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A teoria das nulidades e o sobredireito processual

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"E não haverá consolo maior à alma de um juiz do que tanger o processo com inteligência e sabedoria, para, de suas mãos deslumbradas, ver florir a obra plástica e admirável da criação do justo, do humano, na vida"

(GALENO LACERDA)

I - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Desde o princípio da humanidade, que remonta a aproximadamente 2 milhões de anos, a vida em comum implica no relacionamento entre os seus membros. Os homens, necessariamente, eram compelidos a se relacionarem uns com os outros, embora essa tarefa, por vezes, fosse um pouco complexa e delicada.

A partir dessas relações, de natureza vária, nascem naturalmente normas de condutas espontâneas por parte dos membros que em sociedade convivem. Estas normas de condutas espontâneas algumas vezes são aceitas e absorvidas instantaneamente pelos seus membros como regras sociais, sendo acatadas pacificamente. Outras, no entanto, geram conflito e discordância, ante a não realização natural daquelas normas, acarretando a rotura das estruturas sociais. Desta relação íntima de sociedade e poder é que surge o direito(1), como fato eminentemente cultural, humano e social, tendente a pautar aquelas condutas dos homens.

A história nos demonstra que a vida humana e o próprio direito ao longo de todo esse período, especialmente nos últimos 500 anos, evoluíram de uma forma sem igual. Com a formação do "Estado" o direito havido desta relação de sociedade e poder é levado ao seu conhecimento, recebendo de sua parte acolhida e normatização. A finalidade do direito neste estágio, como ser normativo, é a de outorgar proteção ao homem e à sociedade.

Com a natural conseqüência da modificação do conceito de Estado estabeleceu-se o monopólio da jurisdição, e a possibilidade de ação e reação pelas próprias mãos dos titulares - a autotutela -, no sentido de que fosse observado e realizado o direito, foi eliminada. Daí a necessidade do processo judicial como meio para obtenção da tutela jurídica estatal(2).

Inquestionável, neste sentido, que diante do fato concreto de ter sido a jurisdição monopolizada pelo Estado, e que é através do processo que o direito é realizado, a ação de direito material, anteriormente permitida, só poderá ser exercida por intermédio da ação de direito processual, salvo raríssimas exceções(3). O dever de prestação jurisdicional por parte do Estado(4), uma vez provocado pelo interessado na solução do conflito, existente em sua relação jurídica material com outrem, desencadeará uma relação jurídica processual, relação esta que com a obra memorável de BÜLOW(5) possibilitou o reconhecimento da existência de outra relação, que não só aquela entre particulares, mas uma relação jurídica de direito público, entre Estado e particulares. Daí por que falar-se no vínculo que se estabelece no processo entre as partes e o juiz.

Dessa autonomia da relação jurídica - material e processual - decorreu conseqüentemente a autonomia do direito processual civil, que a partir da já mencionada obra do grande processualista alemão BÜLLOW(6) permitiu ao direito processual civil, antes mero apêndice do direito material, ser erigido à categoria de verdadeira ciência jurídica.

Em nosso sistema, este processo - meio pelo qual poderemos ver declarado e realizado todo e qualquer direito - deverá ser dirigido e conhecido pelos órgãos estatais encarregados pela prestação jurisdicional. Coube ao Poder Judiciário, um dos três poderes que compõem o nosso Estado, superando, pois, as reservas doutrinárias de MONTESQUIEU, que ainda tinha o juiz como um mero subordinado pronunciador das palavras da lei(7), essa missão, ou seja, aplicar e fazer incidir a norma legal a casos particulares, missão essa por demais importante para a satisfação dos interesses do cidadão e desenvolvimento da paz social.

Note-se que justamente por ser reconhecido como "Poder Judiciário", o papel que o juiz exerce na sociedade, julgando, até mesmo, atos dos demais poderes (Executivo e Legislativo), lhe confere reconhecida e necessária independência no exercício de suas funções. Tal situação, que tem o condão de afetar legitimamente o Poder Judiciário, atribuiu-lhe constitucionalmente o dever de realizar o direito através do processo. É o que prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito" (art. 5.º, XXXV, CRFB).

Pois bem, para que possamos fazer valer efetivamente este ideal, de realização da justiça, é que devemos adequar o direito ao fato concreto, e à própria natureza do direito posto em causa(8). Sabido que o juiz de direito tem em suas mãos, para a prática diuturna de seu mister, norteado por aquele ideal, um dos melhores Códigos de Processo, instrumento de declaração e realização do direito material e, sobremaneira, da justiça, não encontrando paralelo em nenhum outro, embora tenha que submeter-se, por vezes, ao inconveniente do preciosismo técnico de BUZAID.

Por isso, o juiz precisa e deve pensar. Inicialmente, porque não é um espectador de uma cena preconcebida; ao depois, porque deve pensar desatrelado da razão do jurista e do ser humano, que é por demais limitada, validando, corolariamente, a sua sintonia com o caso real posto em causa. Se é verdade que o direito nasce com a vida, no caso concreto, sendo, nesse aspecto, ser espiritual, como bem adverte o ilustre filósofo CARLOS N. GALVES(9), necessário se faz que o juiz tenha a presteza, a sensibilidade para captá-lo. Imprescindível, neste diapasão, que cada vez mais desconfie daquela razão limitada, porque ela se baseia em abstrações, não autorizando a concretização da realidade, que, em última análise, está no próprio indivíduo e tão-somente será encontrada através da intuição intelectual e sentimental e da exaltação do amor, considerada como a pedra de toque na arguta lição proclamada por GALENO LACERDA.

Talvez essa reflexão em paragens mais subjetivas, longe de solucionar o problema filosófico da escolástica, possibilite o reconhecimento da deficiência na aplicabilidade e interpretação da lei ao caso concreto com que vêm labutando os operadores do direito. A tarefa não é fácil, pelo contrário, é de difícil desate, mas não é impossível, pois as coisas não se mantêm inalteráveis(10), de acordo com a máxima de HERÁCLITO.

Avulta-se, desde logo, que não se está aqui defendendo, ou mesmo instigando a corrente do direito alternativo, que dá atenção maior ao problema do "sentimento de direito". Muito pelo contrário, o que na verdade se pretende é propiciar o debate, no sentido de que enfrentemos minudentemente o estudo, através de uma releitura aprofundada das leis processuais, veículos de realização da justiça, à luz de princípios e normas fundamentais que inspiram toda a sua estrutura.

Tudo isso de molde a evitar que o processo por si mesmo se conceba. A sentença é do próprio GALENO LACERDA: "Subverteu-se o meio em fim. Distorceram-se as consciências a tal ponto que se cria fazer justiça, impondo-se a rigidez da forma, sem olhos para os valores humanos em lide. (...) Insisto em dizer que o processo, sem o direito material, não é nada. O instrumento, desarticulado do fim, não tem sentido"(11).

Não é possível imaginarmos processo ou procedimento judicial algum que não reconheça a supremacia do direito, que se realiza, como sabido, precipuamente pelo princípio da legalidade, expressamente adotado pelo nosso ordenamento(12). Mais, não só o princípio da legalidade assegura a supremacia do direito, mas os valores superiores igualmente insculpidos na Carta Magna, que diretamente são juridicizados ou positivados como objetivos últimos do estado de direito(13). Esses princípios dispostos no preâmbulo são o ápice de toda a estrutura normativa da Constituição Federal e do Ordenamento, cabendo ao operador do direito extrair deles o seu fundamento, funcionamento e finalidade. Só assim estará assegurada a concretização da utópica democracia.

Logo, é preciso que enfrentemos o problema atual da processualística em sua verdadeira complexidade e dimensão, passo esse que já foi dado por GALENO LACERDA, através do sufrágio do despacho saneador e da sistematização da teoria das nulidades processuais, na sua famosa monografia intitulada Despacho Saneador, com efeito, identificando-as de maneira notável, sendo reconhecida como definitiva, e recebendo, como decorrência, a acolhida de E.D. MONIZ DE ARAGÃO, para quem, "foi GALENO LACERDA quem logrou desvendar o sistema adotado pela lei num trabalho similar ao do garimpeiro no localizar e revelar a pedra preciosa" (14).

Em que pese a admirável tarefa desvendada pelo culto mestre gaúcho, a insatisfação se fez presente, invadindo a sua alma com o passar dos anos. Diversamente da personagem histórica Dom Quixote, surgido de pura e imaginável fantasia de um artista, o fidalgo incansável GALENO LACERDA continua vivo e é real, abeberado em suprema harmonia de espírito e genialidade. Em sua longa jornada de mestre e ilustre professor, não poderia ser de forma diversa, diuturnamente vem desvendando a cada momento o verdadeiro e real sentido de todo processo, através de arguta condensação, síntese de amadurecimento do pensamento e do conhecimento, que vai gerando saudáveis conseqüências no decurso do tempo.

Com efeito, já em meados de 1976, intuiu a possibilidade de adequar todo o sistema legal do Código a realidades jurídicas diversas, proclamando, nessa ocasião, a importância fundamental da adequação como princípio unitário e básico para justificar a autonomia científica de uma teoria geral do processo(15).

A partir de então, iniciou-se um processo de criação maravilhoso por parte do professor GALENO LACERDA. Ao ensejo de conferência proferida em comemoração dos dez anos de vigência do atual Código de Processo Civil, sublinhou o notável processualista gaúcho a existência de uma nova categoria, relativizadora de todas as nulidades processuais. A esta categoria, após exaustiva análise da evolução da teoria das nulidades por ele sistematizada, denominou-a de sobredireito processual.

Os resultados que foram colhidos com essa intuitiva descoberta, como adiante se verá, foi a superação de um exame meramente formal e externo do processo. Como quem ergue um pano de fundo, GALENO LACERDA logrou desenrolar os dramas que dentro da alma do jurista habitam. Neste sentido, bem proclamou o notável processualista e poeta(16) uruguaio, verbis: "todos estamos habituados a manejar as formas do processo, seus prazos, suas condições, como se fossem fins em si mesmos. Esse ramo do direito, pois, nos surge, em sua aparência, como a forma solene, como o cerimonial da Justiça. A experiência, contudo, nos ensina que isso é unicamente o invólucro do fenômeno. Por baixo das formas existe um conteúdo profundo e angustioso, que necessita aflorar à superfície"(17).

Compreendido o processo como meio, instrumento, a sua estrutura e direção deve ser apontada a uma só finalidade, de molde a que se possibilite a busca da satisfação dos interesses sociais e legítimos, através da realização da justiça, com o que restará justificada a sua própria existência(18). Pensarmos em processo ou procedimento desatrelado desse ideal seria admitir-se a negativa de sua própria legitimidade.


II - SISTEMA DAS NULIDADES PROCESSUAIS

O sistema das nulidades processuais, como adotado pacificamente por todo nosso ordenamento, teve sua origem na brilhante tese de concurso de cátedra elaborada por GALENO LACERDA, em meados de 1953.

A elaboração dessa teoria deveu-se à inquietude do gênio de GALENO LACERDA em saber quando seria possível ou não sanar um vício ocorrente no processo. Iniciou com o exame daquela distinção já existente no nosso Código Civil. Aprofundando a análise no campo próprio do direito processual, que concebe a existência de nulidade relativa(19), diferentemente do direito civil, necessitaria o jurista saber a distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa, considerando cada um dos atos.

Para tanto, valendo-se do método indutivo, a partir dos fatos, em determinado momento GALENO LACERDA viu que não era possível distinguir as nulidades examinando o ato em si mesmo, mas sim descobrindo o motivo pelo qual ele é viciado, ou seja, por que não obedece ao preceito legal. Isto é, se há, como existe, distinção entre esses atos, a distinção reside única e exclusivamente na lei violada, na sua natureza.

Daí por que acentuar o mestre gaúcho que "o que caracteriza o sistema das nulidades processuais é que elas se distinguem em razão da natureza da norma violada , em seu aspecto teleológico" (20).

Neste sistema das nulidades processuais, como alhures referido, pacificamente aceito e adotado pela doutrina brasileira, os defeitos dos atos processuais podem acarretar três categorias de vícios(21): nulidade absoluta, nulidade relativa e anulabilidade, sendo que, para COUTURE, a nulidade relativa é a regra geral das nulidades dos atos no processo civil(22).

Para bem determiná-las, repise-se, mister que a distinção resida não nos atos em si, mas na natureza da norma atingida. Assim, se a norma violada for de natureza imperativa, cogente, estaremos diante de um vício essencial, que poderá acarretar nulidade absoluta ou nulidade relativa. Por outro lado, se a norma violada for de natureza dispositiva, estaremos aí diante de um vício que, embora também seja essencial, poderá acarretar anulabilidade. O ato nasce válido, eficaz, mas possui defeito, vício que, se for apresentado oportunamente em juízo pelo prejudicado, poderá ser tornado ineficaz, desconstituído.

A distinção entre as nulidades absolutas e as relativas vem esteada, igualmente, na natureza da norma infringida e nos fins tutelares da norma violada. Se a norma transgredida tiver natureza cogente e tutelar interesse predominantemente público, a nulidade poderá ser considerada absoluta. "Vício dessa ordem deve ser declarado de ofício, e qualquer das partes pode invocar"(23). Se a norma violada tiver natureza cogente e tutelar interesse predominantemente de parte, a nulidade será relativa e, por isso, o vício poderia ser sanado.

O critério que distingue a nulidade relativa da anulabilidade repousa, do mesmo modo, na natureza da norma atacada. A nulidade relativa, como visto, viola norma de natureza cogente que tutela interesse predominantemente de parte. Já na anulabilidade, a norma violada é de natureza dispositiva e tutela interesse eminentemente de parte, permanecendo o ato tão-somente na esfera atuante das partes, com o que a sua anulação só ocorrerá mediante manifestação do interessado, obstada a cognição oficiosa do juiz. O ato anulável nasce eficaz, mas viciado.

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Essa teoria das nulidades até hoje tem sido aplicada pelos operadores do direito, tamanha a sua importância e eficácia prática, e deverá assim continuar a valer. A dificuldade que surge na aplicação dessa notável teoria dá-se quando encontramos normas processuais que se sobrepõem a essas regras de vícios, como adiante se verá. Para tanto, perfeita validade tem a aplicação adequada da categoria do sobredireito processual, proclamada por GALENO LACERDA, a qual dá, precipuamente, prevalência àquelas normas que sufragam em si mesmas valores superiores e, até mesmo, supremos.


III - SOBREDIREITO PROCESSUAL COMO CATEGORIA RELATIVIZADORA DAS NULIDADES

Trinta anos após a edição da obra memorável de GALENO LACERDA, através da qual conquistou cátedra na saudosa Faculdade de Direito de Porto Alegre, na qual o então jovem processualista gaúcho desvendava e consolidava, como acima visto, uma verdadeira teoria das nulidades na seara do direito processual, motivo de entusiasmos e aplausos por toda a comunidade jurídica, ao ensejo de conferência proferida em comemoração ao décimo aniversário do atual Código de Processo Civil brasileiro, GALENO LACERDA assinalou que o capítulo mais importante de um código de processo se encontra nos preceitos relativizadores das nulidades(24).

Isto porque, continua GALENO LACERDA, " eles é que asseguram ao processo cumprir sua missão sem transformar-se em fim em si mesmo, eles é que o libertam do contra-senso de desvirtuar-se em estorvo da justiça" (25).

Falarmos de preceitos relativizadores das nulidades processuais, como colocado, de um modo geral, traduz a idéia de processo como instrumento de definição e realização da justiça. Processo como instrumento para o acesso à ordem jurídica justa, na expressiva e percuciente síntese de KAZUO WATANABE e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO.

Em tempos atuais, quando predominam saudáveis "ondas renovatórias" na vida do direito processual, corroboradas, de certo modo, pela novíssima reforma do CPC, cujo espírito que a imbuiu foi endereçado a quatro finalidades específicas(26) , em evidente harmonização e pertinência o breve ensaio ora esposado, assumindo, como se vê, alta relevância no imenso e fundamental âmbito do direito processual, longe de restringir-se a mera tertúlia acadêmica.

Aos preceitos relativizadores das nulidades processuais, adotado, analogicamente, conceito de ERNST ZITELMANN para definir as normas de Direito Internacional Privado - direito sobre direito(27) -, difundido por PONTES DE MIRANDA, GALENO LACERDA inspiradamente denominou-os de sobredireito processual, porque, segundo sufraga, "se sobrepõem às demais, por interesse público eminente, condicionando-lhes, sempre que possível, a imperatividade" (28).

A categoria do sobredireito processual, cujo conteúdo assume alta relevância no âmbito do direito processual, encerrando preceitos relativizadores das nulidades havidas como absolutas, possibilitou a GALENO LACERDA a retomada e a superação de antigas idéias, assegurando ao processo a sua instrumentalidade plena e efetiva de servir à justiça humana, social e concreta, a que se reduz seu princípio informador e nuclear.

Importante avultarmos o momento no qual ocorreu a descoberta do sobredireito processual por GALENO LACERDA. A esta ocasião, o mentor da teoria das nulidades processuais adotada em nosso país teve essa teoria colocada à prova, ao ensejo da análise concreta de um caso real, ao tempo em que atuava como desembargador do nosso Tribunal de Justiça. A experiência de GALENO LACERDA como magistrado foi maravilhosa, sendo considerada por ele mesmo como a mais rica e importante atividade de sua vida.

Tratava-se de agravo de instrumento em ação de cobrança de honorários médicos, contra decisão do juiz singular que rejeitou a preliminar de violação ao disposto no art. 275, I e II, do CPC, que determina a observância do rito sumaríssimo. Propugnou o agravante a ocorrência de nulidade absoluta, uma vez que a ação de cobrança de honorários deveria seguir o rito sumaríssimo: houve uma infração ao rito, que tutela interesse público, e não de parte. Para tanto, seus argumentos foram centrados na doutrina do próprio GALENO LACERDA, esposada em seu Despacho Saneador que, por uma destas vicissitudes da vida, acabou sendo o magistrado eleito para conhecimento e julgamento do caso referido.

Da valoração adequada da espécie, GALENO LACERDA constatou que era necessário modificar o anteriormente sustentado, tendo, nesse caso, reconhecido seu próprio erro, diante de um conflito normativo no próprio direito processual. Para resolver esse conflito, aplicou regra mais alta existente no próprio código, no caso vertente a do art. 250 e seu parágrafo único, e a do art. 154, ambos do CPC(29).

BARBOSA MOREIRA, igualmente, sustenta que o processo não pode ser forçosamente anulado, caso se tenha instaurado como ordinário, em hipótese de cabimento do rito sumaríssimo. O aproveitamento dos atos deverá ocorrer sempre que a utilização do rito inadequado não houver causado prejuízo à defesa(30). Do mesmo modo, PIMENTA BUENO, para quem não há nulidade, tendo em vista que o processo tem por fim conhecer a verdade(31).

Vejamos a síntese genial de GALENO LACERDA, acolhida à unanimidade pelos demais integrantes do colegiado:

"Possibilidade de conversão do procedimento sumaríssimo em ordinário. O interesse público na instrumentalidade do processo relativiza, em regra, as nulidades processuais. Aplicação dos arts. 250, parágrafo único, e 154 do CPC, e do art. 1.218 do CC.

"...os valores ou os interesses no mundo do Direito não pairam isolados no universo das abstrações; antes, atuam, no dinamismo e na dialética real, em permanente conflito com outros valores e interesses. Certa, sem dúvida, a presença de interesse público na determinação do rito do processo. Mas, acima dele, ergue-se outro interesse público de maior relevância: o de que o processo sirva, como instrumento, à justiça humana e concreta, a que se reduz, na verdade, sua única e fundamental razão de ser.

"Essa natureza de meio a serviço de um interesse público mais alto possui o necessário e indispensável condão de relativizar a maior parte das normas imperativas processuais e, por conseguinte, as nulidades resultantes de sua infração.

"Por este motivo, o capítulo mais importante de um Código de Processo moderno situa-se nas normas relativizadoras dessas nulidades. Elas é que garantem ao processo cumprir sua missão sem transformar-se em fim em si mesmo, desvirtuando-se, em contra-senso, em estorvo da Justiça. Se permitem o neologismo, as regras sobre nulidades integram-se no ‘Superdireito’ (‘sic’, Sobredireito) processual porque se sobrepõem às demais, por interesse público eminente, condicionando-lhes, sempre que possível, a imperatividade." (32).

Em função desse caso concreto, GALENO LACERDA descobriu o sobredireito processual. O sobredireito processual, como concebido pelo seu intuidor, é a aplicação de regras e princípios maiores que podem revogar ou suprimir a incidência de regras menores.

Por isso, às idéias de finalidade e instrumentalidade das formas dos atos processuais, não se erra ao se permitir uma releitura da cominação de nulidade absoluta àqueles vícios essenciais insculpidos em nosso código, bem como ao se exigir a adequação como princípio fundamental e unitário do processo, a justificar, até mesmo, a autonomia científica de uma teoria geral do processo, como bem proclama GALENO LACERDA(33).

Iniludivelmente, a natureza de instrumento adequado de declaração e realização do direito material, logo, na sua função informativa de resolução de conflitos de interesses genéricos, está a buscar o ideal da efetividade da tutela jurisdicional, calcado na tríplice identidade do direito tutelado, qual seja, subjetiva, objetiva e teleológica.

Os atos processuais, de regra, independem de forma, salvo exceção prevista em lei, como acentua o art. 154 do Código de Processo Civil em vigência. Trata-se, aqui, de verdadeiro princípio da relevância relativa das formas legais na qual tem especial aplicabilidade a liberdade das formas, afastando, como corolário, o princípio da legalidade formal. Por outro lado, o processo é regido pela necessidade de estreita obervância das regras pertinentes ao seu procedimento. Dessa maneira, prima facie, aquele ato processual que for praticado em ofensa à forma taxativa e expressamente disposta em lei, ou aquele ato que atentar contra as regras procedimentais, será havido como nulo, portador de vício dito essencial, que poderá acarretar nulidade absoluta ou relativa.

Entretanto, vale dizer, o que ocasionará o reconhecimento de nulidade ou não desvinculado está dessas normas que determinam a forma dos atos e a obediência às regras procedimentais. Embora toda doutrina entenda que a nulidade absoluta, por ensejar vício maior, afeta o interesse público, dispensando, por isso, a constatação de prejuízo para ser declarada(34), enquanto na nulidade relativa o prejuízo deve vir cabalmente reconhecido, o fato é que assim não pode ser pacificamente aceito, ante a construção de uma estrutura teleológica, em que os valores e a finalidade da norma são reconhecidos como supremos.

Com efeito, se, embora praticados desta maneira, supostamente havida como viciada, atingirem a sua finalidade, não causando prejuízo algum, reputar-se-ão válidos e legítimos. Isto porque, sabendo-se qual a verdadeira e única finalidade do processo, bem como valendo-se de uma visão sistemática de todo o ordenamento, eventual atentado contra as suas formas e seu procedimento, nenhum vício acarretará, uma vez alcançado o escopo último a que ele se destina: servir à realização do direito material e da justiça.

Nos ordenamentos jurídicos hodiernos não só vige, de modo geral, o princípio da instrumentalidade das formas, como também os princípios da convalidação, da conservação, da causalidade, do interesse e da economia processual, todos destinados a relativizar o assim considerado desatendimento à forma em sentido estrito, sempre que atinja sua finalidade essencial(35). Com razão, o art. 154 do CPC(36), bem como outros dispositivos do mesmo corte, no sentido de dar prevalência à finalidade, ou seja, ao aspecto teleológico, como bem demonstrado pelo Dr. CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA, "impedem o fenômeno das formas residuais, as formas que teimam em permanecer apesar da perda de sentido e obstaculizam, do mesmo modo, sua degeneração, ou seja, sua extensão a termos não previstos inicialmente. Varre-se, assim, o fetichismo da forma, eliminando-se as imprestáveis, mantidas tão somente as que tenham finalidade atual ou sirvam à garantia das partes"(37).

Evidencia-se assim, ao longo da história, a minimização da questão que concerne à forma em sentido estrito, vigorando desde muito o princípio de que o aspecto externo deve ceder ao conteúdo do ato processual, predominando, destarte, princípios relativizadores das nulidades processuais como categorias fundamentais para a definição da justiça e do direito(38).

Tomemos um exemplo, na tentativa de possibilitar a fácil compreensão deste fundamental e importante tema. O art. 82 do Código de Processo Civil determina em quais hipóteses deve o Ministério Público, como custos legis, intervir no processo(39).

Suponhamos que, em uma ação de nulidade de casamento, digamos com fundamento no art. 183, VI (são impedidas de contrair o matrimônio as pessoas casadas), do Código Civil , o demandante, para essa ação legitimado, ao propor a demanda, não propugne pela intimação do Ministério Público para que acompanhe o feito. Segundo dispõem os arts. 84 e 246 do CPC, seria nulo o processo, ante infração à norma cogente, que tutela interesse predominantemente público. Dizemos predominantemente público, haja vista que as partes igualmente têm interesse no justo desate da controvérsia. Vício dessa ordem, na qual existe cominação expressa de nulidade, por ser insanável, acarretaria a imediata nulidade do feito, podendo ser ventilada por qualquer das partes, presentante legal do MP ou pelo próprio juiz.

No entanto, hipoteticamente, nem a parte demandada nem o juiz verificaram essa omissão, e, por via de conseqüência, levaram a termo o processo que visava à declaração da nulidade do casamento. No julgado, conjeturamos a improcedência da demanda proposta, uma vez que o cônjuge demandado, ao contrário do que sustentava o sujeito ativo da ação, não era casado e, sim, divorciado, consoante logrou demonstrar com a produção de cópia da sentença de divórcio trânsita em julgado. Qual haverá de ser, nesse caso, a providência a ser tomada, verificada, ou até mesmo suscitada a nulidade ocorrente pela falta de intervenção do órgão ministerial?

Primeiramente, por óbvio, ao juiz não é dada a oportunidade para suscitá-la, uma vez que lhe falta jurisdição, ante a lavratura da carta sentencial. De plano, igualmente, afastamos o direito do demandante de suscitar referido vício, uma vez que foi ele próprio quem deu causa à nulidade, embora presente o seu prejuízo com a improcedência da ação e certa a indisponibilidade do direito em concreto. Logo, tão-somente ao órgão do MP e à parte demandada é que se faculta a argüição de eventual nulidade.

Feita essa breve ressalva, cumpre agora perquirirmos sobre a pertinência ou não de declararmos a nulidade do feito e, com isso, procedermos na renovação de todo o processado, que fatalmente seria julgado da mesma forma, ou seja, no sentido de declarar a improcedência da ação, ante a prova cabal do divórcio.

Pode parecer que, à primeira vista, a nulidade cominada tenha, inevitavelmente, o caráter obrigatório de determinar a insanabilidade do processado, com a conseqüente retificação e repetição dos atos processuais viciados. Os mais afoitos, sob o pálio de uma interpretação meramente literal e gramatical(40) do dispositivo legal e isolada do resto do sistema, a toda evidência, declarariam a nulidade absoluta do feito. Mas assim não poderia decorrer, uma vez interpretada adequadamente a disposição que comina a nulidade absoluta, em conjugação e harmonia com o disposto legal dos parágrafos 1º e 2º do art. 249 e 244, ambos do CPC, que, respectivamente, fundamentam os princípios do (não) prejuízo e do aproveitamento e da finalidade, informadores do princípio da instrumentalidade das formas.

Embora o exemplo referido trate de vício absoluto, em que há cominação expressa de nulidade, tudo nos conduz a acreditar que a sua relativização, diante do caso concreto, poderá tomar contornos de efetividade. Tudo dependerá do caso em particular, que estará a merecer a tríplice adequação das normas processuais ao direito material, daí o porquê da necessidade imperiosa de aproximação e apaixonamento do juiz à causa.

A se possibilitar a declaração da nulidade no exemplo acima, por conseqüência tendo de ser renovado todo o processo , estar-se-á atentando contra o princípio da economia processual, para falarmos do menos. A exigência na renovação do processo, em homenagem tão-somente à sacralidade da forma, ou seja, o processo por si mesmo, como decorreria obviamente, não se admite em hipótese alguma.

Em sentido similar, o exemplo dado pelo emérito professor OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA, no qual, uma vez intervindo o presentante legal do Ministério Público, ainda que em segunda instância, ao ensejo de seu parecer, a nulidade, ante a ausência de sua intimação no processo de primeiro grau, poderá ser sanada, não sendo raros os modelos de decisão nas quais os tribunais têm relevado este vício(41).

Tomemos outro exemplo, a fim de bem fixar o alcance e importância efetiva deste maravilhoso instituto, que, adequadamente aplicado, logrará acertar e realizar a justiça e o direito em concreto. Suponhamos que, em uma ação,(42) o autor produza um documento redigido em língua espanhola, sem a tradução que lhe exige o art. 157 do Código de Processo Civil, ou seja, em vernáculo, firmada por tradutor juramentado. Esse documento, hipoteticamente, seria a cópia de alguns dispositivos do Código Civil Uruguaio. Juntamente com ele, produziu o autor cópia de obra doutrinária idônea, na qual vêm reproduzidos para o idioma português os dispositivos suscitados. O réu, por ser uruguaio, não tem dificuldade alguma na compreensão e leitura do texto, nem ventila a exigência legal do art. 157 do nosso CPC. O magistrado, por sua vez, domina com perfeição o idioma espanhol. Qual seria o procedimento a ser adotado no caso concreto? Deveria o juiz, à luz do disposto no art. 157 do CPC, exigir a tradução do texto colacionado? Poderia ser declarado nulo o processo a partir da juntada desse documento, tendo em vista a não tradução para o vernáculo, ante frontal desrespeito ao disposto no art. 157 do CPC?

Temos que a solução, antes de mais nada, não aceita generalizações. O juiz deverá examinar caso a caso, sopesando a prejudicialidade e finalidade do ato perpetrado. Na hipótese vertente, acreditamos que nenhum prejuízo acarretará a aceitação do texto legal uruguaio sem a tradução devida para o vernáculo. Primeiro, porque o espanhol, como sabido, se assemelha muito ao nosso idioma, nesse sentido, não ensejando dificuldade alguma na sua compreensão(43). Segundo, porque tanto o autor como o réu e o juiz conhecem perfeitamente o espanhol, dispensando qualquer tradução para bem compreenderem o texto de lei. Terceiro, porque o autor trouxe à colação obra doutrinária idônea, que afasta por completo qualquer dúvida na tradução do texto.

Veja-se que o exemplo acima trata de vício essencial. No entanto, por não cominar o dispositivo legal do art. 157 pena de nulidade, consoante bem disposto no art. 244, ambos do CPC, o juiz deverá "considerar válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade"(44). Logo, perfeitamente autorizado ao juiz aceitar o texto legal sem a tradução respectiva, uma vez preenchida a finalidade essencial do ato, que, igualmente, não acarretou qualquer prejuízo para as partes. Vale ressalvar que, em assim procedendo, não estaria o magistrado desobedecendo, ou mesmo negando vigência ao disposto no art. 157 do CPC. Muito pelo contrário, estaria dando prevalência à norma geral e superior do art. 154 e, especialmente, à do art. 244, ambas do CPC que, em síntese, dão especial relevância à necessidade técnica de se lograr ao fim ou objetivo último do próprio ato.

O problema da forma dos atos processuais, sem dúvida, é dos mais importantes na seara do direito processual(45). Àqueles que imputam ao rigor da forma as graves mazelas do processo ergue-se a opinião daqueles que crêem que a falta de forma engendraria confusão e incerteza. Essa afirmação, por vezes, é identificada com o formalismo. Entretanto, vale dizer, a certeza é precisamente a de que existem fins mais relevantes ao prosseguimento dinâmico do processo, que considerado como meio, instrumento, é precipuamente destinado à realização de alguma finalidade, qual seja, a pacificação social e o acertamento do direito em concreto.

O gênio de CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA sustenta eruditamente que "a forma investe-se da tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento", enfim, parafraseando RUDOLF VON JHERING, "a forma é a inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade"(46). Daí por que acudir imediatamente as palavras com que MONTESQUIEU inaugurou o Livro 29, de seu Espírito das Leis: "As formalidades da justiça são necessárias à liberdade". Esse o real sentido e finalidade da forma, que não pode e não deve ser deturpado, sob pena de erigirmos a forma como valor único em si mesmo.

A esse respeito, as regras de sobredireito processual, nitidamente antiformalistas, quando ordenam ao juiz considerar válido o ato, desde que tenha atingido o seu objetivo precípuo (art. 244 do CPC); quando determinam a aceitação do ato, embora viciado, se inexistente prejuízo à parte (art. 249, parágrafo 1º, do CPC), à toda evidência, estão a reconhecer a relativização dos vícios ocorrentes por infração a normas de natureza imperativa, que visam tutelar interesse público(47).

Por aqui já se verifica que a categoria do sobredireito processual deve ser adequadamente aplicada quando ocorrente suposta nulidade absoluta, pois, no que pertine à nulidade relativa e à anulabilidade, estas podem de todo ser sanadas. E é o próprio OVÍDIO BAPTISTA que conclui no sentido de que todo o sistema de nulidades dos atos processuais está primariamente dominado por um conjunto de princípios específicos e peculiares ao direito processual, gerando um certo relativismo de todas as regras sob as quais se pretenda classificar os defeitos dos atos processuais e suas conseqüências(48), confortando, à saciedade, a orientação alhures lançada por GALENO LACERDA.

Por esse motivo, o juiz de direito ao lidar com a matéria-prima no exercício de sua função, ou seja, com conflitos de interesse gerais e universais, deve validar e aprofundar a sua efetiva participação com o caso real posto ao seu desate, para que, uma vez abstraída a legítima hierarquia de interesses tutelados pelos textos de um código de processo, seja preservado o sentido fundamental e vital de todo o sistema que o anima. "Neste sentido, tratando-se de um Código de Processo, o interesse público superior, que o inspira e justifica, é que se preste ele a meio eficaz para definição e realização concreta do direito material. Não há outro interesse público mais alto, para o processo, de que o de cumprir sua destinação de veículo, de instrumento de integração da ordem jurídica mediante a concretização imperativa do direito material" (49).

Além desses dispositivos legais, que encerram evidentemente o caráter de normas de sobredireito processual, GALENO LACERDA constatou a existência de alguns outros. É o caso, por exemplo, do parágrafo único, do art. 250, do CPC, que determina sejam aproveitados os atos praticados, desde que não resulte prejuízo à defesa, apesar do erro na forma do procedimento(50). Tudo em homenagem ao preceito mais alto da instrumentalidade das formas e do processo, que se sobrepõe a qualquer outra norma. É o caso examinado pelo próprio GALENO LACERDA, por ocasião do julgamento da apelação cível n.º 583048061, cuja ementa vem assim noticiada, verbis;

"Pretensão possessória, encaminhada sob forma equivocada de medida cautelar inominada de imissão de posse. Constituto possessório. Efeitos. Confere ele ação possessória ao adquirente, e não de imissão na posse. Possibilidade em tese de cautelas satisfativas, não, porém, na espécie. Aplicação do art. 250 do CPC, como regra de sobredireito processual, a fim de a forma processual errônea adaptar-se à pretensão possessória manifestada. Anulação do processo para tal fim, a partir do despacho inicial e da citação inclusive" (51).

Também o do art. 462 do CPC(52), ao determinar que, "se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao Juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença", atribuindo, portanto, a idéia da relevância dos fatos supervenientes, em repúdio ao formalismo excessivo, a fim de, com os olhos voltados à economia das partes e à necessidade de eliminar-se o litígio com presteza, possa ser aproveitado o já instaurado para fazer a justiça ulterior ao momento inicial(53).

Por fim, a receber por parte do mestre a natureza de normas fecundas de flexibilidade, se sobrepõem às demais os parágrafos 1.º e 2.º, do art. 515, do CPC, no sentido de que seja ampliado o efeito devolutivo da apelação, além dos limites da sentença, a todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não as tenha julgado por inteiro. Do mesmo modo, o disposto no art. 517, do CPC, que autoriza sejam suscitadas na apelação as questões de fato, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior(54).

Com a nova redação trazida pela Lei n.º 8.950/94, entendemos que o art. 516, do CPC, igualmente encerra a condição privilegiada de prevalência sobre as demais regras comuns, ao dispor que ficarão submetidas ao segundo grau o conhecimento das questões anteriores à sentença, ainda não decididas. Nesse particular, importante o estudo daquelas questões que, embora decididas em primeiro grau, ensejam o dever de cognição oficiosa pelo órgão encarregado de prestar a jurisdição, como, por exemplo, as referentes às condições da ação e aos pressupostos processuais(55).

Às vezes, como já mencionado, atos praticados por aqueles que participam de uma relação jurídica processual atingem a sua real finalidade, embora as normas que os regulamentem tenham eleito um meio em detrimento de outro, com o qual lhe atribuem o caráter formalístico, como muito bem assinalou CHIOVENDA no início do século (56).

No entanto, predominando a idéia de processo como fenômeno essencialmente cultural, continuativo e dinâmico(57), seu fim e não sua forma é que o define e o delimita. Tanto é o seu fim que o delimita que a idéia teleológica de processo já de há muito predomina no pensamento dos mais renomados processualistas, consoante advertência de WACH e SCHÖNKE, citados por COUTURE(58) . Teleológica, porque o fim visado precipuamente pelo processo, antes da satisfação dos interesses do indivíduo, é a realização efetiva da justiça e a pacificação social(59). Este o conceito social de processo, veementemente proclamado pelo jovem e talentoso processualista gaúcho DARCI GUIMARÃES RIBEIRO em suas palestras.

Note-se bem que precisamente por considerarmos o processo um fenômeno sócio-cultural é que possibilitamos um passo além para nele também identificarmos, à luz de uma visão jurídica, o seu aspecto teleológico como nota fundamental e informadora.

Com efeito, o que há de mais cristalino e axiologicamente irredutível no processo, enquanto fenômeno sócio-cultural, é o estar sempre dirigido para a efetiva e justa realização de algo. E sobre essa finalidade, ou seja, sobre a legitimidade do instrumento de orientar-se na área de sua própria incidência - na vida, no humano - diferentemente do sol que se põe, da chuva que cai, é que se constitui a justiça e a paz social, de molde a atribuir-lhe supremacia.

Avulte-se para a descoberta genial e revolucionária no direito processual. Longe de afirmar-se como alternativa, a doutrina de GALENO LACERDA vem adminiculada na sólida interpretação sistemática(60) e teleológica do Código de Processo Civil, considerado por ele um dos melhores do mundo. Nesse sentido, o operador do direito não pode e não deve simplesmente ater-se à fria aplicação da lei ao caso concreto. Antes, deverá buscar, da interpretação e leitura sistemática de todo o ordenamento, os princípios e as normas fundamentais que animam todo o Sistema(61).

Não erramos ao considerar como ocorrente antinomia entre normas do nosso ordenamento jurídico, tendentes a, aparentemente, afetar toda a estrutura do sistema, uma vez verificada a maior hierarquia de valores em alguns preceitos, considerados paradigmáticos. É que, existindo determinada norma que se sobreponha às demais, nesse sentido, atribuindo-se-lhe caráter de preceito maior, superior, a sua efetiva aplicação é a única solução para a antinomia aparente, sob pena de, em não sendo aplicada, negarmos vigência e o caráter da norma hierarquicamente superior.

Nesse momento, especial atenção deve ter o operador do direito, por ocasião da adequada interpretação e aplicação da lei na prática de seu mister. Para tanto, deverá conhecer como ninguém todo o sistema, ou, ao menos, os princípios retores que o animam. Aliás, como bem sustenta JUAREZ FREITAS, todas as frações do ordenamento jurídico estão em conexão com a inteireza de seu espírito, daí por que concluir-se que toda e qualquer interpretação de uma norma jurídica há de, necessariamente, ser efetivada à luz dos princípios gerais, normas e valores constituintes que animam todo o sistema(62).

Deverá o operador do direito escolher qual das duas normas "conflitantes" prevalecerá, adotando, para tanto, adequados critérios de hermenêutica e interpretação, bem como, muitas vezes, o bom senso, a fim de que possa assegurar, declarar ou realizar o direito com o menor gravame possível.

Essa, sem dúvida, a idéia fundamental que deverá nortear todos nós, ou seja, o caráter de fato cultural do processo, cujos fins consistem, precipuamente, na realização da justiça e da paz social, bem como na solução da lide(63), em seu aspecto geral e universal. Necessária, pois, a relativização de todas as normas e princípios processuais sempre que forem conflitantes com a efetiva obtenção da justiça, sob pena de autorizarmos a existência de um modelo processual inadequado ao seu objeto(64). O escopo social do processo deverá ser perquerido de forma incansável, definindo e realizando o direito material, de molde a adequá-lo à realidade social a que se destina.

Por isso a importância do movimento pela chamada constitucionalização do processo, a evidenciar a natureza fundamental e política do acesso à ordem jurídica justa e do seu efetivo exercício, sempre guardando respeito à dignidade da pessoa humana e à paz social, valores supremos insculpidos na Carta Política Federal. A aplicação e interpretação sistemática dessas regras permitirá, à evidência, ao operador do direito a justa composição da lide(65).

É tarefa primordial do operador do direito descobrir a relação direta entre o texto da lei e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social. Interpretar será o seu único caminho, isto é, determinando o verdadeiro sentido e alcance das expressões do Direito(66). Assim procedendo, como referido, estará aplicando o direito, de modo justo e efetivo.

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Sobre o autor
Danilo Alejandro Mognoni Costalunga

advogado em Porto Alegre (RS), professor de Direito no UniRitter, membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), especialista em Direito Processual Civil, mestrando em Direito pela PUC/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTALUNGA, Danilo Alejandro Mognoni. A teoria das nulidades e o sobredireito processual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/783. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista Forense, volume 344, Rio de Janeiro, pp. 03/19, entre outras.

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