não afasta a competência do Tribunal Militar para decidir sobre a perda do posto ou da patente do militar, federal ou estadual, conforme ensina a doutrina com base nas disposições estabelecidas no texto constitucional [04].

O Superior Tribunal de Justiça, no ROMS nº 15711/GO, que teve como relator o Ministro Jorge Scartezzini, 5ª Turma, por v.u, reconheceu a possibilidade de um oficial da Polícia Militar ser excluído da Corporação por ato do Comandante Geral, afastando desta forma as disposições do art. 125, § 4º, c.c o art. 142, § 3º, incisos VI e VII, por entender que somente no caso de crime militar é que a decisão deve ser proferida pelo Tribunal de Justiça Militar.

A garantia que foi assegurada a esta categoria de militares já era expressamente prevista nas Constituições anteriores, Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, EC nº 01 de 1969, o que demonstra que a Constituição Federal de 1988 em nada inovou, mas apenas deu continuidade a uma tradição já consagrada no ordenamento jurídico nacional.

Neste sentido, se um militar, oficial, federal ou estadual, for condenado por violação as disposições da Lei de Tortura, Lei Federal nº 9.455/97, caberá ao Tribunal de Justiça Militar, nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, ou ao Tribunal de Justiça, nos demais Estados da Federação, decidir sobre a perda do posto ou da patente do infrator.

O art. 142, § 3º, incisos VI e VII, da CF, conforme mencionado, é expresso a respeito desta matéria, não existindo lacunas quanto às disposições que se aplicam à espécie. O mesmo acontece, caso o militar venha a praticar um crime comum ou militar. Se o infrator, militar, for condenado a uma pena superior a dois anos, ou caso seja considerado mediante processo administrativo incompatível com oficialato, somente o Tribunal competente é que poderá decidir sobre a perda do posto ou da patente.

Apesar da clareza do texto constitucional existem decisões judiciais entendendo que o juiz da Justiça Comum, ou mesmo a autoridade administrativa, Comandante Geral, poderá demitir o oficial dos quadros da Corporação Militar a qual pertence, contrariando desta forma as normas que tratam da matéria.


4. Perda da graduação

As praças segundo o art. 125, § 4 º, da CF, somente perderão a sua graduação mediante uma decisão judicial a ser proferida por Tribunal Militar competente. Neste aspecto, no tocante a esta categoria de militares, existem vários questionamentos e interpretações quanto ao conteúdo da norma constitucional.

A princípio as mesmas garantias asseguradas aos oficiais foram asseguradas as praças. Depois, passou a ser aplicado o entendimento segundo o qual somente no caso de crimes, comum ou militar, é que as praças ficariam sujeitas a perda da graduação, mediante uma decisão a ser proferida pelo Tribunal Militar. O S.T.F e o S.T.J firmaram entendimento que o Comandante Geral possui competência para demitir as praças das Forças de Segurança. É importante se observar, que o art. 125, § 4º, da CF, não fez esta diferenciação, e nem quanto a natureza do ilícito, comum ou militar.

A respeito do assunto, destaca-se o acórdão proferido na apelação cível n.º 202.087-1/2, v. u, pela Colenda 1.ª Câmara Cível, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que teve como relator o Des. Álvaro Lazzarini, onde este decidiu que, "a igualdade buscada pelo artigo 125, § 4.º, da C.F, teve origem na Emenda nº 2P01407-1, de 13 de janeiro de 1988, de autoria do Deputado Constituinte Paulo Ramos, Major da Reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que buscava com este projeto colocar um término a desigualdade existente entre membros de uma mesma Corporação".

Deve-se observar ainda, que Álvaro Lazzarini com fundamento no Recurso Especial n.º 121.533-0, que teve como relator o Ministro Sepúlveda Pertence, e que reconheceu por unanimidade a vitaliciedade das praças, preceitua que o Comandante Geral das Polícias Militares não mais possui atribuição para demitir as praças de suas Corporações, cabendo ao Tribunal competente decidir sobre esta questão, após um procedimento semelhante ao adotado para o Conselho de Justificação, onde deverá ser assegurado ao acusado a ampla defesa, e o contraditório.

Nos embargos declaratórios n.º 202.087-1/4-01, julgados em 14 de junho de 1994, a Colenda 1ª Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu que, "POLICIAL MILITAR - Perda da Graduação de praça e demissão - Competência - Ato do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo e não do Comandante Geral da Polícia Militar - Inteligência do art. 125, § 4.º, da CF". RT n º 708/78-80.

Apesar do entendimento exposto por Álvaro Lazzarini e outros doutrinadores, o Supremo Tribunal Federal modificou o seu posicionamento a respeito da perda da graduação das praças, e passou a reconhecer a competência do Comandante Geral para a demissão desta categoria de militares por meio de ato administrativo. Assim, após um processo administrativo regular, onde seja assegurada a ampla defesa e o contraditório, o Comandante Geral mediante decisão fundamentada poderá demitir as praças das fileiras da Corporação Militar, Polícia Militar ou Corpos de Bombeiros Militares.

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Na seara do campo criminal, o entendimento do Supremo Tribunal Federal não tem aplicação, e a Justiça Comum não possui competência para impor a um militar, praça, condenado por violação, por exemplo a Lei de Tortura, ou a uma pena superior a dois anos, por crime comum ou militar, a perda da graduação. A competência para proferir esta decisão, no caso das praças que integram as Forças de Segurança, pertence exclusivamente ao Tribunal Militar, ou nos demais Estados da Federação, ao Tribunal de Justiça.

Novamente, apesar da clareza do texto constitucional, os Tribunais não têm compartilhado deste entendimento. No entender dos Pretórios, a Justiça Militar, Estadual, representada pelo Tribunal de Justiça Militar, MG, SP, e RS, ou nos demais Estados, pelo Tribunal de Justiça, somente poderá decidir sobre a perda da graduação das praças no caso de crimes militares previstos em lei, Código Penal Militar. Caso contrário, esta competência será da Justiça Comum do Estado, podendo inclusive ser aplicada pelo órgão judicial de 1 ª instância.

Além disso, esta garantia restringida pelos entendimentos dos Tribunais de Sobreposição não tem sido estendida aos militares das Forças Armadas, que em atendimento as disposições do art. 5 º, caput, da CF, princípio da igualdade, deveriam receber o mesmo tratamento. Desde a edição da Emenda Constitucional n º 18, de 1998, no Brasil existem duas categorias de militares, que devem receber tratamento semelhante, uma vez que ficam sujeitos aos mesmos dispositivos legais, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar.


5. Conclusão

A questão exposta deve ser analisada em conformidade com a pretensão do legislador constituinte, que teve por objetivo assegurar ao militar, que fica sujeito ao tributo de sangue, ou seja, ao cumprimento de suas funções até mesmo com o sacrifício da própria vida, prerrogativas que são necessárias para se evitar influências políticas, ou mesmo pressões indevidas por qualquer setor da sociedade, que possam prejudicar o cumprimento das missões estabelecidas pelo texto constitucional.

Deve-se esclarecer, que as prerrogativas asseguradas aos militares não significam guarida a impunidade. Os Tribunais Militares têm decidido pela perda do posto, ou da patente, e mesmo da graduação das praças, toda vez que fique comprovado que estes militares violaram os preceitos que juraram cumprir.

O respeito a competência estabelecida na CF é fundamental na preservação do devido processo legal. A perda da função pública – que era conseqüência natural da condenação a sanção superior a dois anos – passou a ser vista como procedimento autônomo, iniciado após o trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo Ministério Público [05].

Os art. 142 e 144, da CF, estabeleceram garantias que devem ser observadas nos processos de perda de função dos militares. Em nenhum momento, o constituinte originário impediu que os militares, oficiais ou praças, possam perder o seu posto e patente, ou graduação. Apenas, estabeleceu um procedimento, devido processo legal, para que a decisão possa ser proferida, desde que comprovada a responsabilidade do infrator.

Portanto, a paz social somente poderá ser preservada com a resolução dos conflitos em conformidade com o devido processo legal, que é uma garantia estabelecida na Constituição e nos Instrumentos Internacionais que foram subscritos pelo Brasil.


Referências Bibliográficas

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo : Editora Martins Fontes, 2000.

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LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo - coord. Yussef Cahali – 1ª.ed 2ª tir - São Paulo : Editora RT, 1996. 447p.

PINTO, Mônica Cristina Moreira. Inconstitucionalidade do procedimento nas representações para aplicação de penas acessórias a militares no Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Jus Navigandi, Teresina, n 8, n 445, set/04. Disponível em : http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.

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ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Responsabilidade do Estado por Atos das Forças Policiais. Belo Horizonte : Editora Líder, 2004.

Constituições Brasileiras de 1824 a 1988 vol. I e II, org. BECKER, Antonio, CAVALCANTI, Vanuza. Rio de Janeiro: Editora Letra Legal, 2004.

Constituições Estrangeiras, trad. CARVALHO, José Luiz Tuffani. Rio de Janeiro : Editora Espaço Jurídico, 2003.

Código Penal Militar. São Paulo : Editora Saraiva, 2004.

Código de Processo Penal Militar. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.


Notas

01 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo : Editora Martins Fontes, 2000.

02 Constituições Brasileiras de 1824 a 1988 vol. I, org. BECKER, Antonio, CAVALCANTI, Vanuza. Rio de Janeiro: Editora Letra Legal, 2004.

03 Constituições Estrangeiras, trad. CARVALHO, José Luiz Tuffani. Rio de Janeiro : Editora Espaço Jurídico, 2003.

04 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar – Teoria e Prática. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2003.

05PINTO, Mônica Cristina Moreira. Inconstitucionalidade do procedimento nas representações para aplicação de penas acessórias a militares no Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Jus Navigandi, Teresina, n 8, n 445, set/04. Disponível em : http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.

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Sobre o autor
Paulo Tadeu Rodrigues Rosa

DOM PAULO TADEU RODRIGUES ROSA é Juiz de Direito Titular da 2ª Unidade Judicial da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, Mestre em Direito pela UNESP, Campus de Franca, e Especialista em Direito Administrativo e Administração Pública Municipal pela UNIP. Autor do Livro Código Penal Militar Comentado Artigo por Artigo. 4ª ed. Editora Líder, Belo Horizonte, 2014.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 926, 15 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7796. Acesso em: 28 mar. 2024.

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