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A confusa instrução do processo disciplinar.

29/08/2022 às 18:00
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O artigo tem o sentido de pacificar o entendimento sobre a ordem lógica de produção de provas nos processos disciplinares, evitando que as comissões trabalhem com um modelo e a defesa com outro, o que invariavelmente conduz a incidentes.

Introdução – o impasse

A instrução do processo disciplinar, assim considerada a fase em que são recolhidas as provas para formar o convencimento de mérito, é um dos momentos mais difíceis para a comissão e para a defesa. Para aqueles que são nomeados para instruir os autos, a dificuldade consiste no desconhecimento do método; em que pese serem profissionais preparados nos seus ofícios originais, não têm a experiência dos juízes e nem a prática dos advogados, que conhecem a lógica dos procedimentos porque esse é o cotidiano da profissão.

Manuais preparados muitas vezes no ambiente da burocracia agridem a ordem jurídica, ofendem o chamado devido processo legal e fazem da fase probatória uma sequência de atos sem as formalidades preceituadas na legislação de apoio.

Para os profissionais da advocacia o impasse está no descompasso entre o direito e aquilo que a comissão faz de forma improvisada ou induzida ao erro pela própria administração ou seus prepostos.

Este texto, então, tem o sentido de observar que a instrução deve ser dividida em três momentos principais.

  1. Repetição das provas que sustentam a acusação;
  2. Produção das provas de ofício.
  3. Contraprovas da defesa.

Essa ordem precisa estar na memória de quem opera no sistema. Deveria ser, como nos processos judiciais, algo absolutamente normal, sem inverter o sistema, sem confundir os momentos, sem misturar as oportunidades. Note-se, a propósito, o apontamento abaixo e que ele seja fixado definitivamente:

  1. PROVAS DE ACUSAÇÃO
  2. PROVAS DE OFÍCIO
  3. CONTRAPROVAS DA DEFESA

É a falta da compreensão desse modelo que dá início ao choque entre comissão e advogados; é isso o que abre espaços para os complexos embates judiciais. Mas é algo tão simples, tão elementar, que não deixa espaço para questionamento dentro da lógica processual.

Essa instrução (a serem considerados os três momentos acima), ainda poderá ser reaberta após a defesa escrita, quando surgirem elementos que justifiquem complementar os esclarecimentos.


A ordem lógica

Em um roteiro simplificado, tem-se que a comissão instalou os trabalhos, notificou o arguido e deliberou sobre a repetição da prova acusatória, geralmente aquela que veio de uma sindicância investigativa. Produzida essa prova, será a vez de a comissão analisar eventuais pontos de dúvidas e decidir por provas da sua escolha. Essas provas de iniciativa da comissão são basicamente de conferência. Não cabe à comissão enveredar por investigações em paralelo, na busca de fatos e pessoas que não lhes foram apresentadas no ato inaugural da ação disciplinar.

Para conferir a qualidade da acusação, a comissão pode decidir por:

  • oitiva de testemunhas referidas;
  • exame de sanidade mental.
  • perícias diversas;
  • acareações ou novos depoimentos;
  • inspeções;
  • reprodução simulada;
  • ofícios a repartições públicas.

Nessa etapa o processo terá o seguinte conjunto:

  • a) prova de acusação, repetidas, reexaminadas;
  • b) provas de oficio, para esclarecimento de duvidas.

Com esse material nos autos o presidente da comissão expedirá ao arguido o mandado de intimação para que apresente, querendo, em pelo menos três dias uteis, as provas de seu interesse.

Há uma infeliz prática de a comissão, já na abertura da instrução, abrir prazo para que o arguido deposite rol de testemunhas. Ora, isso é induzir ao erro ou cercear a defesa. A razão é elementar:

  1. o acusado somente pode apresentar as suas testemunhas (e outras provas) depois de ver produzidos os eventuais elementos recolhidos contra si;
  2. a prova testemunhal não é a única da qual poderá se valer a defesa.

Exame dos requerimentos da defesa

Cabe à comissão, agora, examinar o pedido. Pressuponha-se que todas as provas têm uma razão para a defesa. Procure-se com boa vontade identificar o mínimo nexo com a causa e a possibilidade material para a produção. Deixe para indeferir aquelas provas que logo se percebe que têm o sentido de tumultuar a instrução; ou, além de serem irrelevantes, são de difícil processamento (pelo custo ou pela demora, por exemplo)

Quando o pedido de prova pode ser indeferido? Podem ser indeferidas as provas:

  • impertinentes;
  • irrelevantes;
  • sobre fatos já provados;
  • de produção impossível;
  • relativa a fatos para os quais a lei estabelece forma própria de provar.

A correta motivação

Tenha-se o cuidado de motivar corretamente quando for o caso de indeferir. Motivar significa mostrar o fato e o direito. Há quem cite um dispositivo legal e dê o assunto por fundamentado. Não se trata de tal singeleza. Primeiro se diz o que o requerente pretende e se faz um cruzamento com o objeto do processo (ou provas já recolhidas) para explicar, no plano fático, a impertinência ou irrelevância; depois, acrescenta-se a ordem legal que comanda a dispensa da prova nessas circunstâncias.

Diferença entre motivo e motivação

É interessante destacar que a doutrina faz diferença entre motivo e motivação. O motivo é aquilo que antecede o procedimento; está relacionado aos fatos em si; tem relação com a razão que leva a autoridade administrativa a adotar determinada providência. A motivação, por sua vez, é a explicação técnica para que todos compreendam os fundamentos que levaram àquela decisão. Dessa forma, ao se motivar, é medida de segurança que se explique o motivo e, na sequência, seja agregado o argumento jurídico.

Entenda-se que a falta de motivação torna o ato administrativo nulo, porque carece de elemento fundamental; e a motivação inadequada o coloca no plano da anulação, ou seja, a depender do conteúdo dos fundamentos apresentados poderá resultar invalidado.

Quem tem longa vivência na advocacia nesse ambiente percebe que há membros de comissão com o esquisito prazer de travar embate com a defesa. E, em assim procedendo, a tudo indeferem, a cada argumento rebatem – e é visível o ânimo de disputa pelo suposto saber jurídico. É evidente que isso a nada e a ninguém acrescenta; ambos os lados devem abdicar desse exercício de pequenez.


O conhecimento dos atos pelo advogado de defesa

Para toda diligência (inspeção), quando da realização de perícia e quando da oitiva de testemunhas, necessariamente o arguido deverá ser notificado. Em tendo advogado habilitado nos autos, a notificação será para ambos. Modernamente admite-se que os advogados sejam comunicados por e-mail, desde que cadastrem endereços eletrônicos para este fim.

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O advogado tem a obrigação de informar na procuração ou na petição que a encaminha o endereço em que receberá comunicação processual. Enviada a notificação para esse endereço e não sendo encontrado, e não comparecendo para o ato, o incidente será consignado nos autos e o presidente da comissão nomeará defensor ad hoc. Entretanto, se o defensor justificar a impossibilidade da presença até a abertura da audiência haverá adiamento. Sem justificativa, será constituído defensor para oficiar especificamente nessa oportunidade.

Note-se a interessante e correta posição do Judiciário do Rio Grande do Norte, em ação penal, cuja interpretação é válida para a ação disciplinar:

Não deve ser declarada nulidade do processo quando o advogado constituído, intimado regularmente para audiências que foram adiadas, não é localizado para ser notificado a comparecer às sessões posteriores, em razão de ter mudado de endereço e não ter feito a devida comunicação, ainda mais quando, em audiência, o Juiz nomeia advogada dativa e esta atua até o fim do processo sem objeção da ré.

TJ-RN - Apelação Criminal ACR 33494 RN 2002.003349-4 (TJ-RN) - Data de publicação: 06/12/2003

Neste caso:

  • O advogado mudou de endereço e não comunicou;
  • Foi expedida intimação ao endereço conhecido;
  • O advogado não compareceu e a autoridade nomeou defensora ad hoc;
  • A ré não fez objeção.

O processo, todavia, estaria na linha de risco se:

  • O advogado habilitado não fosse comunicado no endereço que cadastrou;
  • Tendo sido devidamente informado, o advogado não comparece, mas justifica em tempo hábil;
  • O advogado não comparece e não justifica e a autoridade deixa de nomear defensor para o ato.

Mantenha-se em lembrança que o processo exige equilíbrio de forças. O Estado de um lado, o cidadão de outro. Ninguém tem mais poder nos autos. Os dois polos se apresentam, cada qual com o seu papel. E se autoridade tem a força da representação que o cargo público lhe empresta, o advogado tem a prerrogativa do exercício profissional. A harmonia é da civilidade; a boa fé é das pessoas com senso de moral; a cooperação é das relações na sociedade moderna.

O Código de Processo Civil, que é a matriz de todos os processos, traz o princípio da cooperação processual, suas nuances, implicações processuais e a correlação com o princípio da não-surpresa.

Diz o diploma processual civil:

Art. 6º: Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

Afasta-se, com isso, o jogo de esperteza, seja por parte de advogados (e há lendas sobre isso), seja por parte das autoridades, que devem laborar sem ciladas, sem armadilhas, sem escamotear informações, sem abrir discussões ou incidentes.

No mesmo patamar apresenta-se o princípio da não-surpresa, assim considerado que as autoridades processantes não podem tomar decisões com base em elementos a que não deram conhecimento á parte contrária. Diz, nesse sentido, o CPC enuncia no art. 9º que "não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida" e, no art. 10, preceitua que "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".

CONCLUSÃO

Na conclusão dessa matéria, alerta-se para o seguimento de formalidades. Há, com efeito, enorme confusão entre o que alguns denominam de “princípio do formalismo moderado” com a liberação geral, para que os representantes da administração pratiquem os atos da forma como cada um entende que deve ser.

Se de um lado se pode admitir em certas situações a dispensa de formas rígidas, não é razoável que a lei, trazendo a descrição da forma – e sendo essa a referência dos profissionais da advocacia –, dentro da administração alguém crie, por critério particular, outra maneira de praticar um ato. O jogo torna-se confuso. Se há regra, ela deve ser cumprida.

A Lei nº 9.784/99 contribui para a balbúrdia ao enunciar:

Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir.

Perceba-se que a dispensa de forma determinada é quando a lei não a exige expressamente. Mas a produção de provas como oitiva de testemunhas e inspeções, tanto quanto o interrogatório, são momentos processuais com formas delineadas em lei processual. E assim são muitos os momentos no processo disciplinar em que não há como abdicar do rigor da formalidade. Ao pretexto de se buscar a verdade, não se pode tudo.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. A confusa instrução do processo disciplinar.: Quando comissão e defesa não se entendem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6998, 29 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79378. Acesso em: 19 mar. 2024.

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