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O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes:

recusa imotivada e abuso de direito

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07/03/2006 às 00:00
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8- O SUPRIMENTO JUDICIAL DO CONSENTIMENTO

Muito se discute se é possível o suprimento judicial do consentimento dos descendentes quando estes se recusam a expressá-lo numa venda de ascendente para descendente. Esta matéria traz discussão entre doutrinadores e juízes, mas é crescente a posição dos que opinam favoravelmente.

8.1 A POSIÇÃO DA DOUTRINA:

Na Doutrina o tema é polêmico, como destaca Silvio Rodrigues:

Discute-se ainda se pode haver suprimento judicial do consentimento, quando os demais descendentes, injustamente, se recusam a concordar com a venda projetada pelo ascendente a um de seus descendentes. Entre os que negam tal possibilidade encontram-se Clóvis Beviláqua, Washington de Barros Monteiro e Agostinho Alvim.

Agostinho Alvim se apóia em sensato argumento, que se não afasta, em muito, da lição de Beviláqua. Entende que não havendo a lei permitido, expressamente, que o Juiz supra a concordância dos descendentes (como o faz no caso da outorga marital e do consentimento para casar: CC/1916, artigos 237 e 245, respectivamente), tal concordância é insuprível, pois nessa matéria não se pode ampliar o texto, que só abrange os casos que especifica. Mas esse escritor reconhece que a solução contrária é mais liberal e evita o arbítrio. (RODRIGUES, 2004, pág. 154).

Dentre os Autores que se opõem à possibilidade do suprimento judicial do consentimento destacamos Washington de Barros Monteiro que leciona:

O consentimento tem de ser dado de modo expresso, pois a lei não se contenta com a anuência tácita, podendo ser contemporânea ou posterior ao ato. Se um dos herdeiros recusa seu assentimento, não pode o Juiz supri-lo, a pedido dos demais interessados, porque a lei não lhe confere tal direito". (MONTEIRO, 1991, p. 88).

O Professor Washington de Barros Monteiro não se aprofunda na defesa de seu ponto de vista e apenas faz remissão de alguns julgados que amparam sua afirmação, se esquecendo de ressaltar que há decisões em contrário à sua tese no Supremo Tribunal Federal.

O argumento utilizado pelos defensores da tese da impossibilidade de suprimento judicial do consentimento é de que não há previsão legal expressa nesse sentido, não estando o Juiz autorizado a fazê-lo, uma vez que constitui ato personalíssimo do descendente.

Alegam mais, que a própria lei menciona dura e secamente, que "não podem vender" sem o mencionado consentimento, parecendo colocar um ponto final na questão, não dando margem a qualquer outra condição de perfectibilidade ao ato, inclusive o suprimento judicial.

Tal concepção não coaduna com os princípios gerais adotados pela Constituição e pelo Código Civil de 2002, notadamente da função social, que limita a manifestação da vontade condicionando-a aos valores sociais.

Já os que são favoráveis ao suprimento judicial do consentimento baseiam sua teoria na aplicação da analogia, como por exemplo, Carlos Roberto Gonçalves:

Se um dos descendentes é menor, ou nascituro, cabe ao Juiz nomear-lhe curador especial (CC, art. 1.692), em razão da colidência de interesses. Verificada a inexistência de propósito fraudulento, este comparecerá à escritura, para anuir à venda em nome do incapaz. Se a hipótese é de recusa em dar o consentimento, ou de impossibilidade (caso do amental), pode o ascendente requerer o suprimento judicial. Será deferido, na primeira hipótese, desde que a discordância seja imotivada, fruto de mero capricho (grifo nosso), malgrado respeitáveis opiniões em contrário, baseadas na inexistência de permissão expressa. (GONÇALVES, 2002ª, p. 64).

Tem posição favorável também ao suprimento judicial do consentimento, Christino Almeida do Valle, "Negando-se o descendente a assentir, o interessado poderá ingressar em juízo, requerendo o suprimento". (VALLE, 1993, p. 163).

No mesmo sentido é a lição sustentada por Antônio José de Sousa Levenhagem:

No caso, portanto, de o ascendente pretender efetuar uma venda real a um descendente, sem qualquer vislumbre de protecionismo ou liberalidade, por preço perfeitamente equivalente à coisa a ser vendida, e se os demais descendentes se opuseram ao negócio, nada pode impedir ao ascendente que requeira o suprimento judicial do consentimento, em cujo processo as partes irão produzir as provas necessárias, a fim de que o Juiz decida pela procedência ou não da recusa dos opositores. Não é admissível que se confira absoluto e ilimitado arbítrio em negar o consentimento pura e simplesmente, sem que seja provado legítimo fundamento a essa recusa, quando o espírito da lei, ao vedar as vendas nas condições do artigo 1.132 (menção ao CC de 1.916 – destaque nosso), é impedir a simulação que venha causar prejuízo aos demais descendentes. O lógico e o sensato, portanto, desde que seja aquele o espírito da lei, é admitir-se a prova de que não há simulação e que não há prejuízo". (LEVENHAGEM, 1985, p. 252).

Devo ressaltar que apesar das posições contrárias, também entendemos que é possível o suprimento judicial do consentimento, quando os demais descendentes, injustamente, se recusam a concordar com a venda projetada pelo descendente a um dos seus descendentes.

8.2 A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

Malgrado intensa pesquisa, encontramos poucas referência da jurisprudência de nossos tribunais com relação à possibilidade de suprimento judicial. Não se tem, ainda, uma posição dominante ou majoritária. Isto se deve ao fato de que, por muitos anos, a jurisprudência esteve muito apegada ao formalismo do artigo 1.132, do Código Civil de 1.916, entendendo que era nula a venda de ascendente para descendente sem o consentimento dos demais. Portanto, pouco se cogitava a respeito da possibilidade do suprimento judicial.

Dentre os julgados contrários que não admitiam o suprimento judicial, destacamos o proferido pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, cuja ementa é a seguinte:

- A venda de ascendente para descendente sem o consentimento dos demais descendentes é nula, não estando o Judiciário autorizado a suprir a sua falta, muito menos cabe a este indagar se há ou não justiça na recusa. (Apelação Cível nº 294.331-7, da Comarca de BELO HORIZONTE, Relator Juiz ALVIMAR DE ÁVILA, publicado em 24 de maio de 2000).

Analisando este acórdão, percebemos que os Juízes entenderam que a venda de ascendente para descendente, sem o consentimento de todos os descendentes, gerava nulidade absoluta, sendo tal negócio nulo, e que a prerrogativa da anuência é da parte e não cabe ao Judiciário indagar se há justiça ou não na recusa.

Entendemos que estes julgadores não foram felizes na interpretação, porque o direito deve-se adaptar às contingências da vida, atualizando o seu conteúdo. Não é razoável manter-se o direito contemporâneo atrelado a interpretações formalistas.

A falta de anuência imotivada e não explicada deve ser motivo de análise por parte do Judiciário e, se for ocaso, suprir a denegação do consentimento.

Como afirma Washington de Barros Monteiro (MONTEIRO, 1990, p. 282) "A idéia do absoluto, de que outrora se impregnavam os direitos, se tornou obsoleta. Os tempos mudaram e com eles o direito".

Não se sustenta, também, a tese de que não existe previsão legal para se suprir o consentimento. No caso mencionado nesse julgado, os Ilustres Julgadores poderiam aplicar a disposição contida no artigo 4°, da Lei de Introdução ao Código Civil que diz que na omissão da lei, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Entendemos que nesta situação poderia se aplicar a analogia, porque ela tem como objetivo atingir a completude do ordenamento jurídico relativamente a um caso concreto, quando na ausência de norma específica, toma-se como paradigma uma hipótese particular regrada por lei, conferindo igualdade de tratamento àquela não contemplada pela legislação. Seria o caso de se utilizar como paradigma o suprimento judicial do consentimento para o casamento do filho, diante da recusa imotivada dos pais, ou, do suprimento judicial da vontade dos incapazes.

Posteriormente, com o crescimento da tese de que a venda em discordância com o artigo 1.132, do Código Civil de 1.916, era anulável, cresceu também o entendimento de que também era permitido o suprimento judicial do consentimento, que é o que nos interessa neste estudo.

Sob este aspecto, contrariando o acórdão acima mencionado, destacamos alguns julgados bem mais flexíveis, quanto à permissão do suprimento judicial, como podemos ver pelas ementas abaixo:

- É possível o suprimento judicial do consentimento do descendente ou de seu cônjuge para a alienação de bens do ascendente a um dos descendentes, desde que a recusa seja imotivada, uma vez provada a seriedade do negócio e a idoneidade das partes. (ac. un. Da 2ª Câmara do TAMG, de 28.09.1977, na apelação cível nº 11.140, rel. Juiz Gouthier de Vilhena) (MIRANDA JÚNIOR, 1985, P. 181).

- VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE - Falta de consentimento dos demais descendentes. Irrelevância. Veracidade do contrato e justiça dos preços pagos não questionados. Aplicabilidade do art. 1.164, II, do CC. Não sendo questionada na venda de ascendente a descendente a equivalência dos valores, ou seja, de ter sido pago o justo preço, descabe falar em nulidade. (TJSP - AC 242.935-2 - 14ª C - Rel. Des. Paulo Menezes - J. 07.03.96). (REVISTA JURÍDICA, 2004, cd-rom n° 7)

- A proibição do artigo 1.132, do Código Civil, não é uma restrição ao jus disponendi. Desde que a venda seja séria e o justo preço seja pago, nada obsta à realização do negócio. Se um descendente, injustificadamente, nega o seu consentimento, pode o juiz supri-lo(RT 607/166, acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).

- COMPRA E VENDA - VENDA DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE - FALTA DE CONSENTIMENTO DOS DEMAIS DESCENDENTES - NULIDADE INEXISTENTE - Inexistindo dúvida de que o pai estava endividado, daí a venda ao filho, tem-se que o negócio foi normal, nada havendo de simulado quanto ao preço e eventuais favorecimentos ao comprador. Assim, não é razoável venha a anular-se um negócio autêntico por falta de anuência imotivada e não explicada. Apelação Cível nº 191.544-1/6 - 8ª C TJSP - J. 25.08.93 - Rel. Des. José Osório. (REVISTA JURÍDICA, 2004, cd-rom n° 7)

Esses julgados estão mais em consonância com os princípios do direito contemporâneo, que reconhecem no Judiciário uma alternativa para solucionar os conflitos do cotidiano, que muita das vezes estão sem previsão legal e que surgem, em grande parte, diante da inércia e da lentidão dos órgãos encarregados de elaborar e atualizar as leis.

Como disse MARTINS (1935, p. 7), o direito existe para a sociedade e a adaptabilidade da lei tornou-se necessidade imperiosa, tanto que se pode afirmar, com certeza, que a jurisprudência tem sido a precursora das reformas legislativas mais importantes.

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Portanto, dúvidas não há de que a tendência atual é no sentido de se permitir o suprimento judicial dos descendentes quando a recusa for imotivada e por abuso de direito.

8.3 DA AÇÃO JUDICIAL DE SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO:

Aqueles que opinam contra a hipótese do suprimento judicial do consentimento do descendente agasalham sua tese no fato de que na Legislação Brasileira não há menção expressa para esta possibilidade, ou seja, a lei não aponta a solução para o caso de recusa do descendente à venda projetada pelo ascendente a um dos seus descendentes.

Entendemos que isto não pode ser óbice ao direito de ação, porque na ausência de disposição expressa, o Juiz pode e deve aplicar a analogia, consoante ao disposto no artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n° 4.657, de 04/09/1942), in verbis: Quando a lei for omissa, o juiz decidira o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Além do mais, o Juiz está autorizado a julgar por eqüidade, aplicando a norma estabelecida no artigo 126, do CPC, sem esquecer que, na aplicação da lei, atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Para abalizar esta opinião destaco Silvio Rodrigues:

Não me parece que a lei impeça o suprimento judicial apenas por não o ter consignado expressamente. Neste terreno, nada proíbe a interpretação analógica: se o suprimento judicial corrige o arbítrio de uma recusa injusta, deve ser admitido, pois o interesse social da circulação da riqueza prevalece sobre o individual do descendente recusante. (RODRIGUES, 2004, P. 154)

Idêntico entendimento é defendido por CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

Tal omissão, entretanto, não constitui óbice ao suprimento judicial do consentimento do descendente, como decidido nos arestos citados, porque inexiste, por ouro lado, proibição expressa. Pode, assim, ser empregada a analogia, com base nas hipóteses legais de recusa dos pais em consentir no casamento dos filhos menores, e do cônjuge em anuir na prática dos atos elencados no art. 1.647 do Código Civil. (GONÇALVES, 2002ª, p. 64)

Portanto, para aplicar a analogia, podemos nos valer da Legislação brasileira dos casos onde há previsão expressa da possibilidade do suprimento judicial do consentimento, dentre os quais podemos destacar:

- Outorga judicial de consentimento para o casamento quando os pais o denegarem injustamente (CC, art. 1.519).

- O suprimento da vontade dos incapazes (CC, art. 1.691).

- O suprimento judicial da outorga uxória, quando um dos cônjuges, injustamente, negam o consentimento (art. 1.648, do Código Civil).

- O suprimento de autorização para viagem do menor ao exterior no caso de um dos pais se negar a concedê-la (art. 84, do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Sobre as ações de suprimento de consentimento leciona Pontes de Miranda:

As ações de suprimento de consentimento, todas ações constitutivas, podem ser a) por indevida denegação, ou b) por falta. Não são as mesmas. Ali, a tutela dos interesses fica em reexame, de modo que a ação é para destruir a eficácia da declaração de vontade de quem deveria consentir, ou não; aqui, a lei atribui ao Juiz, diretamente esta tutela. Ali, há sempre contenciosidade; aqui, não há, pelo menos no primeiro grau de jurisdição. (MIRANDA, 1998, p. 65).

Desta maneira, entendemos que para o suprimento do consentimento dos descendentes que se recusam por abuso do direito a expressar a sua anuência, numa venda séria, por preço justo e de mercado, poderá ser proposta uma ação judicial objetivando esse suprimento, que nada mais é do que uma autorização judicial para a prática de determinado ato, devendo as partes, anteriormente ao negócio, produzirem prova da sua veracidade.

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Sobre o autor
Marcelo José Torres

advogado em Santa Bárbara (MG), técnico judiciário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Marcelo José. O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes:: recusa imotivada e abuso de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 979, 7 mar. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8065. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Título original: "O suprimento judicial do consentimento do ascendente ou de seu cônjuge na venda de bens do ascendente a um dos descendentes, quando a recusa for imotivada e por abuso de direito".

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