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Lei anticrime e crimes hediondos

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8-O TRÁFICO DE DROGAS PRIVILEGIADO E A QUESTÃO DA HEDIONDEZ       

Por bastante tempo se discutiu se o chamado “Tráfico Privilegiado”, conforme previsto no artigo 33, §4º. , da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) seria ou não equiparado a hediondo.

Predominava a tese de que o “Tráfico Privilegiado” não seria crime hediondo, já que a Lei 8.072/90 a ele não faz referência. Essa vinha sendo a orientação do STF (v.g. HC 118.533). O STJ chegou a editar a Súmula 512, advogando tese contrária, ou seja, pela hediondez do “Tráfico Privilegiado”. Entretanto, o STJ acabou cancelando tal Súmula e adotando o entendimento harmônico com o STF no sentido de que o “Tráfico Privilegiado” não é crime hediondo. [15]

Encontra-se na doutrina discussão, sendo que ainda há autores que defendem a hediondez do “Tráfico Privilegiado”.[16] Mas, essa posição torna-se praticamente indefensável com o advento da Lei 13.964/19, a qual inseriu no artigo 112, §5º., da LEP (Lei 7.210/94) a afirmação de que “não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no §4º., do art. 33 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006”. Ora, se o “Tráfico Privilegiado” não é considerado como hediondo ou equiparado para fins de Execução Penal, por que o deveria ser para outros fins. Eventual tratamento desigual seria violador até mesmo da proporcionalidade. Parece muito mais crível que o entendimento já endossado pelo STF e pelo STJ acabou legislado, pondo fim à discussão acerca do tema.

 


9-CONCLUSÃO

 

A Lei 13.964/19 promoveu consideráveis alterações na Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90).

Incrementou o rol de crimes hediondos e perdeu a oportunidade de solucionar algumas questões polêmicas a respeito da enumeração taxativa de crimes ali constante, mas, concomitantemente, solucionou alguns problemas referentes à proporcionalidade, embora tenha criado outros.

As principais alterações, contudo, se dão nas mudanças das regras do regime progressivo de cumprimento de penas, tanto para crimes hediondos e equiparados, como para crimes comuns, com a revogação expressa do §2º., do artigo 2º., da Lei 8.072/90 e todo o novo regulamento previsto no corpo do artigo 112, parágrafos e incisos da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84). Neste ponto também foram deixadas lacunas e questões que podem gerar polêmica, conforme foi demonstrado no decorrer do presente trabalho.

Mais uma vez, a legislação penal e processual penal perdeu a chance de efetivamente se aperfeiçoar, como propalado pelo legislador, talvez pelo costume, cada vez mais intenso, de se superficializar o debate politico sobre temas com enormes reflexões técnicas.

Em verdade, intensificar ou não o rigor penal não é uma mera questão de se criar ou não crimes, aumentar penas ou tentar afastar benefícios há muito tempo inaceitáveis por grande parte da sociedade.

Qualquer proposta nesse sentido precisa considerar os impactos orçamentários e sociais das medidas que se pretende implementar, a estrutura dos órgãos de persecução penal – há muito tempo deixados à margem de investimentos das mais variadas naturezas – e a palavra daqueles que terão a missão profissional de aplicá-las.

Isso requer tempo para discussões no âmbito do parlamento, disposição para se conhecer um pouco dos problemas existentes na legislação e as opiniões dos seus operadores. Requer, ainda, o desarmamento de prévias ideologias com quase nenhuma capacidade para contribuir com ideias e dados verdadeiramente comprometidos com a realização de um dos fins perseguidos pelo Estado que é garantir a segurança para as pessoas.

Respostas legislativas rápidas e atrapalhadas, como em parte se vê no “pacote anticrime” (embora ele tenha méritos na maioria de suas proposições), só podem ser menos severamente julgadas pela História, caso tenham sido motivadas pelo reconhecimento parlamentar de que há um déficit de proteção estatal para com a vida e a segurança do cidadão e uma urgente necessidade de garantir representatividade, legitimidade e eficiência à própria autoridade estatal.

Quem dera fossem apenas essas as justificativas para as ações políticas na área de segurança pública, em todos os níveis de governo, nos vários anos que se passaram desde a promulgação da constituição cidadã.

 


REFERÊNCIAS

 

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Martin Claret, 2003.

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal Parte Geral. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

 

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O novo § 3º. do artigo 158 do Código Penal e a Lei dos Crimes Hediondos. Disponível em www.jus.com.br, acesso em 25.02.2020.

 

CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Salvador: Juspodivm, 2018.

 

CUNHA, Rogério Sanches, GOMES, Luiz Flávio. Sequestro Relâmpago com morte é crime hediondo. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 25.02.2020.

 

CUNHA, Rogério Sanches. Comentários à Lei 12.720, de 27 de setembro de 2012. Disponível em https://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/121815054/comentarios-a-lei-n-12720-de-27-de-setembro-de-2012 , acesso em 25.02.2020.

 

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral. Tomo I. São Paulo: RT, 2007.

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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.

 

GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Niterói: Impetus, 2016.

 

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

 

STJ divulga teses sobre tráfico, cotas de condomínio e processo civil. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-fev-14/stj-divulga-teses-trafico-condominio-processo-civil, acesso em 25.02.2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Notas

[1] BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 53. “Mas a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.

[2] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 63.  E em corroboração à nossa posição em publicação atualizada: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume 2. 15ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 78.

[3] Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.227.

[4] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O novo § 3º. do artigo 158 do Código Penal e a Lei dos Crimes Hediondos. Disponível em www.jus.com.br, acesso em 25.02.2020.

[5] CUNHA, Rogério Sanches, GOMES, Luiz Flávio. Sequestro Relâmpago com morte é crime hediondo. Disponível em www.jusbrasil.com.br, acesso em 25.02.2020.

 

[6] CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 196 – 202.

[7] Op. Cit., p. 197 – 198.

[8] Op. Cit., p. 203 – 204.

[9] Op. Cit., p. 203 – 204.

[10] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral. Tomo I. São Paulo: RT, 2007, p. 1018. Conforme o autor lusitano, crime instrumental ou crime meio, “são aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos".

[11] CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco ,Op. Cit., p. 395 – 397.

[12] Aquele cuja “definição se reporta a outros delitos que passam a integrá-lo”. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal Parte Geral. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 183.

[13] Conquanto não seja esse o objetivo do presente trabalho, oportuno consignar que o legislador, se tinha mesmo o propósito de elevar o rigor estatal contra autores de infrações penais, perdeu a chance de extirpar do ordenamento essa infeliz opção de conceder a progressão de regime para a mulher que, preenchendo as condições elencadas no artigo 112, §3º., LEP, venha a cumprir 1/8 da pena no regime anterior. Isso porque, em nosso entendimento, deveras desarrazoado que, num país que vive uma escalada de violência e com a crescente sensação de impunidade, seja permitido que alguém, condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime intermediário ou mais gravoso – o que, por si, já indica o maior desvalor da conduta ante as inúmeras vias legais para se evitar o encarceramento – possa progredir de regime descontando pouco mais de dez por cento da pena aplicada. Desafiador encontrar outro país em que um juiz condene alguém a um ano de prisão e esse alguém, após o cumprimento de apenas um mês, já possa obter benefícios! Se não fosse trágica a comparação, seria como se um empresário oferecesse um produto à venda pelo preço regular mas fizesse uma promoção na qual o comprador pagasse apenas 12,5% do valor do produto. Com efeito, se no mercado seria improvável que um empresário com essa prática alcançasse sucesso no capitalismo, não há muita esperança de que um Estado que promova esse tipo de medida na execução penal possa ter grandes resultados no processo de ressocialização da sentenciada e nem mesmo de punição pura e simples, dado o evidente laxismo do regramento.

[14] Cf. CUNHA, Rogério Sanches. Comentários à Lei 12.720, de 27 de setembro de 2012. Disponível em https://rogeriosanches2.jusbrasil.com.br/artigos/121815054/comentarios-a-lei-n-12720-de-27-de-setembro-de-2012 , acesso em 25.02.2020.

[15] STJ divulga teses sobre tráfico, cotas de condomínio e processo civil. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-fev-14/stj-divulga-teses-trafico-condominio-processo-civil, acesso em 25.02.2020.

[16] Cf. GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Niterói: Impetus, 2016, p. 91.

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Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Gianfranco Silva Caruso

Gianfranco Silva Caruso, Promotor de Justiça na Comarca de Cruzeiro, Estado de São Paulo, Mestre em Direitos de Titularidade Difusa e Coletiva, Pós – graduado em Direito Público e em Direito Penal, Professor de Direito Administrativo e de Direito Processual Penal do Curso de graduação e pós-graduação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Co-coordenador do Núcleo Regional, da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (Vale Histórico).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos ; CARUSO, Gianfranco Silva. Lei anticrime e crimes hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6090, 4 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79849. Acesso em: 16 abr. 2024.

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