6.Da impropriedade da tese da obrigatória utilização da personalidade jurídica de direito privado da espécie empresa pública para suportar contratos de consórcios públicos
Este é outro nevrálgico ponto de debate entre os que se interessam em estudar o instituto do consórcio público, existindo posicionamento no sentido de entender que a reclassificação judicial ocorrida com o BRDE, nos acórdãos examinados neste ensaio, de autarquia interestadual para empresa pública, deverá servir de norte para a classificação da personalidade jurídica suporte dos consórcios públicos. Assim, segundo tal linha argumentativa, os consórcios públicos de direito público não poderiam ser suportados por associações públicas, e os de direito privado, tampouco por fundações ou associações civis, mas por empresas públicas por serem entidades da administração indireta que poderiam ser constituídas de forma pluripessoal, ou seja, vários entes federativos poderiam se unir e criar uma empresa pública sem que isso representasse qualquer violação ao ordenamento jurídico.
Mais uma vez, parece-nos surgir invencível elemento anacrônico a invalidar o raciocínio jurídico acima esboçado, pois fundado nos já mencionados acórdãos do Recurso Extraordinário nº 120.932 e Ação Cível Originária n.º 503-RS, julgados pelo STF, respectivamente, em 24/03/1992 e 25/10/2001, para defender a obrigatoriedade de utilização de personalidade jurídica de direito privado suporte, da espécie empresa pública, na criação de contratos de consórcios públicos. Neste aspecto, conveniente dois comentários.
O primeiro, para repisar que os conceitos jurídicos utilizados nos aludidos acórdãos do STF remontam à ordem jurídica de 1961, que era a vigente por ocasião da criação do BRDE, cuja observância se impõe ao perfeito deslinde das retromencionadas demandas judiciais.
Portanto, os fundamentos jurídicos embasadores das aludidas decisões judiciais são anteriores à EC n.º 19/98, que trouxe, como já afirmamos, mudança paradigmática fundamental no exame da matéria, através da positivação do princípio da cooperação interfederativa, viabilizador da instituição de autarquias interfederadas, personalidades jurídicas de direito público suportes dos contratos de consórcios públicos.
O segundo, para evidenciar que a escolha da espécie da personalidade jurídica de direito privado, empresa pública, não decorreu de necessária interpretação sistemática dos dispositivos, acerca da matéria, existentes na Constituição Federal, Lei Federal n.º 10.406/02 (Código Civil) e Lei n.º 11.107/05 como se demonstrará a seguir.
De se notar que, em seu artigo 6º, a Lei Geral de Consórcios estabelece que o consórcio público adquirirá personalidade jurídica de direito público, apenas no caso de constituir associação pública [46], a fim de possibilitar que a novel entidade criada seja integrante da administração indireta dos entes consorciados. Tanto é assim, que em seu § 1º, o dispositivo reforça esta idéia disciplinando expressamente tal condição [47].
Portanto, a nosso sentir, não há espaço para a empresa pública ser utilizada como suporte das atividades de contrato de consórcio público porque, apesar de tal entidade integrar a administração indireta, consoante dispõe o art. 4º do Decreto-Lei n.º 200/67 [48] (aplicável aos demais entes federativos por força do princípio da simetria), esta espécie de personalidade jurídica de direito privado, a partir do advento da Lei n.º 11.107/05, foi implicitamente excluída da gestão associada de serviços públicos.
É que a Lei dos Consórcios foi expressa ao considerar que, no caso específico dos consórcios públicos, somente a personalidade jurídica de direito público, entenda-se associação pública, integraria a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados, face à sua condição de autarquia multifederada, autorizada a partir da alteração promovida no artigo 41, inc. IV, da Lei 10.406/02 (Código Civil).
Está-se, portanto, diante de uma conclusão importante: da interpretação sistemática dos artigos 241 da Constituição Federal; 41, inc. IV do Código Civil e 6º, inc. I e § 1º, da Lei Geral dos Consórcios Públicos parece resultar que a única alternativa jurídica viável à criação de personalidade jurídica, integrante da administração indireta dos entes federativos, que possa dar suporte ao contrato de consórcio público seja a associação pública. Assim, exsurge de forma cristalina que a Lei Consorcial elegeu esta nova modalidade de autarquia como sendo a única espécie de personalidade jurídica possível de suportar as atividades consorciais e ao mesmo tempo, pertencer à administração indireta dos entes consorciados.
Portanto, diante disso, entendemos não ser juridicamente possível instituir empresa pública para suportar contrato de consórcio público, o que impossibilita, na prática, a utilização de tais empresas na condução das atividades consorciais.
7.Da constitucionalidade da minuta do futuro decreto regulamentar da Lei 11.107/05. Norma Nacional.
Também importa considerar a existência de entendimento no sentido de considerar o texto da minuta do futuro decreto regulamentar eivado de inconstitucionalidade pelo fato de dito normativo determinar procedimentos aos demais entes federativos, ferindo assim autonomia federativa insculpida no caput do artigo 18 [49].
Nesse sentido, não obstante o respeitável argumento acima deduzido, assumimos posicionamento diverso, convictos de que o texto do futuro decreto regulamentar da Lei n.º 11.107/05 não padece de inconstitucionalidade ao determinar procedimentos aos demais entes federativos – Estados, Distrito Federal e Municípios – que desejarem fazer uso da gestão associada de serviços públicos. É que, a nosso juízo, não há falar em afronta à autonomia federativa garantida pelo caput do artigo 18 da CF porque, como já se abordou no tópico 4.1, a Lei n.º 11.107/05 é uma lei federal de caráter geral, portanto, de aplicabilidade nacional. Assim, trata-se de norma nacional que deverá ser obedecida por todos os entes da Federação brasileira. Fosse aceitável o argumento deduzido em sentido contrário, a Lei n.º 4.320, de 17/03/1964, também padeceria de inconstitucionalidade vez que seu artigo 1º, assim disciplina, verbis:
"Art. 1º. Esta lei estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, de acordo com o disposto no artigo 5º, inciso XV, letra b, da Constituição Federal."
Ou seja, disciplina as normas gerais de direito financeiro que deverão ser obedecidas por todos os entes federativos e nem por isso foi considerada inconstitucional, sendo amplamente utilizada, pois trata-se de norma, como já se afirmou, de caráter nacional. Aliás, vale reproduzir as palavras de CELSO RIBEIRO BASTOS, que ao comentar a Lei Federal n.º 4.320/64, asseverou que "embora federal, ela é cogente para os Municípios, uma vez que se trata de normas gerais de direito financeiro" [50].
No mesmo patamar qualitativo encontra-se a Lei Complementar n.º 101, de 04/05/2000, que tratou de estabelecer normas financeiras voltadas para a responsabilidade fiscal voltadas para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, como se observa da simples leitura do § 2º do artigo 1º da aludida lei, verbis:
"Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.
....
§ 2º As disposições desta Lei Complementar obrigam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios."
Dessa forma, uma vez constatado que a Lei dos Consórcios ostenta a mesma qualidade da Lei 4.320/67 e da Lei Complementar n.º 101/00 – norma geral de caráter nacional –, pensamos ser corolário lógico admitir que seu decreto regulamentar também deva ser considerado norma de caráter nacional. Assim sendo, não vemos como considerá-lo inconstitucional, pelo que os demais entes federativos dever-lhe-ão plena obediência em todos os seus termos e condições.
8.Conclusões
O debate sobre a regulamentação da Lei n.º 11.107/05 é oportuno e bem-vindo, haja vista a necessidade de se completar adequadamente o regime jurídico dos consórcios públicos inaugurado pela aludida lei. A minuta do decreto que trará em seu Anexo Único o Regulamento da Lei dos Consórcios, que salienta-se, não é texto definitivo, mas mero esboço das pretensões da autoridade competente, traz algumas situações jurídicas, já comentadas ao longo do presente ensaio, que certamente merecerão a devida atenção dos operadores jurídicos diretamente envolvidos na sua elaboração, em especial aquelas ligadas à ilegalidade do futuro decreto disciplinar transferências voluntárias, auxílios estrangeiros e operações de crédito aos consórcios públicos em razão de a lei regulada não ter previsto tais possibilidades, somado ao óbice legal trazido pelo artigo 25 da LRF.
Por fim, diante de tudo quanto foi analisado, cumpre elencar as principais conclusões do presente trabalho:
a)A Lei dos Consórcios Públicos estabelece ao longo de todo seu corpo textual, a nosso sentir, dois planos distintos de abordagem normatizora, denominados para fins didáticos, de plano da contratualização e plano da personalização. Enquanto o plano da contratualização disciplina regras relativas às pactuações que os entes consorciandos deverão obedecer para que os contratos de consórcio público sejam considerados válidos, o plano da personalização encarrega-se de disciplinar as espécies de personalidade jurídica que darão suporte às atividades oriundas de um contrato de consórcio público;
b)a Lei n.º 11.107/05 é uma lei nacional a exemplo de várias outras promulgadas pela União, como as Leis n.º 4.320/64 (finanças públicas), 8.666/93 (Licitações), Lei Complementar n.º 101/00 (responsabilidade fiscal), entre tantas outras. Assim, respeitosamente, dissentimos do entendimento de que dita norma seria inconstitucional por ferir a autonomia federativa insculpida no caput do artigo 18 da Constituição Federal;
c)teleologicamente a Lei Consorcial visa a instrumentalizar a viabilização de consórcios públicos para a realização de objetivos de interesse comum que necessariamente não se confundem com os requisitos "equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional" pautados Parágrafo Único do artigo 23 da Texto Constitucional, mas ao revés, encerram conceito bem mais amplo do que as hipóteses qualificadoras exautivas de lei complementar enunciadas no indigitado artigo constitucional. Assim, também não há falar em inconstitucionalidade formal da Lei n.º 11.107/05, por não ser lei complemetar, porque inexistente tal obrigatoriedade;
d)entendemos pela absoluta inviabilidade de utilização da tese que defende a impossibilidade de criação de uma associação pública (autarquia interfederativa), fundada nos acórdãos do Supremo Tribunal Federal, prolatado no REx n.º 120.932 e na Ação Cível Originária n.º 503-RS, julgados, respectivamente, em 24/03/1992 e 25/10/2001, que abarcaram a clássica questão da transformação, via judicial, da personalidade jurídica autarquia interestadual do Banco Regional do Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE – em empresa pública, em razão de ausência de normativo constitucional, à época da criação do aludido banco, que pudesse permitir a vanguardeira construção jurídica intentada no longínquo ano de 1961, tendo em vista que redunda de hermenêutica anacrônica, pois a ordem jurídica, utilizada para o deslinde das aludidas demandas judiciais, é anterior à Emenda Constitucional n.º 19, de 04/06/1998, que alterou o artigo 241 da CF, trazendo ao ordenamento jurídico brasileiro o princípio da cooperação interfederativa, viabilizador da criação de autarquias interfederativas entre nós;
e)o artigo 241 da Constituição Federal, alterado pela Emenda Constitucional n.º 19/98, encerra implicitamente o princípio constitucional da cooperação interfederativa, que carrega a idéia da conjugação de esforços dos diferentes entes federativos, visando à implementação de determinada política pública, que individualmente, nenhum deles teria condições plenas de realizar com eficácia;
f)face ao princípio da cooperação interfederativa insculpido no artigo 241 da Constituição Federal, a partir da EC n.º 19/98, é possível afirmar que a natureza jurídica de uma a associação pública é a de autarquia interfederativa; e
g)não há falar em inconstitucionalidade do texto do futuro decreto regulamentar da Lei n.º 11.107/05, por suposto ferimento da autonomia federativa em razão dele disciplinar condutas aos demais entes federativos porque uma vez constatado que a Lei dos Consórcios ostenta a mesma qualidade da Lei 4.320/67 e da Lei Complementar n.º 101/00 – norma geral de caráter nacional –, pensamos ser corolário lógico admitir que seu decreto regulamentar também deva ser considerado norma de caráter nacional. Assim sendo, os demais entes federativos dever-lhe-ão plena obediência em todos os seus termos e condições.
Bibliografia
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. 2ª tir. São Paulo: Malheiros.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
BORGES, Alice Gonzalez. Os consórcios públicos na sua legislação reguladora. Interesse Público, ano 7, n.º 32, julho/agosto 2005, Porto Alegre: Notadez, p. 227-248.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 23.ed. 2ª tiragem. atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1998.
_____________________. Direito municipal brasileiro. 13.ed. atual. São Paulo: malheiros, 2003.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os consórcios públicos. Revista Eletrônica da Direito do Estado, Salvador, n.03, julho/agosto/setembro 2005, 03 jul. 2005. Disponível em:
NOGUEIRA, José Geraldo Ataliba. Leis nacionais e leis federais no regime constitucional. In: PRADE, Péricles Luiz Medeiros. Estudos jurídicos em homenagem a Vicente Ráo. São Paulo: Resenha Universitária, 1976, p. 129-162.
SILVA, Cleber Demetrio Oliveira da. Lei orgânica nacional dos tribunais de contas: instrumento de aprimoramento das instituições brasileiras de controle externo. Fórum Administrativo – Direito Público – FA. ano 5, n. 47, jan. 2005. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 4969.
_______________________________. Lei nº 11.107/05: marco regulatório dos consórcios públicos brasileiros. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 705, 10 jun. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6872>. Acesso em: 11 nov. 2005.
_______________________________. A simetria conceitual existente entre a teoria de justiça de John Rawls e os consórcios públicos. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 816, 27 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7344>. Acesso em: 11 nov. 2005.