3. FEMINICÍDIO RELACIONADO À PESSOA TRANSEXUAL
Os debates referentes à transexualidade devem ser enfrentados de forma rotineira, pois, com o fortalecimento de movimentos sociais de apoio a essas pessoas marginalizadas, tornou-se possível conquistar novos direitos. Uma das maiores conquistas foi a possibilidade de alteração do sexo e do nome no Registro Civil.
Com a transexualidade surgem questionamentos sobre o direito à diferença e os limites da liberdade, especialmente no que se refere à distinção entre saúde e doença.
Mediante a realização de cirurgia de redesignação sexual (ou transgenitalização), a pessoa pode alterar seu corpo com o propósito de adequar sua identidade sexual. Discutem-se, nesse ponto, os limites e as possibilidades éticas e jurídicas do procedimento.
No campo médico, os conflitos teóricos e ideológicos sobre a transexualidade ainda não se encontram plenamente solucionados. Assim, somente poderão avançar se o direito também estiver presente para dar amparo quando necessário. Caso contrário, as experiências discriminatórias e estigmatizantes vividas por essas pessoas permanecerão sem modificação.
À medicina cabe resolver os aspectos ligados ao tratamento de modificação estrutural e externa; ao ordenamento jurídico incumbe efetivar os processos legais para a concretização da identidade de gênero.
Nossa sociedade ainda é preconceituosa, mantendo a visão binária entre homem e mulher. Independentemente de a pessoa ter ou não realizado cirurgia de alteração de sexo, seus direitos devem ser preservados. A sociedade impõe às pessoas transexuais a vivência de uma situação de conflito constante entre ser e estar, entre identidade interna e aparência externa.
Um grande avanço foi o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 4275, da possibilidade de alteração do nome e do sexo no Registro Civil, independentemente de cirurgia, como se observa no voto dos ministros:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente.
(STF – ADI 4275/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 01.03.2018, DJe 07.03.2019)
Trata-se de tema que envolve múltiplas áreas do conhecimento, desde o campo científico até a análise jurídica, principalmente quando os direitos fundamentais dessas pessoas são violados, colocando-as à margem da sociedade.
3.1. A bioética e o transexual, evolução histórica
Apesar dos avanços no entendimento do fenômeno da transexualidade, ainda hoje há quem considere o tema um transtorno de identidade ou mesmo uma disforia de gênero.
Para que se compreenda melhor esse fenômeno, faz-se necessário resgatar relatos históricos com base em estudos realizados a partir do século XX.
Na Antiguidade Clássica já havia registros de personagens que podem ser relacionados à transexualidade. Entre eles, destacam-se: o ex-escravo do imperador Nero, o Papa João VIII e, na Idade Moderna, o rei Henrique III. À época, utilizava-se a expressão “eonismo” para se referir à pessoa que se vestia com roupas do sexo oposto, conceito que se aproxima do que atualmente se associa à transexualidade.
Foi na segunda metade do século XX, sobretudo a partir da década de 1950, que surgiram os protocolos médicos voltados a embasar diagnósticos de transexualidade. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina editou resoluções específicas, como a Resolução CFM nº 1.482/1997 e a Resolução CFM nº 1.652/2010, nas quais definiu o transexualismo como um desvio permanente de identidade sexual, admitindo o desejo contínuo de pertencimento ao sexo oposto e, consequentemente, a possibilidade da cirurgia de redesignação sexual.
O transexualismo situa-se em área limítrofe entre a normalidade e o desvio, a aparência orgânica e a psíquica, a vida individual e a vida social. O transexual representa a patologia do incerto, dado que há contraste entre as características físicas externas e a identidade psíquica, o que leva à busca de correspondência entre aparência física e comportamento social.
Segundo Hightom (1993, p. 207), o transexual se submete à cirurgia dos genitais, ainda que dolorosa, com o propósito de adequar sua aparência ao sexo com o qual se identifica psicologicamente.
A transexualidade pode se manifestar tanto no gênero masculino quanto no feminino.
O transexual masculino é anatomicamente homem, mas se percebe e se identifica como mulher desde a infância.
O transexual feminino é anatomicamente mulher, mas se percebe e se identifica como homem desde a infância.
Em ambos os casos, há divergência entre o sexo biológico e a identidade psíquica.
Definições médicas e jurídicas
“Entende-se por transexualismo uma inversão da identidade psicossocial, que conduz a uma neurose relacional obsessivo-compulsiva, manifestada pelo desejo de reversão sexual integral. A etiologia do transexualismo (fenômeno relativamente raro) é desconhecida, embora existam várias hipóteses especulativas.”
(WALKER, 1966; MONEY & GASKIN, 1970-1971)
John Money, importante referência na matéria, conceituou o transexualismo como distúrbio de identidade de gênero em que a pessoa manifesta convicção persistente de viver como membro do sexo oposto. Charles Ihlenfeld sintetizou afirmando que “o paciente sente, simplesmente, que nasceu com o corpo errado”.
Há, ainda, a diferenciação entre transexual primário e transexual secundário:
Primário: caracteriza-se pelo desejo precoce, insistente e imperativo de transformação, sem inclinação para homossexualidade ou travestismo.
Secundário: refere-se a indivíduos que gravitam pelo transexualismo em determinados períodos, geralmente ligados à prática homossexual ou ao travestismo.
Também se distingue o transexualismo do pseudo-hermafroditismo, situação em que coexistem gônadas masculinas e aparência feminina, influindo na conformação genital, no aspecto somático e no comportamento psíquico (SESSAREGO, 1991, p. 176).
Independentemente da realização ou não da cirurgia de redesignação sexual, a pessoa transexual deve ter assegurados seus direitos fundamentais, como a possibilidade de modificação de seu nome no Registro Civil, para que viva conforme sua identidade de gênero, sem sofrer discriminação.
4. IDENTIDADE DE GÊNERO
Definir se uma pessoa é do sexo feminino ou do sexo masculino constitui dilema enfrentado pelas pessoas transexuais. Sua situação legal, capaz de estabelecer a coerência entre o sexo anatômico e o gênero vivenciado, vem, ao longo de poucas décadas, conseguindo garantir maior reconhecimento jurídico e social.
Com os avanços das práticas médicas, a exclusão da transexualidade como doença, a implementação de terapias voltadas ao bem-estar das pessoas afetadas e, sobretudo, o reconhecimento jurídico do direito de acesso à saúde, bem como do direito à alteração de prenome e de sexo na identidade civil — fundamentados no livre desenvolvimento da personalidade, na privacidade, na intimidade e na não discriminação — consolidou-se um marco significativo de proteção à dignidade humana.
O direito, entretanto, ainda estabelece desde o nascimento a identidade sexual, considerada teoricamente única e imutável. Contudo, essa definição não decorre exclusivamente de características físicas exteriores: é muito mais ampla do que o sexo morfológico. A aparência externa não deve ser a única circunstância determinante para a atribuição do gênero, havendo forte concorrência do aspecto psicológico. A mera utilização de critérios fisiológicos despreza características secundárias e eventuais ambiguidades sexuais. Assim, o sexo civil, também denominado sexo jurídico, deve ser compreendido como aquele vivido socialmente pela pessoa, não admitindo ambiguidade.
O que se define como identidade de gênero — também chamada de identidade sexual — vai além da simples noção de sexo biológico. Ainda que muitas vezes os termos sejam tratados como sinônimos, a palavra “sexo” possui múltiplos significados, geralmente ligados à generalização, enquanto a palavra “gênero” abrange aspectos mais amplos, incluindo elementos genitais, eróticos, sociais e psicológicos.
A identidade de gênero compõe-se por diversos fatores estruturados em diferentes épocas e sob múltiplas influências: sexo genético, hormonal, jurídico (constante no registro de nascimento) e social (relacionado à criação e ao meio em que a pessoa se insere).
Não se trata apenas de uma condição biológica, mas também de um produto social. É um conceito complexo, formado por componentes conscientes e subconscientes, que levam o indivíduo a se identificar como homem ou mulher. A estrutura social, no entanto, tende a adotar uma concepção dicotômica, definindo tudo e todos como pertencentes exclusivamente ao masculino ou ao feminino, não deixando espaço para identidades que não se enquadrem nesses padrões.
Nessa lógica, entende-se que o ser humano, ao desenvolver sua identidade, é compelido a se alinhar a performances masculinas ou femininas, não havendo reconhecimento social fora desses parâmetros. Tal compreensão, equivocada, leva a confusões conceituais — como a que associa homossexualidade à identidade de gênero, classificando erroneamente esta última como algo que se expressaria pelo medo ou por práticas forçadas, em vez de ser entendida como expressão autêntica da personalidade.
Outro critério ainda empregado é a definição ao nascimento: mediante a simples análise das genitálias externas, determina-se, de forma imediata, se o recém-nascido será registrado como masculino ou feminino, registrando-se tal identidade no ofício competente.
Entretanto, a problemática da identidade sexual é muito mais complexa do que uma mera análise morfológica. É indispensável compreender o comportamento psíquico do indivíduo diante de seu próprio sexo, sob pena de se perpetuar uma visão reducionista e discriminatória.
4.1. A cirurgia de transgenitalização
A possibilidade jurídica da redesignação sexual relaciona-se diretamente aos limites do direito sobre o próprio corpo.
O direito à dignidade humana, consagrado como princípio fundamental, legitima a realização de cirurgia em proveito da saúde dos indivíduos, subordinando-se ao princípio do consentimento pessoal.
Tal fundamento encontra respaldo na própria Constituição Federal, a qual, em seu artigo 1º, prevê a proteção integral da dignidade humana, e, em seu artigo 5º, assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.
A legislação ordinária também contempla inúmeras normas voltadas à proteção da integridade física, psíquica, moral e espiritual da pessoa, evidenciando preocupação com a prevalência da autonomia privada e da expressão de vontade como meios de desenvolvimento da personalidade. A manifestação do desejo de corrigir a aparência para adequá-la ao sexo com o qual o indivíduo se identifica constitui, assim, expressão legítima desse direito.
Trata-se, portanto, de uma salvaguarda ético-jurídica que reconhece ao transexual o direito de se autodeterminar nos limites constitucionais. Nesse sentido, afirma Perlingieri:
“A intervenção sobre a pessoa para mudança de sexo é legítima desde que correspondente ao interesse da pessoa, que assim é não por capricho seu, mas porque constitui o resultado da avaliação objetiva das suas condições.”
(PERLINGIERI, 1981, p. 4)
A disponibilidade do corpo, portanto, é possível apenas quando destinada a melhorar o estado de saúde do indivíduo, cabendo ao médico atuar como instrumento para solucionar esse problema, afastando-se qualquer ilicitude.
Houve grande evolução quanto à cirurgia de mudança de sexo, que antes era considerada apenas mutatória e passou a ser compreendida como reconstrutiva.
Um caso marcante foi relatado pelo jurista Fragoso, referente à condenação do cirurgião plástico Roberto Farina a dois anos de reclusão, por ter infringido o disposto no art. 129, § 2º, III, do Código Penal. Farina exibira, em Congresso de Urologia realizado em 1975, um filme de cirurgia de redesignação sexual, mencionando já ter realizado o procedimento em nove pacientes. Sustentou, à época, a legalidade da intervenção, alegando que sua atuação estava nos limites do exercício regular do direito, conforme art. 23, III, do Código Penal (DELMANTO, 2016, p. 971).
Contudo, houve absolvição, sob o fundamento de que não age com dolo o médico que, mediante procedimento cirúrgico, busca curar ou reduzir o sofrimento do paciente que não se aceita em seu corpo biológico.
Assim, concluiu-se que tal cirurgia, quando realizada dentro dos parâmetros adequados, não é vedada pela lei nem pelo Código de Ética Médica.
Com base nesses fundamentos, pessoas interessadas em realizar o procedimento passaram a procurar amparo judicial.
Somente após a edição da Resolução CFM nº 1.482/1997 é que as cirurgias de transgenitalização foram autorizadas no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina. A resolução permitiu procedimentos de transformação plástico-reconstrutiva de órgãos, bem como tratamentos hormonais voltados à adequação ao sexo oposto. Exige-se, ainda, o acompanhamento por equipes multidisciplinares, responsáveis pelo diagnóstico e pela avaliação da necessidade da cirurgia.
É importante observar que tais cirurgias visam apenas à modificação dos órgãos genitais primários e secundários. Não produzem uma verdadeira mudança de sexo, mas sim uma “imitação” do gênero, destinada à satisfação pessoal do indivíduo e à sua adequação ao convívio social.
Assim define a Resolução:
Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalização e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e CONSIDERANDO a competência normativa conferida pelo artigo 2º da Resolução CFM nº 1.246/88, combinado ao artigo 2º da Lei nº 3.268/57, que tratam, respectivamente, da expedição de resoluções que complementem o Código de Ética Médica e do zelo pertinente à fiscalização e disciplina do ato médico;
CONSIDERANDO ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou autoextermínio;
CONSIDERANDO que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal, visto que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico;
CONSIDERANDO a viabilidade técnica para as cirurgias de neocolpovulvoplastia e ou neofaloplastia;
CONSIDERANDO o que dispõe o artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo quarto, que trata da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como o fato de que a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de pacientes com transexualismo;
CONSIDERANDO que o artigo 42 do Código de Ética Médica veda os procedimentos médicos proibidos em lei, e não há lei que defina a transformação terapêutica da genitália in anima nobili como crime
CONSIDERANDO que o espírito de licitude ética pretendido visa fomentar o aperfeiçoamento de novas técnicas, bem como estimular a pesquisa cirúrgica de transformação da genitália e aprimorar os critérios de seleção; CONSIDERANDO o que dispõe a Resolução CNS nº 196/96;
CONSIDERANDO o estágio atual dos procedimentos de seleção e tratamento dos casos de transexualismo, com evolução decorrente dos critérios estabelecidos na Resolução CFM nº 1.482/97 e do trabalho das instituições ali previstas;
CONSIDERANDO o bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista estético como funcional, das neocolpovulvoplastias nos casos com indicação precisa de transformação o fenótipo masculino para feminino;
CONSIDERANDO as dificuldades técnicas ainda presentes para a obtenção de bom resultado tanto no aspecto estético como funcional das neofaloplastias, mesmo nos casos com boa indicação de transformação do fenótipo feminino para masculino;
CONSIDERANDO que o diagnóstico, a indicação, as terapêuticas prévias, as cirurgias e o prolongado acompanhamento pós-operatório são atos médicos em sua essência; CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na Sessão Plenária de 6 de novembro de 2002,
RESOLVE:
Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
Desconforto com o sexo anatômico natural;
Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
Ausência de outros transtornos mentais. Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
Diagnóstico médico de transgenitalismo;
Maior de 21 (vinte e um) anos;
Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º. Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
§ 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica.
§ 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo aos critérios regimentais para a ocupação do cargo.
§ 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
§ 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7 º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido.
Art. 8º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se a Resolução CFM nº 1.482/97 (CFM, 2002).
Coube à resolução definir o conceito de transexual, a fim de caracterizar os pacientes que se enquadrariam na hipótese de redesignação sexual.
Para a aplicação desses parâmetros, é necessário que a pessoa não se aceite em seu sexo anatômico e manifeste o desejo de mudança, procurando solucionar esse conflito mediante a retirada dos genitais. O procedimento não é simples: realiza-se em três etapas (neofaloplastia), consistindo na construção do ne pênis a partir de retalho do antebraço, posterior implantação na região perineal e, por fim, colocação de próteses peniana e testicular de silicone. Todas essas fases devem ocorrer em intervalos de cerca de três meses. Trata-se de intervenção destinada, sobretudo, à satisfação anatômica do indivíduo que se submete ao tratamento.
Devido a essa complexidade, a jurisprudência passou a tratar a situação com excepcionalidade, desde que obedecidos os parâmetros necessários à sua realização. Exige-se, para tanto, a apresentação de laudos médicos e psicológicos como instrumentos de prova capazes de legitimar a mudança.
Nesse sentido, dispõe o Código Civil Brasileiro em seu art. 13:
“Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
(VADE, 2015, p. 154)
Ressalte-se, ainda, que subsiste a possibilidade de o transexual se opor à cirurgia corretiva em nome do direito fundamental de procriar.
APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO.TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SEGUNDO GRAU. A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. Pronta indicação de dispositivos legais e constitucionais que visa evitar embargo de declaração com objetivo de prequestionamento. REJEITADAS AS PRELIMINARES, NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
(TJRS - Apelação Cível Nº 70022504849, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 16/04/2009)
APELAÇÃO CÍVEL. TRANSEXUALISMO. ALTERAÇÃO DO GENERO/SEXO NO REGISTRO DE NASCIMENTO. DEFERIMENTO.
Tendo o autor/apelante se submetido a cirurgia de " redesignação sexual ", não apresentando qualquer resquício de genitália masculina no seu corpo, sendo que seu "fenótipo é totalmente feminino ", e, o papel que desempenha na sociedade se caracteriza como de cunho feminino, cabível a alteração não só do nome no seu registro de nascimento mas também do sexo, para que conste como sendo do gênero feminino. Se o nome não corresponder ao gênero/sexo da pessoa, à evidência que ela terá a sua dignidade violada
(Apelação Cível Nº 70021120522, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11/10/2007. RIO GRANDE DO SUL, 2007).
TRANSEXUAL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 4º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIANTE DA AUSÊNCIA DE LEI SOBRE A MATÉRIA. SENTENÇA QUE ATENDE SOMENTE AO PEDIDO DE ALTERAÇÃO DO NOME. REFORMA PARCIAL PARA TAMBÉM PERMITIR A ALTERAÇÃO DO SEXO NO REGISTRO DE NASCIMENTO. PROVIMENTO DO APELO. A jurisprudência tem assinalado a possibilidade de alteração do nome e do sexo no registro de nascimento do transexual que se submete a cirurgia para redesignação sexual, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana.
(TJ-RJ - APL: 00164187220058190021 RIO DE JANEIRO DUQUE DE CAXIAS 1 VARA DE FAMILIA, Relator: VERA MARIA SOARES VAN HOMBEECK, Data de Julgamento: 06/03/2007, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/06/2007)
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. À luz do disposto nos artigos 55, 57 e 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Publicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público. 2. Nessa perspectiva, observada a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, admite-se a mudança do nome ensejador de situação vexatória ou degradação social ao indivíduo, como ocorre com aqueles cujos prenomes são notoriamente enquadrados como pertencentes ao gênero masculino ou ao gênero feminino, mas que possuem aparência física e fenótipo comportamental em total desconformidade com o disposto no ato registral. 3. Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas. 4. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. 5. Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade - ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral - deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional. 6. Nessa compreensão, o STJ, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, já vinha permitindo a alteração do nome e do sexo/gênero no registro civil (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009). 7. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças. 8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais). 9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral). 10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico. 11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade. 12. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito. 13. Recurso especial provido a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.
(STJ - REsp: 1626739 RS 2016/0245586-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 09/05/2017, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017)
4.2. As espécies de diferenciações sexuais
A sexualidade de uma pessoa não deve ser tratada de maneira simplista. É fenômeno complexo que, mesmo quando a forma anatômica ou a prática de relacionamentos sexuais parece similar, apresenta distinções relevantes entre transexualidade, homossexualidade, bissexualidade, travestismo, fetichismo e hermafroditismo. Cabe, portanto, definir cada um desses conceitos:
Homossexualismo – A principal diferença é que o homossexual está satisfeito com o seu sexo biológico, seja masculino ou feminino, mantendo relações afetivas e sexuais com pessoas do mesmo sexo, tanto físicas quanto sentimentais (ESCOURA, 2014). O homem homossexual tem no homem o objeto de desejo; sente-se homem e se relaciona com outro homem. Já no caso da mulher transexual, ocorre o inverso: o transexual masculino se percebe como mulher e tem como parceiro um homem, considerando essa relação heterossexual, sem desejar modificar o seu sexo. Os transexuais masculinos não são efeminados, mas sim femininos, enquanto os homossexuais podem ser efeminados (ESCOURA, 2014).
Hermafroditismo – Corresponde a pessoas que possuem órgãos de ambos os sexos, condição rara. Há quem sustente que o transexual seria uma espécie de “hermafrodita psíquico”, nascido com sexo biológico masculino e sexo psicológico feminino (ESCOURA, 2014).
Bissexualidade – Diz respeito àquelas pessoas que se sentem atraídas por ambos os sexos, independentemente de sua própria conformação biológica. Seu comportamento oscila diante do masculino e do feminino, e muitas vezes apresentam impulsos eróticos que as levam a utilizar roupas do sexo oposto, obtendo satisfação sexual nesse processo (ESCOURA, 2014).
Crossdresser – Pessoa que frequentemente se veste, usa acessórios e/ou se maquia de forma distinta do gênero socialmente atribuído, sem se identificar como travesti ou transexual. Geralmente são casados e podem ou não contar com o apoio de suas companheiras (ESCOURA, 2014).
Travesti – Pessoa que vivencia papéis de gênero feminino, mas não se reconhece como homem ou mulher, compreendendo-se como pertencente a um terceiro gênero ou a um não-gênero. Deve ser sempre tratada no feminino, sendo o artigo “a” a forma respeitosa de tratamento (ESCOURA, 2014).
Transformista ou Drag Queen/Drag King – Artista que se veste de forma estereotipada segundo o gênero masculino ou feminino, para fins artísticos ou de entretenimento. A performance não guarda relação com identidade de gênero ou orientação sexual (ESCOURA, 2014).
-
Queer, Andrógino ou Transgênero – Termo ainda não consensual, utilizado para designar pessoas que não se enquadram em nenhuma identidade ou expressão de gênero específica (ESCOURA, 2014).
Transfobia – Preconceito e/ou discriminação em razão da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis (ESCOURA, 2014).
Processo transexualizador – Conjunto de procedimentos pelos quais a pessoa transgênero passa para adquirir características físicas do gênero com o qual se identifica. Pode incluir ou não tratamento hormonal, procedimentos cirúrgicos (como mastectomia, no caso de homens transexuais) e cirurgia de redesignação genital/sexual ou transgenitalização.
Cirurgia de redesignação genital/sexual ou transgenitalização – Procedimento cirúrgico destinado a alterar os órgãos genitais da pessoa, criando-se uma neovagina ou um neofalo. É importante não supervalorizar essa cirurgia: trata-se apenas de uma das etapas do processo transexualizador, que pode ou não ser realizada.
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LGBT – Acrônimo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Algumas variações incluem GLBT ou LGBTTT, abrangendo transgêneros e pessoas queer (ESCOURA, 2014).
No Chile, é comum o uso de TLGB.
Em Portugal, utiliza-se LGBTTQI, incluindo pessoas queer e intersexuais.
Nos Estados Unidos, há referências a LGBTTTQIA (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexuais e Assexuados) (ESCOURA, 2014).
Nome social – Nome pelo qual travestis e pessoas transexuais se identificam e preferem ser reconhecidas, enquanto o registro civil não corresponde à sua identidade de gênero (ESCOURA, 2014).
Orgulho – Conceito desenvolvido pelo movimento social LGBT para afirmar que a forma de ser de cada pessoa é uma dádiva que a aproxima de comunidades semelhantes às suas. Essa diferença não deve ser reprimida ou recriminada, mas valorizada como característica identitária imutável (ESCOURA, 2014).
Fetichismo – Desejo sexual despertado por objetos ou partes específicas do corpo que não os órgãos sexuais. Trata-se de uma espécie de culto, em que a atração recai sobre algo fragmentado (objeto ou parte corporal), e não sobre a pessoa em si (ESCOURA, 2014).
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Transexualismo – Termo surgido em 1953, quando o endocrinologista norte-americano Henry Benjamin se referiu à divergência psíquica do transexual. Foi classificado pela CID como doença ou anomalia, considerada um transtorno de identidade de gênero de ordem psicológica e médica. O indivíduo nasce com um sexo, mas se percebe como pertencente ao sexo oposto, experimentando inadaptação ao próprio corpo anatômico e desejo de submeter-se a intervenção cirúrgica e tratamento hormonal para adequar corpo e mente. O transexual se vê como pertencente ao sexo oposto, convencido de ter nascido com o aparelho sexual errado. Tal compreensão demanda a efetivação do princípio da igualdade, segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo. O reconhecimento desse direito alinha-se às tendências do direito civil contemporâneo. Houve grande evolução, seja pelo acesso à cirurgia de mudança de sexo, seja pela possibilidade de alteração do registro público para inclusão do nome social.
Ainda que o corpo reúna todas as características orgânicas de um sexo, o psíquico pode vincular-se irresistivelmente ao sexo oposto. Mesmo em aparência normal, o indivíduo nutre o desejo de modificar tais aspectos, em busca de harmonia entre corpo e identidade psicológica (ESCOURA, 2014).
4.3. Quem pode ser considerada mulher para efeitos da lei
O substantivo mulher abrange, logicamente, lésbicas, transexuais e travestis que se identifiquem como do sexo feminino. Diversos critérios podem ser utilizados para uma definição com razoável aceitação acerca de quem pode ser considerada mulher, para efeitos da presente qualificadora.
Pelo critério de natureza psicológica, por exemplo, alguém que, mesmo sendo biologicamente do sexo masculino, acredita pertencer ao sexo feminino pode ser enquadrado como mulher. Em outros termos, ainda que tenha nascido homem, acredita psicologicamente ser do sexo feminino, como ocorre com os denominados transexuais. Há, nesse contexto, uma espécie de negação ao sexo de origem, levando o indivíduo a buscar a reversão genital para assumir o gênero desejado.
Uma questão outrora irrelevante, mas hoje fundamental, deve ser respondida: quem pode ser considerada mulher para efeitos da tipificação da qualificadora? Apenas aquela nascida com anatomia feminina? Ou também aquela que foi transformada cirurgicamente em mulher, ou situação equivalente?
E quanto àqueles que, por opção sexual, assumem, em uma relação homoafetiva masculina, a “função de mulher”?
Alguns critérios podem auxiliar nessa definição:
Transexual é o indivíduo que possui convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu registro de nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo concepção moderna, o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem, enquanto o transexual feminino corresponde ao inverso. São portadores de neurodiscordância de gênero. Suas reações são, em geral, próprias do sexo com o qual se identificam psíquica e socialmente.
Como observa Vieira:
“Culpar este indivíduo é o mesmo que culpar a bússola por apontar para o norte. O componente psicológico do transexual, caracterizado pela convicção íntima de pertencer a um determinado sexo, encontra-se em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento. Sua convicção de pertencer ao sexo oposto àquele que lhe fora oficialmente dado é inabalável e se caracteriza pelas primeiras manifestações da perseverança desta convicção, segundo uma progressão constante e irreversível, escapando a seu livre-arbítrio.”
(VIEIRA, 2000, p. 64)
Dessa forma, pode-se afirmar que o transexual possui um corpo em desacordo com sua identidade psíquica, buscando libertar-se dessa dissonância. Deve prevalecer, portanto, o seu desejo de mudança, em respeito ao direito da personalidade e, como consequência, ao direito da pessoa humana.
Com esse fundamento, é perfeitamente possível admitir o transexual, desde que transformado cirurgicamente em mulher, como vítima da violência de gênero caracterizadora da qualificadora do feminicídio.
Contudo, não se admite que o homossexual masculino, que assume na relação homoafetiva o “papel de mulher”, seja considerado vítima de feminicídio, apesar de entendimentos em sentido diverso. A qualificadora é taxativa ao se referir à “condição de mulher”.
O legislador pretendeu proteger a mulher, pessoa do sexo feminino, em razão de sua condição de vulnerabilidade frente ao predomínio físico de homens geralmente mais fortes. Exige-se, portanto, que a conduta do agente seja motivada pela violência doméstica ou familiar, ou pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher — o que não se aplica ao homossexual masculino.
Não se trata, por outro lado, de norma penal destinada a proteger a homossexualidade ou a coibir a homofobia. Tampouco se admite sua ampliação para incluir o homossexual masculino na relação homoafetiva, ao contrário do que ocorre no crime de violência doméstica (art. 129, § 9º, do CP, incluído pela Lei nº 10.886/2004). Nessa hipótese, independentemente do gênero, o homem também pode ser vítima de violência doméstica.
Ademais, o homossexual masculino, ativo ou passivo, não pretende ser mulher, não se porta como mulher, não é mulher, mas apenas mantém como opção sexual a preferência por pessoas do mesmo sexo. Ainda que quisesse ser mulher ou agisse como tal, não o seria legalmente reconhecido como tal. Eventual discriminação, se houver, não ocorrerá em razão de sua condição de mulher, pois não a ostenta. Admiti-lo como sujeito passivo de feminicídio implicaria ampliar indevidamente a punição, atribuindo a qualificadora a uma condição inexistente. Isso representaria violação ao direito penal da culpabilidade, que se fundamenta nos dogmas da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, próprios de um Estado Democrático de Direito.
Importa esclarecer que a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) não possui a mesma abrangência da Lei Maria da Penha. Esta última trata de medidas protetivas e corretivas contra a discriminação, independentemente da orientação sexual. Por se tratar de norma de caráter protetivo e não penal, admite analogia e interpretação extensiva, inclusive em benefício de homens em relações homoafetivas. Os Tribunais Superiores, inclusive, já reconheceram essa aplicabilidade.
Com acerto, Cunha assinala:
“A incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade. Na hipótese de relação homoafetiva entre mulheres, é absolutamente irrelevante quem exerça o papel feminino ou masculino no cotidiano de ambas, pois, em qualquer circunstância, ocorrendo um homicídio nas condições definidas no texto legal, estará configurada a qualificadora do feminicídio.”
(CUNHA, 2017, p. 23)
Portanto, para os efeitos penais da qualificadora, é plenamente possível que o transexual figure como vítima do feminicídio, desde que, mediante cirurgia, tenha alterado suas características físicas e sua identidade civil.