"Fica decretado que os homens
Estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
A couraça do silêncio
Nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
Com seu olhar limpo
Porque a verdade passará a ser servida
Antes da sobremesa."
(Artigo V dos "Estatutos do Homem", de Thiago de Mello)
Os recentes episódios referentes à soltura de presos, tendo por protagonista um ousado magistrado da Comarca de Contagem (MG), chamaram a atenção da população, setores políticos e instituições públicas para a gravíssima situação na qual se encontram os encarcerados brasileiros. Sem perquirir sobre a juridicidade ou pertinência da medida empreendida, não se pode ignorar seu mérito de ter novamente trazido à tona das discussões cotidianas um problema em relação ao qual parcela expressiva da sociedade brasileira já havia adormecido.
De um modo geral, nossos olhos somente se voltam para a enorme massa humana que se amontoa nas pequenas celas indignas dos estabelecimentos prisionais brasileiros quando se noticia na mídia mais uma rebelião, tragédia ou, desta vez, uma liberação inesperada de detentos. Talvez fosse um momento propício, então, para um questionamento mais profundo: será que, além do compartilhado desprezo de alguns pelos intitulados "marginais", além da cultura velada do "quanto pior para eles, melhor", não haveria uma razão substancialmente política para a conveniente inércia da sociedade civil e das autoridades quanto às calamitosas condições de nossas prisões?
A primeira resposta imaginável, aparentemente singela, mas com significativa relevância, avulta clara: o preso não vota! E as conseqüências de tal fato, como cediço, são funestas: ao lado do estigma da exclusão social, o preso ainda resta completamente ignorado pelos responsáveis pelas decisões acerca das políticas públicas, na medida em que não compõe o tão cobiçado eleitorado, não tem representatividade alguma nas esferas de poder. Seu alijamento político o coloca à margem dos direitos fundamentais da pessoa humana, não possuindo meios institucionalizados eficientes de vindicá-los.
Poder-se-ia vislumbrar uma situação diferente caso lhe fosse assegurado o direito ao voto. Seria fomentada, ao menos em tese, a discussão e a formação crítica dos presos, que até mesmo poderiam se unir em prol de um objetivo comum: a eleição de um representante parlamentar de suas reivindicações. Poderiam ser ouvidos sem recorrerem a insurreições violentas. E um dado importante: teriam valor numérico suficiente para chamar a atenção dos políticos, vendo-se incluídos nas pautas das campanhas eleitorais.
Obviamente, o direito ao voto, por si só, não garantiria a alteração do atual panorama carcerário brasileiro. Contudo, daria aos presos esta chance. As rebeliões e as decisões do magistrado mineiro nada mais representam do que um grito de socorro, dirigido em especial ao Poder Público. Por que não institucionalizar este clamor, dar-lhe poder de persuasão política? Ou seria melhor esperar indeterminadamente por novas sublevações, novas liberações de detentos? De qualquer forma, a inércia não parece a melhor solução.
Ademais, a manutenção da mudez política dos presos, além de inconveniente, afigura-se ainda juridicamente ilegítima. A doutrina pátria já sedimentou alguns princípios de Direito Penal com substrato constitucional, dentre os quais a imposição de que a reprimenda criminal deve se limitar ao atendimento de suas finalidades precípuas de repreensão e prevenção.
Imagine-se, então, uma situação hipotética: alguém é condenado criminalmente, com trânsito em julgado, por xingar um vizinho, bater em um amigo, apropriar-se de um livro achado, trazer consigo um cigarro de maconha para fumá-lo (condutas enquadráveis, em tese e respectivamente, nos tipos penais previstos nos arts. 140, 129 e 169, todos do Código Penal, e art. 16 da Lei nº 6.368/76) ou em quaisquer delitos culposos (nos quais o agente sequer tinha a intenção deliberada de atingir o resultado danoso). Independente da gravidade da lesão ao bem jurídico tutelado, a decisão condenatória irrecorrível implicaria a suspensão dos direitos políticos do culpado. O mesmo raciocínio valeria para o homicida, estuprador ou traficante.
Assim, insta indagar: a ação delituosa, conquanto reprovável, guarda relação com a qualidade de cidadão? A suspensão dos direitos políticos do réu cumpriria o escopo de repreensão e prevenção do sancionamento penal? Noutras palavras, seria razoável e, em conseqüência, constitucionalmente autorizada? A partir desta primeira análise, observa-se que a suspensão dos direitos políticos não guarda nenhuma relação com a conduta delituosa praticada. Ou seja, não constitui uma sanção penal, não tem por objetivo repreender o culpado pelo ilícito perpetrado.
Tal suspensão nada mais representa do que um efeito secundário da sentença criminal condenatória transitada em julgado, em conseqüência da previsão do art. 15, inciso III, da Constituição Federal. Contudo, parece-me necessário, para seu exame, partir da premissa hermenêutica destacada com primor na lição do eminente constitucionalista José Afonso da Silva:
O princípio que prevalece é o da plenitude do gozo dos direitos políticos positivos, de votar e ser votado. [Em nota: Trata-se de princípio universal que já figurava no art. 6º da Declaração de Direitos da Virgínia (1776), no art. 6º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e, especialmente, figura ainda no art. 21, I, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): "Toda pessoa tem direito de participar no Governo de seu país, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos"]. A pertinência desses direitos ao indivíduo, como vimos, é que o erige em cidadão. Sua privação ou a restrição do seu exercício configura exceção àquele princípio. Por conseguinte, a interpretação das normas constitucionais ou complementares relativas aos direitos políticos deve tender à maior compreensão do princípio, deve dirigir-se ao favorecimento do direito de votar e de ser votado, enquanto as regras de privação e restrição hão de entender-se nos limites mais estreitos de sua expressão verbal, segundo as boas regras de hermenêutica. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 383)
O ensinamento do professor paulista nos traz um dado importante: os direitos políticos do cidadão, integrantes de um núcleo fundamental de valores constitucionalmente garantidos, devem ser interpretados do modo que lhes impinja amplitude e efetividade máximas. Neste sentido, afigura-se imprescindível abstrair do dispositivo constitucional acima citado a mens legis (o sentido da norma, sua significação) mais consentânea com tal diretriz hermenêutica.
Este pressuposto induz uma conclusão: quando a Constituição dispõe que o criminalmente condenado terá seus direitos políticos suspensos, entende-se que tal medida não consiste em castigo adicional à sanção já imposta, mas apenas explicita a necessidade de sustação dos direitos incompatíveis, pela sua natureza, com o cárcere. Em outras palavras, a norma restritiva sob enfoque (art. 15, III) indica tão-somente que o condenado perde temporariamente a capacidade de ser votado (sua elegibilidade), mas não sua capacidade de votar em eleições, plebiscitos e referendos (ou seja, sua alistabilidade), plenamente compatível com a custódia.
O renomado constitucionalista Alexandre de Moraes direciona seu entendimento no sentido de que a suspensão dos direitos políticos do criminalmente condenado tem por escopo apenas o resguardo de um mínimo ético no desempenho de mandatos eletivos, sem qualquer menção à afetação ao direito de voto do preso. Afirma tal doutrinador que "(...) a ratio do citado dispositivo [art. 15, inciso III, Constituição Federal] é permitir que os cargos públicos eletivos sejam reservados somente para cidadãos insuspeitos, preservando-se a dignidade da representação democrática." (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 237/238).
A Corte Jurisdicional Mineira, não obstante julgasse caso referente às hipóteses de sursis e livramento condicional, também já manifestou o posicionamento de que a suspensão dos direitos políticos está indissociavelmente ligada à constrição da liberdade do condenado e assim deve ser interpretada. Vejamos: "Pena. Suspensão dos direitos políticos. Admissibilidade somente quando o cumprimento da reprimenda em estabelecimento penal torne inviável o exercício de tais direitos ou quando houver limitações que impliquem horários de recolhimento ao cárcere." (TAMG – RT 754/713).
Vale ressaltar que uma interpretação sistemática da Constituição também leva à mesma conclusão. Isto porque seu art. 14, §2º, afirma que não podem se alistar como eleitores, em numerus clausus, os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos, sem qualquer referência aos criminalmente condenados. O parágrafo 3º do mesmo artigo reforça este entendimento, na medida em que coloca como condições de elegibilidade tanto o pleno exercício dos direitos políticos quanto o alistamento eleitoral. Se fossem expressões coincidentes, seria desnecessária a dupla menção. Logo, uma pessoa pode estar alistada como eleitora, mas não desfrutar da plenitude de seus direitos políticos, tornando-se inelegível (nesta hipótese se enquadra o preso irrecorrivelmente condenado).
Em síntese, procurou-se apenas instigar uma reflexão, sob prismas diversos, acerca da arbitrariedade da suspensão automática de todos os direitos políticos do criminalmente condenado com o trânsito em julgado da sentença, em uma aplicação irrefletida e elastecida do art. 15, III, da Constituição Federal. Isto porque a declaração de culpa de um indivíduo na seara penal não retira sua qualidade de cidadão, devendo ele manter-se integrado às decisões sobre as políticas públicas, algumas das quais será destinatário direto.
A repercussão política da responsabilidade criminal deve limitar-se ao impedimento ao desempenho de mandatos eletivos, incompatíveis física e moralmente com o encarcerado. Este, todavia, continua detentor dos direitos, garantias e deveres dispostos na Constituição Federal, integrando uma sociedade plural da qual emanam os poderes representativos para a gestão de seu destino.