3. AS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 13.431/2017 COMO FORMA DE EVITAR A REVITIMIZAÇÃO: UM ESTUDO NO MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA ACERCA DO ATENDIMENTO PRESTADO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Há casos de violência sexual infantil em que o Estado, mesmo com a legislação vigente atualmente é omisso, devido às políticas deficitárias, pelo fato de que na maioria das vezes os casos de abuso ocorrem no núcleo familiar, essas informações acabam não chegando ao domínio público, motivo pelo qual as vítimas sentem-se desprotegidas e desamparadas.
Assim, insta ressaltar que no ano de 2003, por iniciativa do Desembargador Dr. Daltoé Cezar10, o qual atuava na época como Juiz de Direito, foi implantado o método de oitiva para crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual, ou seja, o denominado “depoimento sem dano”, projeto piloto, que foi adotado pelo Estado do Rio Grande do Sul, sendo este pioneiro ao aplicar a sistemática.
Contudo, mesmo se tratando de um projeto piloto a sistemática do chamado Depoimento sem Dano passou a ser realizada, como se verifica através da decisão em sede de apelação no Tribunal de Justiça do Estado, onde o julgador reconheceu a técnica do depoimento especial, atualmente reconhecida por essa nomenclatura no ordenamento jurídico:
APELAÇÃO-CRIME. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR (3X). CONTINUIDADE. PADRASTO. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS DE IDADE. 1. PRELIMINARES. NULIDADE DO FEITO. INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE. INOCORRÊNCIA. Lei 9.896/93 que previu a possibilidade de ampliação da competência dos Juizados Regionais de Infância e da Juventude através de disposição legal expressa. Lei 12.913/08 que conferiu ao COMAG a possibilidade de, excepcionalmente, atribuir competências adicionais àqueles Juizados. Editais nº 04/2008 e 058/2008 do COMAG atribuindo ao JIJ a competência para julgamento dos crimes sexuais cometidos, tão somente, contra crianças e adolescentes. Incidente de Inconstitucionalidade nº 70042148494, apreciado pelo Colendo Órgão Especial deste TJ/RS que entendeu pela constitucionalidade da Lei 12.913/08. Matéria que, embora controvertida no âmbito do E. STJ, já foi analisada pela Suprema Corte, conferindo validade à competência do JIJ para julgar delito praticado contra criança e adolescente. Precedente. Nulidade inocorrente. Preliminar rejeitada. MEDIDA CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. Faculta-se ao magistrado singular, inclusive de ofício, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. Caso concreto em que presentes todos os requisitos, foi deferida a inquirição da vítima antes de iniciada a persecução penal, sem insurgência defensiva. Urgência que se evidenciava pela possibilidade de o transcurso do tempo prejudicar a memória da menor. Necessidade, adequação e proporcionalidade que decorrem da pouca idade da ofendida - 6 anos à época dos fatos -, devendo privilegiar-se o momento onde ainda íntegra sua lembrança, utilizando-se a sistemática do Depoimento sem Dano para prevenir prejuízos psicológicos. Não violação dos princípios do contraditório e ampla defesa, presentes o réu e sua advogada à audiência respectiva. Prejuízo não demonstrado. Prova idônea. Preliminar rechaçada. [...] APELO IMPROVIDO.
(Apelação Crime, Nº 70059088534, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch, Julgado em: 09-03-2016).
Porém, foi somente na data de 04 de abril de 2017, que foi sancionada a Lei nº 13. 43111, a qual regulamentou o novo sistema de garantia de direitos para a criança e ao adolescente vítima ou testemunha de violência, trazendo a regularização do Depoimento Especial12, e da escuta especializada13, definidos nos artigos 7º e 8º da referida lei.
Assim, os estados brasileiros com o advento da nova lei, tiveram um ano para se adequar a nova sistemática de inquirição. Nessa seara, Potter (2019, p. 31) afirma:
A lei contempla as recomendações baseadas em normativas internacionais e na prática de tomada de depoimentos especiais em distintos países procurando suprir a falta de legislação que proteja os direitos de crianças e adolescentes expostos ao sistema de justiça, seja como vítimas, seja como testemunhas de violência física, psicológica, sexual e institucional.
Assim, a legislação visa proporcionar às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual, uma maneira menos traumática de relatar o ato sofrido, evitando dessa maneira, a chamada revitimização, onde não se faz necessário que a vítima tenha que relembrar o acontecido, cada vez que vai relatar sobre. Nessa mesma linha a Childhood Brasil aponta:
A Lei 13.431 inova por estabelecer mecanismos e princípios de integração das políticas de atendimento e propõe a criação de Centros de Atendimento Integrados para crianças e adolescentes. Serão dois tipos de procedimento: escuta especializada, quando ocorre nos serviços de saúde e assistência social onde a criança será atendida; e depoimento especial, quando a criança então fala o que aconteceu, mas num ambiente acolhedor, por profissional capacitado no protocolo de entrevista.
Além disso, a implementação desse novo sistema de garantias visa aprimorar as legislações vigentes a fim de garantir os direitos à criança e ao adolescente expostos a violência aos diversos tipos de violência, seja ela sexual, física, psicológica ou institucional.
Nessa linha, Potter (2019, p. 28) destaca:
O que existe no modelo tradicional de oitiva é a formulação e reformulação constrangedora de perguntas e insinuações, normalmente utilizadas de forma imprópria, inadequada e infrutífera, levando a vítima a sofrer duas vezes o ato de violência (abuso sexual, que é a vitimização primária, e após, o abuso psicológico na esfera judicial, que é a vitimização secundária).
No entanto, a partir das alterações proposta pela lei, a escuta especializada e o depoimento especial, segundo Digiácomo (2018, p. 6) é de:
A ideia básica é erradicar, de uma vez por todas, o amadorismo no atendimento dessa complexa e difícil demanda, agilizando e tornando mais eficiente a atuação dos órgãos de repressão e proteção, buscando a responsabilização dos autores de violência na esfera criminal, sem causar danos colaterais às vítimas ou testemunhas. [...] Para tanto, a Lei institui, basicamente, 02 (duas) formas igualmente válidas para coleta de prova junto a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência no âmbito do inquérito policial ou processo judicial: a escuta especializada e o depoimento especial, a serem realizados por profissionais qualificados, em local adequado e respeitando o “tempo” e os desejos e opiniões da criança/adolescente (art. 5º), passando a escuta perante a autoridade policial ou judiciária a ser reconhecida como um direito daquela, e não uma obrigação.
Verifica-se, que o objetivo maior desses dois novos mecanismos é oportunizar as vítimas um atendimento humanizado e acolhedor evitando assim que ela reviva por diversas vezes o abuso sofrido, bem como uma forma de evitar a repetição reiterada dos fatos nos diversos atendimentos que porventura ela tenha que passar.
Sendo assim, é indispensável diferenciar os dois mecanismos regulamentados pela lei, ou seja, a escuta especializada não se trata de procedimento judicial, já o depoimento especial é utilizado judicialmente. Assim, de acordo com Potter (2019, p. 134): “A Lei 13.431/17 prevê expressamente duas modalidades de intervenção para a escuta de crianças e adolescentes: uma não judicial, que denomina de escuta especializada, e a outra judicial, o depoimento especial propriamente dito”.
Além disso, Potter (2019, p.134) ressalta “[...] escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção”. Assim, de acordo com o referido autor, quando se trata da escuta especializada:
[...] em espaço físico apropriado e acolhedor (artigo 10 da lei), e na presença de profissional capacitado, a escuta especializada tem o propósito de reunir elementos mínimos que indiquem a ocorrência do fato, sua dinâmica (ainda que não pormenorizada, mas o suficiente para que, de pronto, sejam feitos os encaminhamentos necessários à rede de atendimento) e – sempre que possível- sua autoria.
Com relação ao depoimento especial Potter (2019, p. 35) destaca que:
A metodologia do Depoimento Especial requer: a redução de vezes que a criança/adolescente testemunha; um espaço acolhedor e amigável; a existência de uma equipe multidisciplinar treinada em entrevista forense com crianças; a gravação da entrevista com objetivo de apensá-las ao processo[...]
Além disso, a respeito do depoimento especial, Digiácomo (2018, p.37) também ressalta:
Além de evitar a “revitimização”, a especialização dos profissionais e a sistemática previstas nesta Lei visam acabar, de uma vez por todas, com a desconfiança que ainda reina quando da oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, que muitas vezes são tratadas (de forma até mesmo ilegal/inconstitucional, por afronta ao disposto no art. 227, caput, parte final da CF e arts. 5º, 17 e 18, do ECA), como “seres inferiores” e/ou “indignos de crédito” quando chamados a relatar a violência sofrida ou testemunhada.
No entanto, vale mencionar também que há diferentes posicionamentos quanto à sua implementação, ou seja, posições contrárias a essa técnica. Um deles é de que apesar dessa técnica ter o intuito de proteger o relato das crianças e adolescentes vítimas, o depoimento pode ser considerado apenas como forma de obter maior número de incriminação e condenação para o poder judiciário, conforme o entendimento de Ferreira e Azambuja (2011, p. 83):
Entendemos que, com a metodologia de inquirição proposta, busca o Substitutivo, principalmente, a responsabilização do agressor, com o objetivo de não deixar impunes os crimes contra crianças e adolescentes nas situações em que não existam terceiros adultos como testemunhas, ou quando não haja indícios materiais revelados pela perícia médica. No entanto, é legítimo perguntar se os fins justificam os meios. Ou seja, para reparar um dano podemos causar outro?
Assim, de acordo com esse entendimento, deve ser evitada qualquer ação voltada à responsabilização do agressor levando em consideração unicamente o depoimento da vítima.
Contudo, há também a possibilidade de que o ouvinte que está diante da vítima faça uso de técnicas que a levem a sugerir um suposto abuso, ou fazer distorção em seu relato, dessa maneira trazendo falsas memórias. Diante disso, todo cuidado é pouco durante a o relato da vítima. Nessa linha, é o que destacam Villela e Santos (2018, p. 36):
Assim, no contexto jurídico, o relato de crianças ou adolescentes assume grande importância, de modo que a forma de obtenção deste relato deve ser cercada de cuidados, obedecendo a critérios específicos, com uso de protocolos que garantam a proteção da vítima ou testemunha infantojuvenil, respeitando o ponto de vista ético, técnico e científico. A primeira preocupação é com o bem estar da criança e do adolescente e em seguida com a qualidade da prova testemunhal produzida. Portanto, a forma como um relato é obtido influencia determinantemente na sua validação enquanto prova.
Apesar de existir posicionamentos divergentes sobre essa questão o que não se pode deixar de destacar é que esse tipo de violência ocorre diariamente e cada vez mais em números alarmantes.
Assim, segundo publicação no site do Instituto Patrícia Galvão, o Disque 100, recebeu durante o ano de 2018, um total de 17.093 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no país, sendo 13.418 relacionadas a abuso sexual e 3.675 à exploração sexual; no recorte por gênero, meninas são a maioria das vítimas de exploração sexual (75,10%) e de abuso sexual (73,44%); e quase a totalidade dos abusos acontecem dentro de casa, sendo que 70% dos casos têm como autor o pai, o padrasto ou a mãe da criança.
De acordo, também, com o Portal O Dia, publicado no dia 23 de maio de 2019, “Familiares e pessoas próximas às vítimas são os principais agressores em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”. Acrescentou ainda, “em 37% dos casos divulgados, os agressores eram padrastos, pais, mães, avós e outros parentes”. A pesquisa revelou também que “as meninas são as principais vítimas de violência sexual (76%) dos casos. Já os principais locais apontados como cenário do abuso são, pela ordem: casa da vítima (38%), casa do agressor (18%) [...]”.
Dessa forma, esses dados reforçam a importância de serem implementados os mecanismos e princípios de integração das políticas de atendimento as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, visto a vulnerabilidade que esse grupo permanece exposto, principalmente, quando esses números apresentam que o maior percentual acontece dentro de casa, ou seja, por quem tem o dever de cuidado e proteção.
Por certo, de acordo com as informações, a legislação vem sendo aplicada, contudo é imprescindível que ao aplicar ambas as técnicas zelar pela proteção das crianças e adolescentes, visto serem pessoas em desenvolvimento, além de serem detentoras de direitos especiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da pesquisa realizada, foi possível compreender que as crianças e adolescentes fazem parte da maior população suscetível a situações de violência.
Então, a demanda de violência praticada contra crianças e adolescentes abrangem situações que tornam ainda mais difícil o seu enfrentamento, especialmente quando estes não desfrutam de uma boa estrutura familiar, razão pela qual o ambiente doméstico se torna alvo da prática de crimes.
Portanto, apesar da pouca idade das crianças e da dificuldade que possuem de trazer detalhes sobre a forma de violência a que teriam sido expostas em relatos verbais, através de relatórios e outros meios de provas que evidenciam o comportamento das crianças, trazem as consequências da violência no desenvolvimento psicológico e físico.
Ainda que o Estado esteja contribuindo com a nova legislação, trazendo inovações técnicas que possibilitem uma melhora no atendimento à população infantojuvenil que tenha sofrido qualquer tipo de violência, principalmente àquelas que sofreram abuso sexual proporcionando uma maior acolhida, o número de denúncias ainda é alarmante.
As diversas inquirições, pela vítima ou pela testemunha pode ser uma experiência traumatizante, ainda mais quando se trata de crimes sexuais que ocorrem durante a infância e adolescência. Sendo assim, a implementação do órgão de referência torna-se indispensável para a realização do disposto em lei, contudo, mesmo não havendo ainda a implementação do referido órgão o fato de já estarem sendo aplicadas as técnicas da escuta especializada e o depoimento especial oportuniza um atendimento mais humanizado e, assim, ameniza um pouco os efeitos danosos da violência sofrida.
Portanto, é imprescindível que os profissionais estejam capacitados para realizar tal atendimento. Caso contrário, o método que objetiva evitar a revitimização da criança e do adolescente em situação de vulnerabilidade pode colaborar para a nova vitimização.
Diante disso, já existe uma integração por parte da rede de proteção garantindo um melhor atendimento às vítimas e testemunhas crianças ou adolescentes, não apenas de crimes sexuais, mas que tenha sofrido qualquer espécie de violência. De igual forma o depoimento especial vem ocorrendo.
Todavia, percebe-se a importância da família, do Estado e da sociedade zelar e respeitar os princípios da prioridade absoluta e da proteção integral, previstos na Constituição Federal de 1988 e no ECA, bem como fiscalizar os procedimentos realizados pelo sistema de justiça.