Questão das mais controversas para a doutrina jusprocessual consiste naquela relativa à possibilidade de concessão da tutela antecipada por ocasião da sentença. Neste momento processual, diz o argumento predominante para as vozes que não a admitem, a cognição já deixou de ser sumária, ou fundada em juízo de verossimilhança, passando a ser qualificada como exauriente, estando o juiz apto a proferir sentença.
Assim é que, para alguns autores, resta inadmissível a concessão da tutela antecipada neste momento. Araken de Assis afirma que, nesta hipótese, a tutela em questão deixaria de ser "antecipada", cabendo ao juiz "proferir a sentença que dará ao autor, se for o caso, a satisfação de seu afirmado direito". Para o doutrinador, há termo final, relativamente ao juiz de primeiro grau: após a coleta da prova é-lhe vedado antecipar os efeitos da tutela, ainda que o receio de dano (art. 273, I) ou o abuso do réu (art. 273, II) apareçam nesta oportunidade.
E isso, consoante dispõe o art. 273, caput, porque a antecipação se limita a um juízo de verossimilhança. Esgotada a atividade probatória, surgirá a certeza, ultrapassando a singela plausibilidade.
(..) Colhida a prova, ao juiz compete proferir sentença, e, neste caso, nada mais antecipará – a "antecipação" do art. 273 é um provimento anterior à sentença, no procedimento e no tempo, tanto que o processo prosseguirá até final julgamento, a teor do art.273, §5o (..)"
O renomado processualista vai além, afirmando que a técnica antecipatória, através da qual se concederia a tutela antecipada em decisão apartada da sentença, em momento pouco antes desta, em ato "apenas formalmente autônomo", configuraria "reprovável burla à lei" [01].
De maneira semelhante conclui Sergio Sahione Fadel, inadmitindo o provimento antecipatório na própria sentença. Este entende que o juiz pode perfeitamente revogar ou alterar a decisão que antecipa os efeitos da tutela, ou ainda, modificado o seu convencimento, conceder o provimento anteriormente negado, em momento processual anterior à sentença. Entretanto, nada justificaria fazê-lo no momento da sua prolação. Constituiria, assim, "erro grosseiro" o juiz "deixar para deferir a tutela no momento de encerrar o ofício jurisdicional, juntando, numa única peça, a decisão antecipatória e a sentença, porquanto a tutela aí será definitiva e não a provisória de que cuida o art. 273 do Código de Processo Civil". [02] Além disso, ressalta que a própria etimologia do termo "antecipar" nos remete a "ocorrer antes algo que só ocorreria depois", para afirmar que, concedida simultaneamente à sentença, a tutela antecipada desfiguraria a própria natureza do instituto; a sentença, fundada em cognição exauriente, é o instrumento destinado a assegurar, de modo definitivo, a tutela antecipada provisoriamente e com base em um juízo de verossimilhança.
Ainda entre as muitas vozes contrárias à hipótese aqui salientada, podemos destacar Nelson Nery Júnior [03]. O doutrinador afirma que, ao apreciar o pedido de antecipação da tutela, deve o magistrado evitar a cognição plena, ou seja, não ingressar no exame profundo do mérito da pretensão jurídica, respeitando e corroborando a natureza provisória e superficial de tal medida. Assim, uma vez atingido o momento da prolação da sentença, e, portanto, atingido o magistrado a cognição plena, suficiente para dar solução ao litígio examinado, não haveria interesse processual na obtenção da antecipação, vez que a sua pretensão já fora definitivamente apreciada [04].
Entendemos serem equivocados tais posicionamentos, pelas razões que passamos a expor. Em primeiro lugar, é necessário afastar a idéia segundo a qual a antecipação da tutela concedida na sentença não prosperaria, uma vez que tal decisão não se trataria de verdadeira "antecipação". Sabe-se, entretanto, que a sentença não entrega, efetivamente, a tutela jurisdicional, mas apenas a apresenta. No momento em que profere a sentença, o magistrado apresenta a tutela jurisidicional a ser prestada àquele que, de acordo com o seu convencimento, detém a razão no plano do direito material. É intuitivo que a entrega da tutela jurisdicional, "a outorga, ao vencedor, da proteção postulada a um bem da vida", [05] só ocorrerá com a formação da coisa julgada, quando o processo se dá finalmente por encerrado. A antecipação aqui tratada, portanto, refere-se à entrega da verdadeira proteção jurídica, e não da sentença, uma vez que esta, conforme estudado, não tem o condão, por si só, de oferecer ao demandante a tutela jurisdicional. Ressalte-se que esta situação é ainda mais evidente nos casos em que a apelação tem efeito suspensivo. [06]
Supera-se, então, a crítica etimológica à hipótese aventada, restando certo que a antecipação da tutela e a sentença não constituem noções contrapostas ou excludentes, porquanto a sentença, por sua natureza imediatamente ineficaz – a sentença meramente apresenta a tutela jurisdicional, não a entrega – e vez que é sujeita a um recurso munido de efeito suspensivo, não possui aquilo que a tutela antecipada possui e pode lhe dar, a saber, a eficácia imediata da medida [07]. Desta maneira, observa-se a utilidade prática do pedido e da concessão da tutela antecipada no momento da prolação da sentença.
A inutilidade prática do pedido e da concessão da tutela antecipada no momento da prolação da sentença, é intuitivo, ocorre nos casos em que a apelação contra esta interposta naturalmente for desprovida de efeito suspensivo, a saber, todas as hipóteses previstas no rol de incisos do Artigo 520 do Código de Processo Civil [08], à exceção, obviamente, do inciso VII, justamente relativo à sentença que confirmar a antecipação dos efeitos da tutela. (Ressaltamos aqui que a inovação trazida ao artigo em tela pela Lei 10.352 de 2001 poderia ter sido mais clara, ao considerar também a hipótese da sentença que conceder a antecipação.) Assim é, portanto, desprovida de utilidade processual a decisão que concede a tutela antecipada na sentença condenatória à prestação de alimentos, por exemplo, uma vez que a sentença, neste caso, é imediatamente eficaz, atacável por apelação dotada apenas de efeito devolutivo.
Cognição exauriente x cognição sumária
Quanto à impossibilidade da concessão da tutela antecipada na sentença em virtude desta se fundar em um juízo de verossimilhança, ou cognição sumária, e ser, por isso, avessa à cognição desenvolvida pelo juiz ao sentenciar, esta plena e exauriente,o argumento não deve prosperar, vez que serve, muito pelo contrário, para justificar exatamente a posição que ataca. Resta incontroverso que se o sistema processual vigente admite que uma decisão baseada em cognição parcial surta efeitos imediatos, admitirá, por intuitivo, que uma decisão fundada em cognição plena também o faça.
Uma vez convencido o juiz da probabilidade de existência do direito, e já podendo este proferir decisão capaz de produzir seus efeitos, trata-se de decorrência lógica que este mesmo magistrado, tendo já formado um juízo de certeza seja, da mesma forma, capaz de proferir decisão imediatamente eficaz. Esta decorrência é lógica e intuitiva; e, por outro lado, trata-se de "nada mais que a aplicação do vetusto princípio segundo o qual, quem pode o mais, pode o menos´" [09]. Athos Gusmão Carneiro alude a julgamento da 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, que acordou pelo cabimento da tutela antecipada "inclusive nos Embargos de Declaração", ocasião na qual o Min. Sálvio de Figueiredo explicitou seu ponto de vista no sentido de que a admissibilidade da antecipação da tutela por ocasião da própria sentença é o mais razoável, porque "se possível ante uma cognição incompleta, justifica-se muito mais depois da instrução plena, por ocasião da sentença". [10]
Esta também é a opinião de Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, que consideram integralmente descabida a objeção à concessão da tutela antecipada na sentença; ao contrário, "evidentissimamente, se pode ser concedida liminarmente, razão de espécie alguma existe para que não se possa ser concedida na sentença, decisão proferida em momento em que o juiz já tem cognição plena e exauriente dos fatos da causa". [11]
Outras vozes na doutrina
José Roberto dos Santos Bedaque, em obra que procura sistematizar os institutos da tutela antecipada e da tutela cautelar, chega à conclusão de que, se presentes os requisitos para a medida excepcional no momento do julgamento, o juiz deverá acolher definitivamente a pretensão e proferir decisão que antecipa os efeitos do provimento. Afirma ele que, muito mais do que verossimilhança, como já demonstramos, existe, no momento da certeza, juízo de certeza, fundado em cognição plena. Demonstrados pelo autor o risco de dano ou o comportamento inadequado do réu, ou seja, os demais requisitos autorizativos da concessão da tutela antecipada, o modelo legal "encontra-se concretamente reproduzido e deve incidir". [12]
O magistrado paranaense Fernando César Zeni afirma que "se o próprio tribunal pode, após exaurir-se a prestação jurisdicional monocrática, deferir a tutela antecipatória, (..) não há razão de não deferir-se no bojo da sentença definitiva a tutela antecipada, sempre obedecendo seus requisitos autorizadores e com vistas a reparar danos que eventualmente surgirão com sua negativa". [13]
De acordo com este entendimento, Luiz Guilherme Marinoni, após expor longamente a sua sugestão de modificação do sistema processual, para admitir a execução provisória da sentença como regra, o que acabaria com a contradição derivada da eficácia imediata da antecipação da tutela e a ineficácia da sentença, conclui "ser possível a antecipação ainda que o juiz já esteja em condições de proferir a sentença". [14][15] O ilustre jurista vai além, afirmando que negar-se a possibilidade de concessão da tutela ao final do procedimento seria aceitar a irracionalidade do sistema processual.
Cumpre destacar ser do mesmo jurista obra em que são apresentadas diversas técnicas de antecipação da tutela, inclusive, e são estas hipóteses as que nos interessam, algumas fundadas na cognição plena ou exauriente. É fato que a doutrina e a jurisprudência se ocupam, majoritariamente, de situações em que ocorre a tutela antecipada liminar, baseada na cognição parcial ou sumária, concedida após a ouvida do demandado ou inaudita altera parte, uma vez que esta é a mais comum hipótese de incidência do instituto. Entretanto, imagine-se a situação em que alguém vai a juízo demandar a condenação do réu em vinte mil reais, por exemplo. Citado, o demandado contesta afirmando que a sua dívida é de apenas cinco mil reais. Ao fazê-lo, é intuitivo que o demandado reconheceu, parcialmente, a procedência do pedido do demandante. A seguir normalmente o processo, após as fases postulatória e instrutória, ter-se-ia a prolação de sentença, atacável por recurso dotado de duplo efeito, devolutivo e suspensivo. Nada obsta, no entanto, que o juiz, após o oferecimento da contestação, tendo formado um juízo de certeza quanto à existência de parcela incontroversa do crédito, antecipe a tutela condenatória, através de decisão interlocutória (obviamente impugnável via agravo), capaz de, no caso de não ser interposto a ela recurso, alcançar a autoridade de coisa julgada material, já que estará proporcionando uma solução definitiva a uma parcela do mérito da causa [16].
Esta é a hipótese de que cuida o novo §6º. do Artigo 273, acrescentado pela lei nº. 10.444, de 7 de maio de 2002, embora já houvesse sido prevista pela obra doutrinária supra-referida antes da sua entrada no ordenamento jurídico.
Incontroversa, portanto, a possibilidade da concessão da antecipação da tutela por ocasião da sentença, novas questões se apresentam, notadamente a natureza jurídica deste fenômeno, a forma processual que ele deve adotar (ou seja, qual procedimento deve tomar o autor que pleiteia a tutela antecipada na sentença, e como deve o magistrado concedê-la), e as importantes questões levantadas no plano dos recursos.
Notas
1.ASSIS, ARAKEN de, Antecipação de Tutela, in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.29
2.FADEL, Sergio Sahione. Antecipação da Tutela no Processo Civil. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 60-61, apud ALVIM, Luciana Carreira Gontijo, op.cit., p. 119
3.NERY JÚNIOR, Nelson. Atualidades sobre o Processo Civil. São Paulo: RT, 1996, pp. 76-77
4.No mesmo sentido, contra a concessão de tutela antecipada na sentença, Antônio Cláudio da Costa Machado, Tutela Antecipada, São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, pp; 559-560
5.CÂMARA, Alexandre, Escritos de Direito Processual, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.108
6.Na lição de Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. V: arts. 476 a 565. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.257), "a expressão efeito suspensivo é, de certo modo, equivocada, porque se presta a fazer supor que só com a interposição do recurso passem a ficar tolhidos os efeitos da decisão, como se até esse momento estivessem eles a manifestar-se normalmente. Na realidade, o contrário é que se verifica: mesmo antes de interposto o recurso, a decisão, pelo simples fato de estar-lhe sujeita, é ato ainda ineficaz, e a interposição apenas prolonga semelhante ineficácia, que cessaria se não se interpusesse o recurso".
7.BUENO, Cássio Scarpinella, Tutela Antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 84. Na lição do jurista paulista, que transcrevemos: "Assim, a existência da sentença, do ponto de vista da prestação da tutela jurisdicional, é insuficiente. Seus efeitos concretos é que completam o ciclo da prestação jurisdicional, e, por isso mesmo, é que haverá casos em que a tutela antecipada será responsável por isso. Parece ser lícita a afirmação, posto genérica, de que, em todos aqueles casos em que, antes da sentença, não tenha sido concedida a tutela antecipada e em que o recurso de apelação interponível da sentença tenha efeito suspensivo (que é, nunca é demais repetir, a regra escrita no caput do art. 520), haverá espaço para a tutela antecipada na sentença".
8.Artigo 520, Código de Processo Civil: "A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que:
I – homologar a divisão ou a demarcação;
II – condenar à prestação de alimentos;
III – julgar a liquidação de sentença;
IV – decidir o processo cautelar;
V – rejeitar liminarmente embargos à execução ou julgá-los improcedentes;
VI – julgar procedente o pedido de instituição de arbitragem;
VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela."
9.CÂMARA, Alexandre Freitas, op.cit., p. 110
10.Sobre a tutela antecipada na sentença e a jurisprudência, ver capítulo 4
11.WAMBIER, Luiz Rodrigues e WAMBIER, op.cit., p. 145
12.BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumária e de Urgência, 2ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 369
13.ZENI, Fernando, Deferimento do Pedido de Tutela Antecipatória na Sentença, artigo in Revista de Processo, vol. 94, São Paulo: RT, abr.-jun. 1999, p.75-80
14.MARINONI, Luiz Guilherme, Antecipação da Tutela. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.61
15.No mesmo sentido, entendendo ser cabível a concessão da antecipação de tutela no momento da sentença, Cândido Rangel Dinamarco (Tutela de Urgência, art. in Revista Jurídica, vol.286, p.18, agosto de 2001), Teori Zavascki (ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela. São Paulo:Saraiva, 1997, p.81), Paulo Afonso Brum Vaz (Antecipação da Tutela na Sentença e Adequação Processual, art. in Revista Jurídica, 253/46 e in RePro 92/159-198), entre outros.
16.MARINONI, Luiz Guilherme, 2004, A Antecipação da Tutela, op.cit., passim.