Os reflexos do ativismo jurídico da Defensoria Pública da União na concretização do direito à saúde

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25/01/2020 às 22:31
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Reflete-se sobre a atuação imprescindível da Defensoria Pública da União, especialmente da DPU/GO, na concretização do direito à saúde pela população hipossuficiente, em razão da negligência do Poder Público na garantia de tratamentos médicos.

INTRODUÇÃO

Com o intuito de contextualizar a temática do presente artigo científico, propõe-se o seguinte caso:

A senhora Zélia[1], idosa de 72 anos, residente em Goiânia – GO, aposentada, é portadora de diabetes e faz acompanhamento médico pelo Sistema Único de Saúde desde que descobriu a doença. Como tratamento, a médica especialista que lhe atende prescreveu o uso de duas insulinas, as quais eram fornecidas pela Secretaria de Saúde do Estado. No entanto, no início do mês de setembro de 2017, quando completaria um ano de tratamento, a Sra. Zélia foi informada por um servidor da Secretaria de Saúde que as insulinas não seriam mais fornecidas. Desesperada e com receio de ficar sem estes medicamentos essenciais para sua saúde, a Sra. Zélia voltou a procurar sua médica. Ao saber da negativa do Poder Público em fornecer as insulinas, a médica que acompanha a Sra. Zélia, sabendo das condições financeiras da paciente (que possui uma renda de apenas um salário mínimo), disse-lhe para buscar a Defensoria Pública da União em Goiás (DPU/GO), a fim de tentar conseguir as insulinas através da “justiça”. Seguindo a indicação de sua médica, a Sra. Zélia compareceu à DPU/GO e com o auxílio jurídico da instituição ajuizou uma ação judicial contra a União, o Estado de Goiás e o Município de Goiânia para o fornecimento da medicação que necessita. Após o trâmite do processo judicial, sobreveio sentença mediante a qual o juízo julgou o pedido da Sra. Zélia procedente e condenou o Estado de Goiás a fornecer as insulinas.

Como este, inúmeros são os casos em que pessoas desprovidas de recursos só conseguem acesso ao tratamento médico ou serviço de saúde que necessitam mediante a assistência jurídica realizada pelas Defensorias Públicas e após a intervenção do Poder Judiciário. 

Esta temática surgiu por ocasião de um estágio na DPU/GO, onde foi possível manter contato com diversas pessoas atendidas pela instituição em razão de estarem em condição de hipossuficiência. Este contato e a possibilidade de vivenciar o trabalho da Defensoria Pública serviu de motivação para o presente artigo, cujo objetivo é abordar os reflexos do ativismo jurídico da Defensoria Pública da União na concretização do direito à saúde.

O artigo se divide em três seções, sendo que a primeira é intitulada como “a Defensoria Pública da União”, na qual destacam-se os ensinamentos de SILVA (2013) e RESSURREIÇÃO (2012). Nesta primeira parte, a Defensoria Pública é apresentada como instituição imprescindível para a efetivação do direito de acesso à justiça, posto que é a única do ordenamento jurídico apta a resgatar as pessoas que eram distanciadas do Poder Judiciário, conscientizando-as sobre os seus direitos e a forma de impedir que estes sejam restringidos.

Já na segunda e terceira seções, são utilizados como referências predominantes os trabalhos de ORDACGY (2009; 2017) e OUVERNEY (2016), sendo que, na segunda, intitulada como “a saúde no Brasil”, há uma exposição sobre o direito à saúde, assegurado pelos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 como direito social fundamental, além da discussão acerca da judicialização deste direito como consequência do descaso do Poder Público e das falhas das políticas públicas voltadas para a saúde.

Por fim, na terceira seção são abordadas as contribuições da Defensoria Pública da União na concretização do direito à saúde, de modo que é especialmente considerada a atuação da Defensoria Pública da União de Goiás (DPU/GO) em demandas referentes à saúde, sendo expostos dados estatísticos do ano de 2018 que demonstram a imprescindibilidade do ativismo jurídico desta instituição para o acesso à saúde pelas pessoas hipossuficientes residentes no estado goiano.


1. A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana e a cidadania foram reconhecidas como fundamentos da República Federativa do Brasil. Além disso, determinou-se que alguns dos objetivos fundamentais do nosso Estado são a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Por conseguinte, para que estes preceitos não fossem considerados apenas palavras lançadas em um papel em branco, tornou-se necessário criar meios que garantissem a sua realização. Neste sentido, o constituinte atentou-se em assegurar o direito de acesso à justiça, pois mediante o seu exercício a população poderia buscar a concretização de outros direitos sociais, como por exemplo o direito à saúde.

Conforme expõe Neves (2018, p. 92), no tocante ao acesso à justiça pelos necessitados econômicos, o sistema pátrio vale-se da assistência judiciária integral e gratuita aos declarados “pobres” na acepção jurídica do termo, a qual é prestada pelas Defensorias Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, segundo foi estabelecido nos artigos 134 e 135 da Constituição Federal (CF) e regulamentado posteriormente na Lei Complementar nº 80/94.

A Defensoria Pública, portanto, é a única instituição do ordenamento jurídico brasileiro capaz de promover uma verdadeira inclusão social, sendo inclusive considerada cláusula pétrea da Constituição “por inserir-se dentre as garantias fundamentais protegidas de qualquer proposta de emenda constitucional que tenha por objeto sua supressão ou mesmo redução do seu alcance” (CÓRDOVA, 2013, p.1).

No âmbito nacional, as funções deste agente de transformação social são desempenhadas pela Defensoria Pública da União que, desde a sua implantação em caráter emergencial pela Lei nº 9.020/95, promove a assistência jurídica dos beneficiários da gratuidade da justiça em relação à casos que envolvam órgãos da administração pública federal.

1.1 ACESSO À JUSTIÇA

De acordo com os ensinamentos de Cappelletti e Garth (1988, p. 9), o acesso à justiça era considerado um direito natural e, como tal, exigia-se apenas uma abstenção estatal, de modo que para a sua preservação era preciso somente que o Estado não permitisse que ele fosse infringido por outros direitos.

Entretanto, notou-se que a impassibilidade estatal restringiu o acesso à justiça a apenas uma parcela dos cidadãos. À vista disso, o Estado toma caráter de garantidor e desperta a atenção para o fato de que a garantia do direito de acesso à justiça é indispensável no tocante ao cumprimento dos direitos sociais.

Por este ângulo, Boaventura de Souza Santos (2000, p. 167) elucida que o acesso à justiça é um direito “charneira”, isto é, sua denegação acarretaria a de todos os demais, posto que é por meio do referido direito que o indivíduo pode alcançar uma ordem jurídica justa, que lhe permita reivindicar do aparelho estatal aquilo que lhe foi negligenciado e receber soluções céleres, adequadas e eficientes para suas demandas.

Ademais, a defensora pública Michelle Valéria Macedo Silva (2013, p.11) ensina que o acesso à justiça diz respeito à própria condição humana, consistindo no núcleo essencial dos direitos que garantem uma vida digna. Deste modo, cumpre ao Estado, de maneira obrigatória, assegurar aos cidadãos socialmente vulneráveis o conhecimento de seus direitos, sem o qual não possuem capacidade de autodeterminação social e apresentam-se em desvantagem no sistema político.

Neste sentido, a efetivação do direito de acesso à justiça somente se atende com a criação das Defensorias Públicas, tendo em vista que esta instituição é a mais competente para resgatar os indivíduos colocados à margem da sociedade e fazer com que eles alcancem o pleno exercício de suas liberdades individuais.

Logo, demonstra-se que a Defensoria Pública, no exercício de sua função de agente de transformação social e por meio da representatividade processual qualificada dos menos favorecidos, impulsiona a conquista dos demais direitos fundamentais do ser humano.

1.2 A DEFENSORIA PÚBLICA NO BRASIL

A Defensoria Pública é, ao lado da Advocacia-Geral da União, a instituição mais recente dentre as que compõem o sistema de justiça brasileiro, visto que surgiram com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Moreira (2016, p. 77) explica que os constituintes foram além de definir que o acesso à justiça é um direito fundamental que deve ser garantido pelo Estado, determinando, ainda, que a defesa e a orientação jurídica de pessoas consideradas pobres, na acepção jurídica do termo, devem ser realizadas por uma instituição própria e autônoma, mantida pelo Poder Público, cujos servidores possuem características específicas e ingressam por concurso público.

Esta instituição é a Defensoria Pública e a ela foi dedicada uma seção exclusiva da Constituição de 1988. No artigo 134, caput, do referido diploma, a Defensoria Pública foi alçada ao grau de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, sendo lhe assegurada autonomia funcional e administrativa, além da iniciativa de sua proposta orçamentária (§2º do artigo 134 da CF).

O auxílio jurídico realizado pelas Defensorias Públicas às pessoas pobres na acepção legal do termo é assegurado aos brasileiros pelo artigo 5º, LXXIV, da CF, que determina que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Este papel constitucional da Defensoria Pública foi reafirmado, em 03/04/2019, pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.148.609/RS:

Devo ressaltar, por ser justo e necessário, a decisiva atuação da Defensoria Pública da União, que se mostra fiel, uma vez mais, à sua nobre vocação constitucional, pois, como o Supremo Tribunal Federal já o disse: “A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado”.

A Lei Complementar n.º 80 de 1994 (LC 80/94) é responsável por organizar as Defensorias Públicas dos Estados-membros e a Defensoria Pública da União, só que as funções destas instituições vão muito além das estabelecidas na legislação, uma vez que, primordialmente, possuem o compromisso de consolidar a cidadania e promover a conscientização dos direitos sociais.

Nessa linha é que a Defensoria Pública ganha contornos de imprescindibilidade para a promoção de uma verdadeira inclusão social (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 158), visto ser sua função atuar, judicial e extrajudicialmente, com o desiderato de fazer valer os valores constitucionais atinentes a uma vida digna (RESSURREIÇÃO, 2012, p. 100).

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Silva (2013, p. 14) dispõe que no processo as partes devem estar em igualdade de condições a fim de evitar injustiças disfarçadas na mera igualdade formal. Para isso, o Estado, através de ações afirmativas, deve intervir e assegurar à população carente o conhecimento de seus direitos, lhes possibilitando o acesso ao Poder Judiciário amparado por um profissional qualificado, no caso o Defensor Público, que defenderá seus interesses de forma gratuita.

Isto posto, evidencia-se que a existência de uma Defensoria Pública robusta e devidamente fortalecida é exigência direta do regime democrático (LANDIM, 2008, p. 58) em que há a proeminência da dignidade da pessoa humana e uma busca incessante pela efetivação dos direitos sociais (RESSURREIÇÃO, 2012, p. 102), visto que é por meio dela que a parcela socialmente mais vulnerável de nossa população alcança o exercício da cidadania de maneira plena e equitativa.

1.3 COMPETÊNCIAS DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

A Defensoria Pública da União (DPU), fundada em 1995, é competente para, nos termos da Lei Complementar 80/94, prestar assistência jurídica, integral e gratuita, judicial e extrajudicial, ao cidadão hipossuficiente, perante os Juízos Federais, do Trabalho, Juntas e Juízos Eleitorais, Juízos Militares, as Auditorias Militares, Tribunal Marítimo e perante as instâncias da Administração Pública Federal, nos Tribunais Superiores e no Supremo Tribunal Federal, contemplando as mais diversas áreas de atuação, tais como direitos humanos, previdenciário, cível, criminal, entre outras.

A DPU presta serviços de forma corretiva, preventiva e consultiva tanto na esfera individual (LC 80/94, art. 4º) quanto na esfera coletiva; também promove ações civis públicas (ACPs) e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes, sendo ele indivíduo brasileiro ou estrangeiro, conforme é apresentado na página cinco de sua Carta de Serviços[2].

Além disso, a instituição também opera de forma extrajudicial buscando a resolução dos conflitos por meio da realização de conciliação e acordo entre as partes, evitando o aumento do número de processos judiciais que chegam ao Poder Judiciário e a longa espera dos assistidos por soluções definitivas aos problemas que possuem.

É conveniente esclarecer que de acordo com a Resolução nº 134, de 07 de dezembro de 2016, do Conselho Superior da Defensoria Pública da União (CSDPU), o parâmetro considerado como presunção de necessidade econômica para fins de assistência jurídica integral e gratuita é de R$ 2.000,00 (dois mil reais), considerando a renda mensal bruta do grupo familiar do assistido.

Anteriormente, o valor considerado era o equivalente à três salários mínimos e, apesar das restrições orçamentárias, a DPU obteve um aumento no número de atendimentos realizados, posto que do ano de 2016 para o ano de 2017 houve um aumento de 181.628 atendimentos realizados aos assistidos, conforme informações dispostas no Gráfico 6 constante na página 46 da 3ª edição da série “Estudos Técnicos da Defensoria Pública da União”, publicada em 2018, também denominada como “MAPA DPU 2018”.

O órgão de execução da DPU em Goiás, responsável pelo núcleo regional de Goiânia e Aparecida de Goiânia, realizou 26.883 atendimentos em 2017 e 27.684 atendimentos em 2018[3], além de ser responsável pela cobertura de 22% das seções/subseções judiciárias federais do Estado de Goiás, tendo recebido, neste período, demandas de pessoas oriundas de 172 dos 246 municípios goianos, correspondendo a 70% do total de municípios[4].

Após esse panorama geral das atividades exercidas pela DPU, quando tratamos das demandas mais recorrentes na instituição observamos o maior protagonismo da saúde como fator de mobilização do sistema de justiça por parte de pessoas em situação de vulnerabilidade social (PEDRETE, 2017, p. 4-5), o que explicita a judicialização deste direito fundamental e a necessidade da atuação da instituição para garanti-lo à população carente.

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Sobre a autora
Letícia Lopes da Luz

Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GO). Pós-Graduanda em Direito Constitucional, Políticas Públicas e Acesso à Justiça pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Pós-Graduada em Direitos Humanos pela Faculdade CERS em parceria com o Curso CEI. Foi premiada pela PUC GO com o título "Mérito Acadêmico Magna Cum Laude". É assessora do Núcleo Especializado de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Goiás (NUDH/DPE-GO) desde novembro de 2020. Estagiou na DPU/GO (2018 a 2019), na PFN/GO (2016 a 2018) e na PGE/GO (2016).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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