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O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes:

recusa imotivada e abuso de direito

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07/03/2006 às 00:00
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6 – O DIREITO COMPARADO

A restrição da venda de ascendente para descendente, exigindo o consentimento dos demais descendentes, não é adotada por vários países, e mesmo os que adotam, criaram dispositivos permitindo o suprimento judicial para eventual e imotivada recusa.

Exemplo disso temos a Legislação de Portugal que apesar de exigir o consentimento dos descendentes para este tipo de transação, prevê o suprimento judicial, como se vê pela leitura do artigo 877 do Código Português:

VENDA A FILHOS OU NETOS – 1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou recusado, é suscetível de suprimento judicial. 2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes. 3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente.

Em seu trabalho sobre Contrato de compra e venda, de doação e de permuta, o Professor Almeida Júnior (2003, p. 3) cita que em outros países, como na Argentina (art. 1.359, do CC), no Chile (art. 1.796 do CC) e no Equador (art. 1.726 do CC), são vedadas as vendas entre pais e filhos enquanto perdurar a menoridade deste. Finda a menoridade, o contrato poderia ser realizado normalmente.

Contudo, ele salienta que tanto o Código Francês, quanto o Alemão e o Italiano, não adotam a proibição questionada.

Como se vê, ao adotar esta restrição ao contrato de compra e venda, o legislador brasileiro não inova e está na via oposta à de outros países. Parece-nos mais justa e adequada a redação dada ao tema pelo Código Português.


7 – A RECUSA IMOTIVADA COMO ABUSO DO DIREITO.

7.1 CONCEITO DE ABUSO DO DIREITO

O Abuso de direito, segundo Pedro Batista Martins (MARTINS, p.104), consiste no exercício anormal de um direito, sendo que o ato abusivo atenta diretamente contra o espírito da lei de modo a desvirtuar sua finalidade social. Consiste no exercício anormal de um direito, revelada a intenção, por parte de seu titular, de prejudicar, lesar.

A doutrina do abuso do direito assegura que os direitos não são absolutos, mas limitados em sua extensão e submetidos a pressupostos quanto ao seu exercício. Ora, quando um titular de determinado direito não obedece a tais limites, age, em verdade, sem direito. Cessa o direito quando começa o abuso, pois um único ato não pode ser, ao mesmo tempo, conforme o direito e contrário ao direito.

O ato praticado com abuso é objetivamente lícito, mas subjetivamente injusto.

Silvio Rodrigues (1997, p. 314) considera que o abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo, e, ao utilizá-lo desconsideradamente causa dano a outrem.

Josserand citado por Silvio Rodrigues (1997, p. 314) afirma que: "Os direitos são conferidos ao homem para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição".

Para Gonçalves (2002, p. 176) o abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro dos limites da lei, deixa de considerar a finalidade social de seu direito subjetivo e o exorbita, ao exercê-lo, causando prejuízo a outrem. Embora não haja, em geral, violação aos limites objetivos da lei, o agente desvia-se dos fins sociais a que se destina.

Resumindo o conceito, Carvalho Neto (2004, p. 20) ensina que: Chama-se abuso do direito o exercício, pelo seu titular, de um direito subjetivo fora de seus limites.

Na verdade, num ato marcado pelo abuso de direito, encontramos licitude, encontramos direito, mas o seu exercício não coaduna com ordenamento jurídico, por que excede os limites de seu uso.

O ordenamento jurídico confere aos indivíduos prerrogativas e garantias que os permite viver em sociedade. Todavia, o exercício destas prerrogativas, legalmente conferidas, pode ferir interesses, lesar terceiros e produzir o desequilíbrio social, se não forem observados os limites restritivos para a aplicação destes atos humanos. A ultrapassagem destes limites objetivos da lei implica na ocorrência de inúmeros danos, que ficariam impunes e que desequilibrariam as atividades entre os indivíduos, deste modo privilegiando os mais espertos e afortunados.

Para caracterização do ato abusivo basta que se macule ostensivamente os limites sociais extralegais e a destinação do direito - espírito da lei, não importando se o agente agiu seguindo os limites unicamente objetivos do mesmo direito.

No abuso de direito, apesar da obediência aos limites objetivos do preceito legal, há dissonância com a finalidade deste preceito. Quando se comete um abuso, não há, em tese, uma transgressão ou violação, porque o agente age dentro dos limites impostos pela norma legal e está consoante com o seu direito, entretanto, ultrapassa a missão deste direito, agredindo o seu espírito.

Discorrendo sobre o tema, André Luiz Menezes Azevedo Sette, nos ensina que:

O abuso ou fraude ao direito não se confunde coma violação do direito, porque no abuso, a Lei, objetivamente considerada, é cumprida, mas é vulnerada sob o aspecto subjetivo, ou seja, não se vulnera o texto da Lei, mas o seu espírito, intenção ou finalidade, trazendo prejuízos a outrem. E para a configuração do abuso de direito, basta o seu exercício de forma contrária aos seus fins e função (independentemente da intenção daquele que o exerce – o seu titular), pois, como estamos diante de questões de interesse público (de valores como o bem comum e a justiça social), não há como se tutelar a pretensão de uma das partes que manifestamente acarrete prejuízos à outra. Critério que, aliás, foi adotado pelo novo Código Civil (art. 187) ao dizer que se configura como ilícito o exercício de um direito que exceda "manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". (SETTE, 2003, p. 130)

Segundo esse mesmo Professor (SETTE, 2003, p.130) o que deve ficar claro é que "para se configurar o uso abusivo de um direito, basta que ele seja exercido de forma contrária a sua função social ou finalidade, pouco importando o propósito do seu titular".

O grande mestre Jorge Americano citado por SETTE (2003, p. 162) refuta com veemência a assemelhação que alguns fazem entre ato abusivo e o ato ilícito:

Se por um lado, a noção do direito exclui a idéia do abuso, porque o abuso desnatura o direito e faz com que deixe de o ser, por outro lado não há contestar a realidade dos fatos, que verifica, numa série de atos ilícitos um falso assento em direito, diversamente do ato ilícito, genericamente considerado, em que se não invoca nenhum assento em direito.

Assim, resumidamente, podemos conceituar o abuso de direito quando alguém, ao exercer seu direito legítimo, ultrapassa ou excede os limites impostos pela finalidade perseguida pelo ordenamento jurídico, de forma prejudicial ao outro, sem nenhum proveito próprio.

7.2. A ORIGEM DO PRINCÍPIO DO ABUSO DO DIREITO

Grande parte da doutrina afirma que o instituto do abuso do direito é construção doutrinária e jurisprudencial do século passado, embora alguns digam que há indícios na teoria do direito romano, como afirma Martins (1935, p. 19) "A concepção do abuso do direito, como se vê, não é inteiramente nova, perdendo-se as suas origens no período clássico do direito romano".

Por outro lado, é inegável que a solidificação e a base deste instituto está no Direito Francês. Para Martins (1935, p 28) "foi Josserand que versou a doutrina do abuso do direito e a quem ela deve, em grande parte, a sua sistematização e o seu triunfo".

Também é no direito francês onde há julgados ricos em detalhes sobre o tema. Dentre esses julgados podemos destacar o caso Clement-Bayard. De acordo com esta narrativa, um proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer proveito próprio, enormes torres na quais instalou lanças de ferro, visando colocar em dificuldade as aeronaves que ali aterrizavam. A decisão considerou abusiva a conduta, porque apesar do direito de propriedade autorizar o proprietário a usar e abusar da coisa, o exercício deste direito, entretanto, como qualquer outro, deve ter limite a satisfação de um interesse sério e legítimo.

Discorrendo sobre a teoria do abuso do direito, Stoco (1999, p. 423) é incisivo e diz:

Foi através de construção jurisprudencial, a partir do século passado, que os autores franceses se fixaram na aceitação da teoria, respondendo à indagação se uma pessoa pode ser responsabilizada pelo mal que eventualmente cause a outrem, quando procede no exercício de seu próprio direito.

O problema ligado ao limite do exercício do direito além do qual poderá ser abusivo constitui a essência da teoria do abuso de direito.

7.3. A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Três teorias definem e tentam explicar o abuso do direito, a subjetiva, a objetiva e a mista.

Pela teoria subjetiva, também denominada "teoria da intenção", há abuso do direito quando o ato, embora amparado pela lei for praticado deliberadamente com o interesse de prejudicar alguém. No exercício de seus direitos, gozam os indivíduos de plena liberdade, contanto que não se movam na exclusiva intenção de prejudicar a outrem.

Os que combatem esta teoria dizem que fundamentar-se o abuso de direito na exclusiva intenção de prejudicar é restringi-lo em demasia, é demasiada prudência, ocasionando excessiva concessão às liberdades individuais, em prejuízo dessas mesmas liberdades.

Para a teoria objetiva, o abuso do direito estará no uso anormal ou antifuncional do direito. Caracteriza-se pela existência de conflito entre a finalidade própria do direito e a sua atuação no caso concreto. Aqui nenhuma relação há entre o ato culposo e o abuso de direito. Não importa a culpa ou o dolo, mas o fato material.

Pela teoria mista, também chamada de subjetiva-objetiva combina as duas teorias acima mencionadas, a objetiva e a subjetiva. De acordo com este critério o problema do abuso de direito às vezes se resolve por um ou outro critério. Acham os defensores deste critério que, não se pode mediar a culpa ou o dolo, sem haver um exercício irregular que choque as leis, os bons costumes e a moral.

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Comentando a teoria mista destaca Carvalho Neto (2005, p.61) que: "o problema do abuso do direito se resolveria umas vezes pela negligência e outras pela intenção de prejudicar".

Todas as teorias têm seus defensores e opositores, mas em todas elas tem que estar presente a importante missão destacada por Martins (1935, p. 10), segundo a qual, "a Teoria do abuso do direito é que está confiada a importante missão de equilibrar os interesses em luta e de apreciar os motivos que legitimam o exercício dos direitos".

7.4 O ABUSO DO DIREITO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Código Civil de 1.916, não havia menção expressa referente ao princípio de abuso do direito. A doutrina é que o reconheceu implicitamente no artigo 160, inciso I, sob o seguinte argumento: se o exercício regular de um direito reconhecido não é um ato ilícito, o contrário é, ou seja, o exercício irregular do direito reconhecido é um ato ilícito, e é um abuso de direito.

Leciona Carlos Roberto Gonçalves:

"O Código Civil de 1.916 admitiu a idéia do abuso de direito no art. 160, embora não tenha feito de forma expressa. Sustentava-se a existência da teoria em nosso direito positivo. Se ali está escrito não constituir ato ilícito o praticado no exercício regular de um direito reconhecido, é intuitivo que constitui ato ilícito aquele praticado no exercício irregular ou abusivo de um direito". (GONÇALVES, 2002, P. 176)

Na mesma linha deste raciocínio discorre Silvio Rodrigues (RODRIGUES,1997, p 312):

No dispositivo do art. 160, I, 2ª parte, acolhe o Código Civil a teoria do abuso de direito, segundo a qual, mesmo atuando dentro do âmbito de sua prerrogativa, pode a pessoa ser obrigada a indenizar dano causado, se daquela fez um uso abusivo.

Inobstante ausência de previsão expressa no Código Civil, outros diplomas legais tiveram como fundamento o abuso do direito, notadamente para efeito de desconsideração da pessoa jurídica, tais como: o art. 2º, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho; art. 135, II, do Código Tributário Nacional; art. 4º da Lei n. 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente); art. 28 e § 5º do Código de Defesa do Consumidor.

É de se destacar que o jurista Rubens Requião foi um dos primeiros doutrinadores brasileiros a defender a teoria da desconsideração da personalidade jurídica com base no abuso do direito, em seu artigo denominado: "Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica", publicado na Revista do Tribunais em setembro de 2002. Segundo Requião (2002, p. 753), supera-se por meio desse instituto a forma externa da pessoa jurídica, para alcançar as pessoas e bens que sob seu manto se escondem praticam o abuso do direito.

No Código Civil de 2002, o princípio do abuso de direito está consagrado expressamente em seu art. 187, que dispõe: "também comete ato ilícito o titular do direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Das teorias acima referidas, o Legislador brasileiro adotou a teoria "objetiva", uma vez que pela redação do citado artigo não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do direito; basta que se excedam esses limites.

Neste sentido é a lição de Maria Helena Diniz (2003, p. 181)

O abuso é manifesto, ou seja, o direito é exercido de forma ostensivamente ofensiva à justiça. A ilicitude do ato praticado com abuso de direito possui natureza objetiva, aferível, independentemente de culpa ou dolo (RJTJRS, 28:373, 43:374, 47:345; RSTJ, 120:370, 140:396, 145:396, 145:446; Súmula nº 409 do STF). Também entende o Enunciado nº 37 (aprovado na Jornada de Direito Civil promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal) que: "a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico".

Devemos ressaltar, também, que o abuso do direito, agora expressamente consagrado no art. 187, foi alçado a princípio geral, podendo ocorrer em todas as áreas do direito (obrigações, contratos, propriedade, família), pois a expressão "o titular de um direito" abrange todo e qualquer direito cujos limites foram excedidos.

7.5 A CONFIGURAÇÃO DA RECUSA IMOTIVADA COMO ABUSO DE DIREITO.

Como vimos, o que ocorre no abuso do direito é o desvio de sua finalidade social. Não estando presente a culpa clássica, mas sim a culpa social.

Será necessário, então, para que se caracterize o exercício abusivo do direito, que o titular, exceda manifestadamente os limites que lhe cumpre observar, inclusive, que esta extrapolação seja efetivamente ofensiva à justiça.

O julgador, portanto, ao tentar detectar o abuso do direito deve observar se o exercício deste direito atentou contra a índole do mesmo, indo contra os seus fins e se fora ofendido os limites impostos pela ordem jurídica, pela moral e pelos bons costumes. Assim, deve o juiz se basear na conduta média socialmente aceita na região, inserindo-a nas circunstancias em que o ato abusivo ocorreu.

Não somente a comissão anormal pode constituir abuso do direito, também a omissão pode ser considerada como tal. Isto ocorre, quando alguém que tinha o dever legal de atuar, não atua, se omite. Até a liberdade de se abster pode ser considerada abusiva.

Feitas essas considerações, cabe uma indagação: a recusa imotivada e por mero capricho de um descendente em dar o seu consentimento numa venda de ascendente para descendente, quando a transação é séria, o preço é o de mercado, o comprador é o único dos descendentes interessados e em condições de pagar o preço justo, configura abuso do direito?

Entendemos que a resposta pode ser afirmativa e que estamos sim, diante de um abuso do direito, devendo o Judiciário intervir neste caso.

Ora, a recusa imotivada do descendente em expressar o seu consentimento numa venda entre ascendente e descendente, por mero capricho ou por egoísmo, atenta contra a finalidade para a qual foi criada a limitação do artigo 1.132, do Código Civil anterior, e do artigo 496, do Código de 2002.

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Sobre o autor
Marcelo José Torres

advogado em Santa Bárbara (MG), técnico judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Marcelo José. O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes:: recusa imotivada e abuso de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 979, 7 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8065. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Título original: "O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes, quando a recusa for imotivada e por abuso de direito".

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