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A desincorporação do militar temporário do Exército devido a moléstia que o afaste do serviço por 90 dias:

da legalidade à juridicidade

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09/03/2020 às 14:10

Resumo:


  • Militares temporários do Exército Brasileiro podem ser desincorporados e excluídos em caso de moléstia que os afaste do serviço por mais de 90 dias, consecutivos ou não, segundo a legislação aplicável a essa categoria de servidores.

  • A aplicação da desincorporação e exclusão, seguida do encostamento, pode ser vista como inconstitucional, pois viola princípios como isonomia e direito à saúde, além de ser incompatível com a competência legislativa sobre a matéria.

  • O princípio da juridicidade, em detrimento da legalidade estrita, é aplicável para garantir o tratamento igualitário entre militares temporários e efetivos, assegurando aos primeiros o direito à agregação/adição para tratamento de saúde e remuneração em caso de incapacidade temporária.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Seria adequado superar a legalidade estrita em relação ao dispositivo que autoriza a desincorporação/exclusão do militar temporário acometido por moléstia que afaste do serviço por 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, com o consequente encostamento, em prol da sua proteção e com base em princípios constitucionais?

INTRODUÇÃO

Anualmente incorporam milhares de militares temporários nas fileiras do Exército Brasileiro. Esses jovens, que em sua maioria têm 18 anos de idade, buscam em uma Instituição Nacional e Permanente a garantia de um emprego digno e respeitável, porém ao desempenhar as suas funções durante a prestação do serviço, o militar temporário poderá ser acometido por doenças ou acidentes que o levem à incapacidade, fazendo com que venha a faltar ao serviço por vários dias.

Nesses casos, em vez de o Exército Brasileiro prestar todo apoio de saúde ao militar temporário, a legislação aplicada a estes servidores, determina que em caso de moléstia sem relação de causa e efeito com o serviço o militar seja desincorporado, excluído e consequentemente encostado e, somente agregado/adido nos casos com relação de causa e efeito com o serviço, diferenciando assim o tratamento dispendido aos militares efetivos.

Entretanto, a lei, mecanismo de justiça e garantia, já não presta aos mesmos fins (FONTE, 2009), emergindo a necessidade de adequar a forma de interpretar o direito por meio da superação da noção de legalidade à de juridicidade.

Assim, esse ensaio visa avaliar, sob o olhar da legalidade e da juridicidade, o ato administrativo de desincorporação de militares temporários do Exército por estarem afastados do serviço por 90 dias, consecutivos ou não, em virtude de moléstia.

Para tanto será realizada uma revisão de literatura e análise documental das leis e demais normas vigentes para identificar quem são os militares temporários do Exército Brasileiro e o ato administrativo em comento, bem como por meio de abordagem hermenêutica verificar se deve ser aplicada a legalidade ou juridicidade sobre essa modalidade de desincorporação.

1. MILITARES TEMPORÁRIOS DO EXÉRCITO BRASILEIRO

A atual Constituição República Federativa do Brasil promulgada em 1988, no art. 142 prevê o Exército Brasileiro como parte integrante das Forças Armadas, que são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O Exército Brasileiro é composto de servidores - que após o advento da Emenda Constitucional n.º 18, de 05 de fevereiro de 1998, que incluiu o § 3º no artigo 142 -, passaram a ser denominados de militares, (SILVA, 2012, p. 26), “formando uma categoria especial de servidores da Pátria e se encontram na ativa ou na inatividade”[1](ABREU, 2010, p. 241).

Kayat ensina que existem duas categorias de militares na ativa após o advento da Constituição de 1988, quais sejam: efetivos e temporários, dentre o universo de efetivos teremos os estabilizados e os não estabilizados[2] (2014, p. 21).

“Os militares efetivos são aqueles que ingressaram nas Forças Armadas através de concurso público para provimento de cargo efetivo” (KAYAT, 2014, p. 21). Isto é, submete-se a concurso público para provimento de cargo de Oficial por meio das Academias Militares e Escolas de Formação (AMAN, Escola de Formação Complementar do Exército, Instituto Militar de Engenharia) ou mesmo a concurso para provimento de cargo de Sargento por meio da Escola de Sargento das Armas – ESA, esse último por ser destinado a graduação de praça, somente será estável após o percurso dez anos de serviço (KAYAT, 2014, p. 23).

Já os militares temporários ingressam por meio diverso do concurso público, ou seja, são os prestadores do serviço militar obrigatório ou inicial, os que optaram pela prorrogação deste serviço, através do engajamento e reengajamento, e os cidadãos e reservistas convocados em situações excepcionais (reserva mobilizável em casos de guerra, etc.), todos sempre por prazo determinado (KAYAT, 2014, p. 21).

Na lição de Silva pode-se chegar ao conjunto de militares temporários por exclusão, isto é, são aqueles que não pertencem à categoria dos militares estáveis (militares efetivos e as praças com estabilidade) (2012, p. 34).

Realizada a importante distinção, porém antes de adentrar no estudo dos atos administrativos de ingresso e desincorporação do militar temporário, necessário e oportuno se faz verificar que a legislação aplicável, disciplinando os direitos e deveres a essa categoria de servidores, é a Lei 4.375/64 (Lei do Serviço Militar) regulada pelo Decreto 57.654/66[3], enquanto que a Lei 6.880/80 (Estatuto dos Militares) se aplica aos militares efetivos[4] e apenas aos temporários da categoria alunos de órgão de formação da reserva.

Embora tenham sido elaborados durante o regime militar, amparadas na ordem constitucional então vigente (SILVA, 2012), esses diplomas legais disciplinadores do regime jurídico dos militares mantiveram a sua vigência, especialmente o Estatuto dos Militares, que exerce um papel fundamental e central. No entanto, tais normas foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, somente não se admitindo a referida recepção em relação aos dispositivos que não estivessem compatíveis aos seus comandos normativos (PERIN, 2006).

Ilustra-se a diferença de tratamento legislativo quando se verifica que o ato administrativo de ingresso dos militares temporários é a incorporação ou matrícula, assim como previsto na Lei do Serviço Militar, enquanto que o ingresso dos militares de efetivos, também ditos de carreira, está previsto somente no Estatuto dos Militares (SILVA, 2012, p. 34).

O militar incorporado ou matriculado ingressará no serviço militar inicial do Exército Brasileiro que terá a duração normal de 12 (doze) meses. Porém, ao concluírem o tempo de serviço a que estiverem obrigados poderão, desde que o requeiram[5], ser concedida prorrogação desse tempo, uma ou mais vezes, como engajados[6] ou reengajados[7], segundo as conveniências da Força Armada, eis que se trata de ato discricionário (ABREU, 2010, p. 197)[8].

Durante o percurso da sua carreira, que pode atingir o tempo máximo oito anos no serviço ativo (ABREU, 2010, p. 505), o militar temporário terá de cumprir as funções de defesa da Pátria, garantir os poderes constitucionais e garantia da lei e da ordem, sendo submetido a instruções individuais básicas, instruções de capacitação técnica, atividades físicas diárias, bem como serviço de guarda da Organização Militar à que estiver vinculado. Atividades essas que podem ocasionar uma doença ou acidente que o deixe incapaz para o serviço ativo temporariamente ou permanentemente.

Diante desse risco iminente de ficar incapacitado devido a atividades inerentes à profissão, uma problemática surge pelo simples exame do art. 31, § 2º, a, da Lei do Serviço Militar, tendo em vista que essa norma determina a desincorporação e exclusão do militar temporário por moléstia em consequência da qual o incorporado venha a faltar ao serviço durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não.

2. DESINCORPORAÇÃO EM VIRTUDE DE INCAPACIDADE QUE AFASTE O MILITAR TEMPORÁRIO DO SERVIÇO POR MAIS DE 90 DIAS.

O militar temporário é aquele servidor do Exército Brasileiro detentor de regime jurídico diferenciado e precário (Perin, 2006, p. 6), que pode atingir o tempo máximo de oito anos no serviço ativo mas, para manter o seu vínculo com as Forças Armadas, anualmente, deve satisfazer critérios objetivos de saúde, aspectos físico, cultural, psicológico e moral, bem como critérios subjetivos ao ter que atender ao juízo discricionário do administrador público militar.

Ocorre que, a legislação aplicável a esta categoria de servidores, qual seja a Lei do Serviço Militar, estabelece que caso, durante percurso da carreira, o militar temporário seja acometido por uma moléstia, que o afaste do serviço ativo por durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, o seu vínculo pode ser interrompido, sendo desincorporado e excluído.

Tal hipótese de passagem para inatividade do militar temporário está prevista no art. 31, § 2º, a, da Lei do Serviço Militar, bem como no art. 140, 1, do Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966 que Regulamenta a Lei do Serviço Militar:

Art 31. O serviço ativo das Fôrças Armadas será interrompido:

[...]

b) pela desincorporação;

[...]

§ 2º A desincorporação ocorrerá:

a) por moléstia em conseqüência da qual o incorporado venha a faltar ao serviço durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, hipótese em que será excluído e terá sua situação militar fixada na regulamentação da presente Lei;

Art. 140. A desincorporação ocorrerá:

1) por moléstia, em conseqüência da qual o incorporado venha a faltar ao serviço durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, durante a prestação do Serviço Militar inicial;

Importante salientar que tal situação acontece também com os Oficiais temporários convocados matriculados em órgãos de Formação de Reserva e aos incorporados que se encontrem prestando o Serviço Militar sob outras formas e fases, como o engajado e o reengajado, conforme art. 32 da Lei 4.375/64 e art. 138, parágrafo único do Decreto nº 57.654/66, respectivamente.

À luz do art. 3º, 9, do Decreto nº 57.654/66 que Regulamenta a Lei do Serviço Militar, desincorporação é o ato de exclusão da praça do serviço ativo de uma Força Armada antes de completar o tempo do Serviço Militar inicial, ressalvados os casos de anulação de incorporação, expulsão e deserção. 

Embora pareça simples, o caos normativo nos prega uma peça, pois o Regulamento Interno dos Serviços Gerais do Exército (RISG), Portaria nº 816, de 19 de dezembro de 2003 alterado pela Portaria nº 749, de 17 de setembro de 2012, ao arrepio da Constituição Federal de 1988[9], também regulamenta a Lei do Serviço Militar e dispõe no art. 428, § 2º que nos casos em que for aplicada a desincorporação, ao desincorporado, embora já excluído do serviço ativo, será garantido o encostamento à organização militar (OM) de origem unicamente para fins de tratamento do problema de saúde que deu origem à incapacidade, em organização militar de saúde (OMS), até a estabilização do quadro.

E não é só: o art. 429 da referida Portaria viola ainda mais a Constituição ao determinar à administração pública militar que caso o militar temporário esteja incapaz em razão de acidente ou doença com relação de causa e efeito com o serviço, passará a condição de agregado e adido (situação fixada no Estatuto dos Militares), contudo caso a moléstia não tenha relação de causa e efeito com o serviço passará à situação de encostado (situação fixada em Portaria) à OM de origem unicamente para fins de tratamento do problema de saúde que deu origem à incapacidade, em OMS, até o seu restabelecimento.

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Importante salientar que, de acordo com entendimentos do STJ[10], para ter o direito ao amparo estatal seja pela agregação/adição (incapacidade temporária) ou até mesmo a reforma (incapacidade definitiva ou invalidez), é “desnecessária a existência do nexo causal entre a moléstia e o serviço castrense. Para tanto, basta que a enfermidade tenha se manifestado durante o período de prestação do serviço militar”.

Destarte, a agregação [1], conforme artigos 80 e 81 do Estatuto dos Militares “é a situação transitória, na qual o militar da ativa deixa de ocupar vaga na escala hierárquica de seu corpo, quadro, arma ou serviço, nela permanecendo sem número” e será considerado para todos os efeitos na ativa (ABREU, 2010, p. 457). E, a adição significa “a situação especial e transitória do militar que, sem integrar o efetivo de uma OM, está a ela vinculado por ato de autoridade competente” (ABREU, 2010, p. 470).

Vale dizer que a consequência da agregação por incapacidade é o fato do militar ficar “adido para efeito de alterações e remuneração, à organização militar que lhe for designada, continuando a figurar no respectivo registro, sem número, no lugar que até então ocupava” (ABREU, 2010, p. 458).

Já o encostamento, previsto no art. 3º, 14, do Decreto 57.654/66, é o “ato de manutenção do convocado, voluntário, reservista, desincorporado, insubmisso ou desertor na Organização Militar, para fins específicos, declarados no ato (alimentação, pousada, justiça etc.)”. In casu, verificamos pelo exame do RISG que “ao desincorporado ou ao licenciado, embora já excluídos do serviço ativo, será garantido o encostamento à OM de origem unicamente para fins de tratamento do problema de saúde que deu origem à incapacidade, em OMS, até o seu restabelecimento”.

Isto é, uma vez lesionado o pé esquerdo, o militar temporário encostado só terá direito ao tratamento médico do pé esquerdo, retirando: o tratamento de toda e qualquer lesão ou doença alheia à moléstia que deu origem à incapacidade, a remuneração, a possibilidade de adquirir medicamento, a capacidade financeira de transportar-se para os locais de tratamento, bem como perdendo a condição de beneficiário do Fundo de Saúde do Exército, eis que o art. 12, I e VIII da Portaria nº 653, de 30 de Agosto de 2005 determina que somente os contribuintes são beneficiários dos Fundos de Saúde, qualidade que não se aplica ao encostado porque não percebe soldo.

Outrora, verificamos a distinção de tratamento legislativo entre militares temporários e efetivos, e constatamos que aos militares efetivos é aplicado o Estatuto dos Militares, enquanto que aos militares temporários são aplicadas as disposições da Lei do Serviço Militar e seu Regulamento.

Com essa distinção podemos concluir todo esse esforço investigativo, certificando assim o tratamento discriminatório e desigual para servidores em situações iguais, pois como o Estatuto dos Militares não versa sobre o encostamento, mas tão somente sobre a agregação e adição, aos militares efetivos acometidos por moléstia com ou sem relação de causa e efeito com o serviço em virtude da qual venha a faltar 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, será aplicado o instituto da agregação e adição, para fins de tratamento de saúde e remuneração.

Porém, aos militares temporários na mesma situação será aplicado o instituto do encostamento, porquanto que esse somente se encontra previsto nos Regulamentos, com aparência inconstitucional, da Lei do Serviço Militar.

Nesse diapasão, nos cabe verificar se a autoridade militar competente deve aplicar a desincorporação/exclusão e consequente encostamento aos militares temporários acometidos por moléstia em virtude da qual venha a faltar 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, cumprindo a estrita legalidade à Lei do Serviço Militar e seus Regulamentos, ou se deve determinar a agregação e adição a esses militares tratando-os da mesma forma que os militares efetivos aplicando nesta monta à juridicidade.

3. ATO ADMINISTRATIVO DA DESINCORPORAÇÃO: DA LEGALIDADE À JURIDICIDADE ADMINISTRATIVA

O Estado tem o dever constitucional (art. 196 da CFRB/88) de garantir a saúde de todos “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Em consonância com a determinação da Carta Magna, o art. 50, IV, e, do Estatuto dos Militares, dispõe que os militares do Exército Brasileiro têm o direito de assistência médico-hospitalar para si e seus dependentes, assim entendida como o conjunto de atividades relacionadas com a prevenção, conservação ou recuperação da saúde, abrangendo serviços profissionais médicos, farmacêuticos e odontológicos, bem como o fornecimento, a aplicação de meios e os cuidados e demais atos médicos e paramédicos necessários.

Todavia, embora tenhamos todo arcabouço jurídico garantindo a assistência à saúde do militar temporário tanto pela Constituição Federal e Estatuto dos Militares, a Lei do Serviço Militar no seu art. 31, § 2º, a, prevê que o militar temporário poderá ser desincorporado e excluído por moléstia em consequência da qual venha a faltar ao serviço durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, hipótese em que será excluído e, terá sua situação militar fixada na regulamentação da presente Lei.

Ocorre que, a regulamentação da Lei do Serviço Militar, realizada tanto pelo Decreto nº 57.654/66 como pelo Regulamento Interno dos Serviços Gerais do Exército (RISG), Portaria nº 816, de 19 de dezembro de 2003 alterado pela Portaria nº 749, de 17 de setembro de 2012, na contramão da ordem constitucional, determina que nos casos em que for aplicada a desincorporação, ao desincorporado, embora já excluído do serviço ativo, será garantido o encostamento à organização militar (OM) de origem unicamente para fins de tratamento do problema de saúde que deu origem à incapacidade, em organização militar de saúde (OMS), até a estabilização do quadro.

A celeuma é vivenciada diuturnamente pelos Comandantes de Organizações Militares (OM) quando diante de situações desse tipo têm de tomar duas das seguintes decisões: aplicar a legalidade e desincorporar/excluir o militar temporário, passando-o à situação de encostado, retirando remuneração, alterações, amparando-o somente à lesão/doença que deu origem à incapacidade, conforme determina a Lei do Serviço Militar e seus regulamentos, ou aplicar a juridicidade e determinar a agregação/adição, para fins de remuneração e tratamento de saúde até a efetiva recuperação, tal como acontece com os militar efetivos, respeitando os ditames da Constituição e Estatuto dos Militares, que são normas competentes para reger sobre o assunto.  

É latente que vivemos a era da interpretação neoconstitucionalista do Direito, essa que Prieto Sanchís, estimulado pelas teorizações de Robert Alexy, identifica como postura teórica que possui “mais princípios que regras; mais ponderação que subsunção; mais Constituição que lei; mais juiz que legislador; e pela coexistência de uma constelação plural de valores, por vezes contraditórios, antes que homogeneidade ideológica” (WOLKMER e MELO, 2013).

Em época em que a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é característica (BARROSO, 2005), maior tarefa não há para o administrador público militar, que tem a boa-fé e a probidade como pilares, senão fazer com que seus atos sejam compatíveis com os valores e princípios elencados na Constituição, dentre os quais destacam-se: o objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV, da CFRB/88), o direito e garantia fundamental de que todos são iguais perante a lei (art. 5º da CFRB/88), bem como que o direito social à saúde (art. 6º da CFRB/88) que deve ser garantido pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução de doenças, outros agravos e a ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CUNHA Jr, 2013, p. 1250).

O princípio da legalidade, decorrente do Estado de Direito e fundamentalmente garantista, está elencado em diversas passagens da Constituição (art. 5, II e art. 37 da CFRB/88) buscando atender os valores de justiça, segurança jurídica e, obrigando a vinculação do Estado às normas de conduta que produz. Como corolário lógico dessa vinculação temos o objetivo máximo desse princípio, qual seja evitar o arbítrio e impedir que os indivíduos sejam surpreendidos com ações estatais que não foram autorizadas e/ou com exigências que não eram previamente conhecidas ou estipuladas (FONTE, 2009).

Porém, a legalidade está em crise desde os meados do século XX, quando os nazistas alegaram o estrito cumprimento do dever legal ao serem julgados pelos crimes de guerra (FONTE, 2009).

A inflação legislativa, a ampliação das tarefas do Estado e principalmente a constitucionalização do direito convola a legalidade em juridicidade administrativa deixando a lei de ser “o fundamento único e último da atuação da Administração Pública para se tornar apenas um dos princípios do sistema de juridicidade instituído pela Constituição” (BINENBOJM, 2006, p. 70).

Assim, a lei, mecanismo de justiça e garantia, já não presta aos mesmos fins (FONTE, 2009). Daí porque emerge a necessidade de adequar a forma de interpretar o Direito por meio da superação da noção de legalidade à de juridicidade.

Este princípio, ora apresentado como solução provisória para o caso em estudo, extraídos sem dificuldades dos princípios da supremacia da constituição e efetividade da constituição, visa permitir que a administração pública paute sua atividade pela normatividade constitucional, fundamentando-se nos princípios e regras inseridos na Lei Maior, especialmente os direitos e garantias fundamentais (FONTE, 2009).

A vantagem desse princípio é que no Estado contemporâneo, onde a capacidade normativa do legislador é reduzida, permite-se ao administrador que a tomada de decisão seja legítima para além da estrita legalidade, observando os mandamentos constitucionais (FONTE, 2009). Frise-se que não se defende aqui a ultrapassagem sem medida da legalidade, porquanto que ainda continua sendo um parâmetro fundamental, mas sim uma releitura desse princípio, pois é evidente que “em outros casos, a lei será o fundamento básico do ato administrativo, mas outros princípios constitucionais, operando em juízos de ponderação com a legalidade, poderão validar condutas para além ou mesmo contra a disposição legal (BINENBOJM, 2006, p. 70-71).

Visto que à luz do ordenamento jurídico do nosso Estado moderno a juridicidade deve ser aplicada pelo administrador público, o que se pretende demonstrar aqui é que ao se deparar com casos de militares temporários do Exército Brasileiro com moléstia que o afaste do serviço por 90 (noventa) dias ou mais, seja determinado a passagem à condição de agregado/adido para fins de tratamento de saúde e remuneração, tal como acontece com o militar efetivo, respeitando a ordem constitucional em vigor, em especial o princípio da isonomia, direito à saúde, bem como a competência para legislar sobre a matéria, aplicando a juridicidade e superando a legalidade estrita.

Sobre a isonomia aplicada aos militares efetivos e temporários do Exército Brasileiro veja a lição de Silva (2012, p. 58):

Não há uma razão forte e suficiente para autorizar um tratamento desigual entre dois militares que se encontram em uma hipotética e semelhante situação de incapacidade proveniente de uma doença sem relação de causa e efeito com o serviço apenas pela circunstância de se tratar de uma doença x ou y..

Dando dignidade a todos os estudos trazidos até aqui, o Poder Judiciário vem dando corpo a esse entendimento e determinando que os militares temporários, encostados ou apenas licenciados, sejam reintegrados às fileiras do Exército à condição de agregado/adido para fins de tratamento de saúde e remuneração. Veja:

ADMINISTRATIVO. MILITAR TEMPORÁRIO. DESINCORPORAÇÃO. NULIDADE DO ATO. PORTADOR DE TUBERCULOSE EXTRA PULMONAR. PREVISÃO DE TRATAMENTO DE SEIS MESES. DESINCORPORAÇÃO APÓS DOIS MESES. REINCORPORAÇÃO. CONCLUSÃO DO TRATAMENTO. EFEITOS FINANCEIROS. DANOS MORAIS. 1. Militar temporário do Exército, acometido de tuberculose extra pulmonar, com previsão de tratamento de seis meses, foi desincorporado após pouco mais dois meses de tratamento, sem nova inspeção de saúde, sob o fundamento do art. 31, § 2º, a, da Lei 4.375/64 (a desincorporação ocorrerá por moléstia em consequência da qual o incorporado venha a faltar ao serviço durante 90 dias, consecutivos ou não). 2. O militar que está inapto temporariamente para atividades civis, como era o caso do autor, acometido por tuberculose, deve ser mantido em tratamento e adido à organização militar até que recupere sua aptidão, o que não foi observado. 3. Efeitos financeiros da reincorporação na graduação que ocupava quando na ativa, devendo cessar com o primeiro licenciamento do grupamento de soldados que ingressaram no serviço militar na mesma data do autor (agosto de 2009). 4. Devida indenização por danos morais, no valor de R$ 10.000,00, na medida em que a desincorporação do autor, de forma precipitada e sem amparo legal, o privou de sua fonte de sustento, desamparando-o quando estava doente e extremamente necessitado de recursos para compra de medicamentos, sem nenhuma condição de procurar trabalho enquanto ainda convalescente da tuberculose. 5. Apelação e remessa oficial não providas. Sentença mantida.(TRF-1 - AC: 00103371920114014100, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: 28/11/2018)

ADMINISTRATIVO. MILITAR TEMPORÁRIO. INCAPACIDADE NO MOMENTO DO LICENCIAMENTO. RECONHECIMENTO PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. SÚMULA Nº 7/STJ. REINTEGRAÇÃO PARA TRATAMENTO DE SAÚDE. POSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 83/STJ.

1. Reconhecido no acórdão recorrido, com amparo expresso em elementos de prova, que o autor, ao tempo de seu licenciamento do Exército, embora não incapacitado definitivamente, não se encontrava apto para as atividades militares, porquanto necessitaria ainda de assistência médica a fim de que pudesse recuperar sua higidez física, a alegação em sentido contrário, a motivar insurgência especial, requisita necessário exame dos aspectos fácticos da causa, com a consequente reapreciação do acervo fáctico-probatório, hipótese que é vedada em sede de recurso especial, a teor do enunciado nº 7 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

2. "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial." (Súmula do STJ, Enunciado nº 7).

3. No momento do seu licenciamento, encontrando-se o militar temporariamente incapacitado em razão de acidente em serviço ou, ainda, de doença, moléstia ou enfermidade, cuja eclosão se deu no período de prestação do serviço, tem o direito de ser reintegrado às fileiras de sua respectiva Força, para receber tratamento médico, até que se restabeleça (artigo 50, inciso IV, alínea "e", da Lei nº 6.880/80 e Portaria nº 816/2003 - RISG/Ministério da Defesa). Precedentes.

4. Agravo regimental improvido.

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL Nº. Nº 1.186.347 – S. Ministro HAMILTON CARVALHO; Primeira Turma; DJ 22/06/2010; DP 03/08/2010

MILITAR. ANULAÇÃO. LICENCIAMENTO. INCAPACIDADE TEMPORÁRIA. ADIDO. REINTEGRAÇÃO PARA FINS DE TRATAMENTO DE SAÚDE. PRECEDENTES.

1. No caso dos autos, conforme se extrai do aresto recorrido, a autor foi licenciado dos quadros do Exército, tendo em vista a sua limitação física temporária, sem o adequado tratamento de saúde do qual teria direito.

2. Assim, mostra-se inegável, portanto, o direito do recorrente a reintegração dos quadros militares como adido para fins de tratamento de saúde. Isso porque, a jurisprudência desta Corte Superior entende que, em se tratando de militar temporário ou de carreira, em vista da debilidade física acometida durante o exercício de atividades castrenses, o ato de licenciamento é ilegal, fazendo jus, o servidor militar, a reintegração aos quadros castrenses para tratamento médico-hospitalar, a fim de se recuperar da incapacidade temporária.

3. Recurso especial provido.

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL Nº. 1.240.943 - RS. Ministro MAURO CAMPBEL MARQUES;

ADMINISTRATIVO. MILITAR TEMPORÁRIO. INCAPACIDADE. TRATAMENTO MÉDICO. REINTEGRAÇÃO. POSSIBILIDADE.

1. O militar temporário ou de carreira que, por motivo de doença ou acidente em serviço, tornou-se temporariamente incapacitado para o serviço ativo das Forças Armadas, faz jus à reintegração como adido, para fins de tratamento médico adequado. Precedentes.

2. Agravo regimental improvido.

AgRg no REsp 1137594 / RS AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2009/0082201-9; Relator Ministro JORGE MUSSI; Quinta Turma; DJ 10/08/2010; DP 13/09/2010

Assim, ao fim desse esforço investigativo, uma solução ao menos provisória se apresenta para a questão em comento, que é a superação da noção de legalidade estrita em detrimento da juridicidade, deixando o Exército Brasileiro de aplicar o dispositivo que autoriza a desincorporação/exclusão do militar temporário acometido por moléstia que afaste do serviço por 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, com o consequente encostamento, eis que esta determinação é aparentemente inconstitucional, para então aplicar a esses casos a agregação/adição igualando a forma de tratamento dispendida aos militares efetivos, corroborando os mandamentos constitucionais e evitando que o direito a saúde e o direito de tratamento isonômico sejam violados, bem como que os cofres públicos sejam afetados pela judicialização da saúde no âmbito das Forças Armadas.

CONCLUSÃO

O militar temporário do Exército Brasileiro faz parte de uma categoria de servidores que possui regime jurídico diferenciado e precário, assim sendo, a legislação de regência possui mecanismos para camuflar a ilegalidade e abandono desta classe, tal como a desincorporação e consequente encostamento por moléstia que o afaste do serviço por 90 dias.

Ocorre que o paradigma da legalidade em sentido estrito está cada vez mais superado pelo advento da constitucionalização do direito e da interpretação neoconstitucionalista, fazendo prevalecer o princípio da juridicidade e obrigando o administrador público a observar os princípios e normas elencados na ordem constitucional então vigente para tomada de decisões.

Dessa maneira, ao se deparar com militares temporários do Exército acometidos por moléstia, comprovadamente ocorrida durante o período de prestação do serviço militar, em virtude da qual falte ao serviço por 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, à administração pública militar não há outra forma de respeitar os ditames constitucionais senão empregar a mesma forma de tratamento dispendida ao militar efetivo, qual seja determinar a agregação e adição para fins de tratamento de saúde e remuneração, uma vez que a desincorporação e consequente encostamento possuem inconstitucionalidades latentes, como violação à isonomia, direito de acesso à saúde e incompetência legislativa sobre a matéria.

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Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Possui pós-graduações em Direito Público (Constitucional, Administrativo e Tributário) pelo Centro Universitário Estácio e em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Atualmente cursa especialização em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. É 1 Tenente R2 do Exército Brasileiro e membro ativo na Comissão Nacional de Direito Militar da ABA (Associação Brasileira de Advogados), além de integrar a Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Compõe o Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais da UNIFIEO e da Editora Mente Aberta. Atua como Professor de Direito Administrativo na Múltipla Difusão do Conhecimento, onde também coordena o curso preparatório para a 2 fase do Exame da OAB em Direito Administrativo. Advogado contratado pelas Obras Sociais Irmã Dulce, com experiência em Direito Administrativo e Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Jamil Pereira. A desincorporação do militar temporário do Exército devido a moléstia que o afaste do serviço por 90 dias:: da legalidade à juridicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6095, 9 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78138. Acesso em: 22 dez. 2024.

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