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Comunidade de abandônicos:

um ensaio atual sobre o programa Olho Vivo em Belo Horizonte, legitimidade e democracia deliberativa

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            O presente estudo tem um duplo caráter; demonstrar empiricamente a realidade da violência no Município de Belo Horizonte - e uma das suas respectivas frentes de combate - e, por outro lado, pretende traçar a importância da opinião pública na formação da legitimidade destas políticas de segurança através da reconstrução do conceito clássico de democracia.


1 - Introdução

            O Programa Olho Vivo, concebido através da Lei 15.435 de 11 de janeiro de 2005, ulteriormente alterado pelo Projeto de Lei 2.136 de 18 de março de 2005, em Belo Horizonte, consiste na instalação de câmeras de vigilância no hipercentro da cidade com o intuito de promover maior segurança, com a volta da população à área de comércio.

            Contudo, é possível dizer que algumas questões a respeito desta medida permaneceram e permanecem sem a devida análise, quais sejam: qual o nível de informação das pessoas quanto aos critérios, fundamentos e efeitos desta política? Estariam estas políticas em consonância com o que pretende a sociedade? Estão estas medidas em harmonia com os novos parâmetros de uma democracia deliberativa?


2 - Entendendo o Programa Olho Vivo

            O denominado programa Olho Vivo é uma política de segurança pública que realiza a modernização do espaço público através do monitoramento da comunidade por meio de câmeras. Concebida através da Lei 15.435 de 11 de janeiro de 2005, num esforço entre a Prefeitura de Belo Horizonte, o Estado de Minas Gerais e a Câmara de Dirigentes Lojistas, esta modalidade de vigilância é parte de uma série de medidas que compõem o projeto "Centro Vivo".

            É o que se lê no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte, que circulou em 15 de janeiro de 2005, ao apontar que o "Programa Olho Vivo faz parte de um pacote de medidas [Projeto Centro Vivo] para reduzir os índices de criminalidade nas principais áreas de risco da capital e Região Metropolitana" [sendo que o critério escolhido para implementação das câmeras] "foi realizado pela PMMG, que apontou as áreas com maior índice de criminalidade em cada uma das regiões."

            Visando disciplinar o artigo 2º da Lei de Vigilância, no tocante à obrigatoriedade de avisos quanto à utilização das câmeras de segurança foi proposto um Projeto de Lei, número 2.136, publicado no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte em 18 de março de 2005. A finalidade deste Projeto, como já se esboçou, era a de desobrigar a Administração Pública de afixar avisos informando a existência das câmeras sendo que, seus fundamentos se resumiam ao fato de, em caso de existência de sinais de identificação acusando a localização das câmeras, a Lei 15.435/05 estaria fadada ao insucesso, uma vez que os bandidos se esquivariam da captação das imagens escondendo seus rostos. Devido a esta circunstância, explica o relator, deputado Célio Moreira que

            "não podemos desprezar o fato de que, em algumas situações, o bem jurídico ‘segurança’ é mais relevante que o bem jurídico intimidade. [...] Afinal, a segurança é uma questão de ordem pública e que deve ser privilegiada em casos de conflito entre bens jurídicos tutelados pelo nosso ordenamento."

            Apresentado, então, o Projeto de Lei à Assembléia Legislativa de Minas Gerais, foi o mesmo submetido ao Parecer(2005) da Comissão de Constituição e Justiça para apreciação, tendo sido declarado constitucional. Os argumentos vindos à baila expõem que a instalação estratégica das câmeras no espaço público possui um caráter preventivo e repressivo; inibe os bandidos e pune os identificados. Acrescenta que, tanto os princípios de proteção da intimidade quanto o da segurança pública estão resguardados, uma vez que o artigo 2º da Lei 15.435/05 torna obrigatória a afixação de avisos de existência das câmeras, exceto nos casos em que estes identificadores comprometerem a eficácia do sistema. Por fim, além de ratificar os argumentos do Projeto de Lei 2.136/05, aludem que a possibilidade de afastar a obrigatoriedade se dá diante da preeminência da segurança pública em situações excepcionais, uma vez que, nesta situação, a segurança (baseada na incolumidade das pessoas e do patrimônio) é melhor(maior peso axiológico) do que a proteção à intimidade.

            Em suma, são estes os pontos desta política de segurança pública que avaliaremos sobre o prisma da legitimidade, não sem antes traçar um arcabouço da realidade da Capital Mineira.


3 - Aspectos sociais da realidade da Capital mineira

            O valor da palavra segurança parece perdida para significativa parcela dos brasileiros, com exceção de uma pequena porção que ainda goza das benesses de um patrimônio que lhe permite adquirir carros blindados, casas em condomínios de segurança máxima [como um dia se pretendeu denominar qualquer presídio brasileiro] e, principalmente, de se manter fora dos núcleos comunitários.

            Para esta nova elite globalizada, existe um mundo de extraterritorialidade, quer dizer, a real possibilidade de fugir da comunidade de massa da qual já não há mais um círculo aconchegante seguro para viver(BAUMAN: 2003). Para todos os demais que não se incluem nesta seleta classe social não existe outra alternativa senão a de conviver com o medo.

            Embora a falta de dados reais sobre a violência seja um déficit para qualquer estudo, alguns dados sobre a atual situação de Belo Horizonte já nos permitem entender o porquê desta nova comunidade de abandônicos [01].

            De acordo com a Secretaria Nacional de Segurança Pública(2001), órgão diretamente vinculado ao Ministério da Justiça, Belo Horizonte é a Capital da região sudeste que apresenta o menor índice de homicídios dolosos, 31,2% por 100.000 habitantes, embora, num verdadeiro contraste, demonstre o maior número de tentativas de homicídio da região, 31,2% por 100.000 habitantes, deixando São Paulo capital em segundo lugar com 24,2%. Se considerarmos que a população da cidade de São Paulo é consideravelmente maior do que a de Belo Horizonte, podemos concluir que os dados são alarmantes.

            Vale demonstrar também que, de acordo com Julio Jacobo Waiselfisz (2004), em trabalho realizado conjuntamente com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura dentre outros órgãos de igual importância, Belo Horizonte apresentou um acréscimo estratosférico de 148,3% no número de óbitos por homicídios, superando todos os demais Estados da região sudeste que mantiveram um acréscimo de 55,2%.

            De acordo com o informativo do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais(2003), a cidade de Belo Horizonte apresentou um crescimento de 100% no número de homicídios entre os anos de 1997 e 2001, restando comprovado neste estudo que havia uma coincidência entre as regiões mais violentas e as áreas de maior vulnerabilidade social.

            Esta estreita relação entre violência e desestabilização dos fatores sociais foi apontada pelo Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas como indicativos complementares, ou seja, "...é necessário enfatizar o aspecto de que pobreza, desemprego, condições precárias de moradia(slum conditions – favelização), desintegração familiar e falta de opções de lazer estão associados com condutas delinqüentes." Se levada em conta tal assertiva, são preocupantes os dados da Fundação João Pinheiro(2005) ao concluir que o município de Belo Horizonte conta com um déficit habitacional básico de 8,6% do total de domicílios, ou seja, os problemas sociais parecem ainda um gigantesco empecilho para o sucesso das políticas públicas de segurança.

            Isto se confirma ao se examinar o segundo relatório periódico de implementação do Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (International Covenant on Civil and Political Rights), elaborado pela organização Anistia Internacional(2005) (Amnesty International Press Release) sobre a insegurança no Brasil que, quase uma década após a entrega de seu primeiro libelo quanto às condições do País ao Comitê das Nações Unidas dos Direitos Humanos (United Nations Human Rights Committee –HRC), confirmou a falta de manejo de políticas públicas adequadas e efetivas ao combate da violência e à proteção dos direitos humanos.

            Em síntese, são estes alguns dos sintomas que preocupam e traçam o perfil desta nova comunidade de abandônicos, guiada pelo modelo neoliberal de mínima intervenção e patrocinador do consumismo em políticas de segurança pública milagrosas e imediatas.


4 - Política de Segurança Pública: Uma Questão de Legitimidade

            É um particular bastante interessante o fato de que os meios de comunicação, sejam eles quais forem, e a tecnologia se desenvolvem quase que diariamente, ao passo que a publicidade e o nível de informação prestado pelos órgãos estatais permanecem estanques.

            Isto não implica dizer que precisaríamos colocar um computador com botões marcadores "sim / não," "de acordo / em desacordo / não sei" em cada casa do País para que atingíssemos uma democracia direta em pleno século XXI, como ironicamente exemplificou Macpherson(1997) em sua obra.

            Significa dizer que em pouco avançamos na superação da clássica democracia representativa indireta liberal que é, ainda, forçosamente, predominante no ordenamento político brasileiro. O voto como fonte única do processo legitimador sufoca os demais atores da sociedade, lesa os interesses minoritários e alavanca o abismo entre a autonomia pública e privada.

            Isto não implica em dizer que o papel da maioria não é importante para as decisões. Pelo contrário, ela é indispensável. Todavia, o que se pretende é ressaltar a necessidade de que, conforme apontou Toqueville, "a maioria não precisa coagi-lo[o indivíduo], ela o convence."(GOYARD – FABRE: 2003).

            Neste sentido, para que nos afastemos desta margem mercadológica da maioria, não podemos conceber a supressão dos argumentos pela força do número dentro de um País que se considera um Estado Democrático de Direito.(Artigo 1º da Constituição da República de 1988).

            Esta atrofia dos canais comunicativos engessa o poder da opinião pública na tomada de decisões, principalmente no campo da segurança pública, isto é, uma área que agrega uma extensa rede de garantias fundamentais, como o direito à intimidade(inciso X do artigo 5º da Constituição da República de 1988) e a presunção de inocência assegurada pelas declarações internacionais, bastando ver a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.

            Portanto, é preciso observar que o discurso que irá legitimar o processo legislativo e o produto que dele advir deverá ser emanado de forma dialógica e informativa. Esta informação deve ser suficiente para esclarecer ao cidadão os efeitos que determinadas políticas podem afetar a sua vida.

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            Por outro lado, se o legislador se vale de justificativas pautadas em fundamentos como "primazia do interesse público sobre o particular" para balizar toda sorte de políticas de segurança, como no caso do programa Olho Vivo, tem-se uma completa ausência de utilização de critérios argumentativos racionais, de maneira que o legislador passa a assumir o risco de atribuir à norma um sentido alheio à vontade popular, seja porque a comunidade não participou do debate, ou, ainda, porque existem "forças externas" que permeiam a integridade do devido processo legislativo, p. ex. o dirty lobby dentro dos órgãos que detêm as tomadas de decisão, etc.

            Assim, conclusões a priori de que a segurança pública "é mais relevante" do que qualquer outro direito fundamental sempre em nome do "interesse público", induz a um fechamento cultural ideológico que não mais se justifica num estado que zela pelo pluralismo e emancipação dos indivíduos como participantes ativos do processo democrático. Mas qual alternativa teríamos frente a este problema?

            Segundo Habermas seria necessário a inserção de uma política deliberativa com amplo debate público, sem um isolado fetichismo ético, pragmático ou moral, mas, por outro lado, uma junção de todos estes elementos através de normas de discurso, que formulassem pretensões de validade às regras argumentativas:

            "O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constituiu uma vontade comum, não apenas no auto entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem da coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada para um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral." (2004: 285)

            A promoção do debate pautado em regras racionais não só valida o próprio processo de elaboração normativa, como também é um ponto fundamental para a própria consolidação da democracia no Estado Democrático Brasileiro. "A racionalidade do processo legiferante e a aceitação social de sua justificação consolidam a democracia por lhe qualificarem pelo critério da legitimidade." (CRUZ: 2000)

            Assim, a aceitação social do processo legislativo passa por um giro que não assume mais a legitimidade única do voto do modelo representativo como forma de validar a legalidade. Como observou Bonavides (1999) "Não se toca no princípio da legalidade sem repercutir no princípio da legitimidade." E sob esta nova perspectiva é que a democracia deliberativa aparece como um norte na formação e contínua construção do papel democrático na participação da sociedade, ainda que esta pareça tão distante de nossa realidade.

            De acordo com Blanco (2000: p. 25), mesmo que haja um resquício de idealidade neste processo, deve-se "reivindicar a utopia positiva da democracia deliberativa, onde os ideais de participação e decisão coletivas se mostram sempre inacabados. Portanto, mantêm vivos os esforços em praticá-la e a crítica aos regimes atuais". (tradução nossa)

            Em seu estudo, Blanco(2000) retoma os pontos básicos desta democracia deliberativa; a) o respeito à decisão da maioria (originária de uma opinião pública agregada) é indispensável, uma vez que temos o tempo limitado, contudo, deve ser factível que se formem maiorias diferentes que representes setores diversos; b) só o diálogo traduz os interesses individuais (derivada da opinião pública discursiva). De acordo com o autor ninguém julga seus interesses melhor que a própria pessoa, por mais ignorante que o seja; dialogar é o único meio de conhecer os interesses alheios; só se alcança equanimidade no coletivo por discussão e decisão majoritárias; a unanimidade não garante o respeito aos direitos humanos, motivo pelo qual deve-se o respeito às minorias quantitativas ou qualitativas; por fim, os assuntos morais são de competência individual, uma vez que um governo não pode ditar os projetos da vida dos cidadãos.(tradução nossa)

            De fato, a implementação de uma democracia deliberativa na elaboração de normas que venham a dar suporte às políticas de segurança exige uma nova forma de gestão, mais consultiva e que não se resuma às publicações dos diários oficiais. A democracia no processo de legitimação tem uma função mais refinada do que a expressão "um homem um voto".

            A opinião pública, como maior interessada não deve ser entendida como uma massa de ignorantes que não detém o conhecimento dos "ex[s]pertos", mas como indivíduos capazes de se expressar, expor e ter como respeitados seus pontos de vista.

            Como já apontou Peter Härbele:

            " ‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão." (1997: p. 37)

            Daí, então, a necessidade de uma retomada séria sobre os critérios de elaboração da norma e participação popular na sua formação. Este fim, dentro do nosso entendimento, só poderá ser alcançado quando houver completa interação comunicativa entre a autonomia privada e a soberania popular.


5 – Questões sobre a Importância da Participação Popular no Programa Olho Vivo

            Como já foi mencionado neste trabalho, o programa Olho Vivo tem como objeto a vigilância por meio de câmeras de segurança. Esta particularidade pressupõe uma gama de fatores que despertam o interesse da comunidade jurídica, principalmente, porque inúmeros direitos fundamentais estão em questão.

            Como vimos, os critérios de instalação e implementação dos aparatos óticos foram fornecidos pela Polícia Militar de Minas Gerais, apontando a região central como uma das áreas mais violentas da cidade. Entretanto, de acordo com o Centro de Estudos da Criminalidade e Segurança Pública (2002), os homicídios concentram-se em favelas e na periferia; já os assaltos a mão armada, por seu turno, têm vez em regiões mais urbanizadas, a exemplo do Centro da cidade.

            Diante destas informações e dada a devida importância à formação legislativa, é relevante formular as seguinte indagações: qual o bem jurídico que se pretende proteger neste caso? Quais os critérios de localização destas câmeras e como estes critérios foram desenvolvidos? Não seria uma coincidência a implementação de câmeras somente em regiões comerciais, ficando áreas com maior índice de homicídio sem a presença desta tecnologia? Como ficam as áreas desprotegidas que não podem custear este tipo de política?

            Outra questão polêmica deste projeto de vigilância é o fato de que as ruas vigiadas são os lares de muitas pessoas que vivem a margem da sociedade. Não haveria ofensa ao direito à intimidade destas pessoas? Foram estes moradores consultados ou advertidos de que estariam sob o olhar do Estado? Abriu-se o debate para que estes excluídos pudessem se manifestar, uma vez que são os mesmos os principais afetados?

            Inúmeras questões poderiam ser formuladas a partir deste Programa, entretanto, com as já apresentadas resta relevada a questão da participação popular na realização de políticas de segurança pública.

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Sobre o autor
Gustavo Almeida Paolinelli de Castro

Doutor e mestre em Direito Público (PUC-MINAS). Professor do curso de Direito da Pós-graduação stricto sensu da PUC-MINAS e do Centro Universitário Belo Horizonte - UNIBH. Pesquisador do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUCMINAS e do UNIBH. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Gustavo Almeida Paolinelli. Comunidade de abandônicos:: um ensaio atual sobre o programa Olho Vivo em Belo Horizonte, legitimidade e democracia deliberativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 953, 11 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7958. Acesso em: 18 abr. 2024.

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