Síntese: O texto trata da distribuição do ônus da prova diante do pedido de antecipação dos efeitos da tutela, enfocando a aplicação da teoria da carga dinâmica da prova e das inversões legais em seu ônus de produção.
Sumário: 1- O processo: deveres, ônus e faculdades. 2- Tutela Cognitiva. 3- Sistemas de Análise da Prova. 4- Neutralidade e Ônus da Prova. 5- Os Poderes Instrutórios do Juiz. 6- Objeto da Prova. 7- Ônus da Prova. 8- Antecipação dos Efeitos da Tutela e Ônus da Prova. 9- Conclusões
1- O PROCESSO: DEVERES, ÔNUS E FACULDADES
Juridicamente falando, ao vocábulo processo podem ser atribuídos vários significados. Em uma primeira acepção, processo se confunde com "autos", e nesse caso, refiro-me a um determinado processo, ou seja, a um determinado feito.
Em contraponto, posso partir para o grau máximo de generalidade e tomar processo como indicativo de veículo da atividade jurisdicional. Nesta hipótese, digo que o processo é o meio através do qual, materializando-se concretamente o exercício da ação, o Estado presta a tutela jurisdicional, qualquer que seja ela.
Mas posso, igualmente, tomar processo de forma mais específica, quando, então, estarei falando de um conjunto de atos destinados a dar concretude à prestação jurisdicional em determinada área (civil penal, administrativa etc...), através de uma relação jurídica própria, distinta da que lhe é objeto.
Neste último caso, passo a ter uma relação jurídica de direito público (porque envolve em um dos vértices o Estado) na qual observaremos deveres, ônus e faculdades, atribuídos às partes e ao juiz no desenrolar de uma relação dinâmica.
O dever processual é uma imposição legal, seja ela direta ou indireta, quando, neste último caso, decorre de determinação judicial cuja possibilidade de exigência é outorgada ao magistrado. O dever é sancionado, de forma que o seu descumprimento tem por conseqüência alguma espécie de prejuízo, efetivo ou potencial, à parte faltosa.
O ônus processual não apresenta uma sanção legal direta. Mas se a parte não se desincumbir de um ônus, lhe advirá, ainda assim, um prejuízo no plano lógico ou concreto.
A faculdade, de seu turno caracteriza-se porque seu exercício pode trazer vantagem, mas o seu não exercício não implica necessariamente prejuízo.
A produção probatória se coloca, via de regra, como um ônus, que é distribuído às partes segundo princípios eleitos pelo sistema processual considerado.
Hodiernamente, no entanto, verifica-se uma visível alteração no paradigma do ônus da prova, que é mitigado pela ampliação dos poderes instrutórios do juiz, o que adiante se verá.
Todavia, é importante não olvidar que o ônus da prova também se faz presente nos incidentes processuais, dentre eles a antecipação dos efeitos da tutela.
2- TUTELA COGNITIVA
A tutela cognitiva tem sido, durante o transcurso da história da civilização ocidental, em especial aquela porção que se filia às raízes continentais européias, a forma mais importante de prestação jurisdicional.
A cognitio suplantou, paulatinamente, o interdictum, e firmou-se como forma de tutela básica. Conseqüência disso pode ser vista quando observamos que o processo cogitivo é a matriz a qual se reportam todas as formas de tutela, e por onde se iniciam as mutações.
A atividade cognitiva sintetiza-se na atividade de conhecer dos fatos e aplicar-lhes o direito, conforme já calcado na célebre máxima "narra mihi factum dabo tibi jus". Refletindo a filosofia da consciência, de matiz aristotélico-platônica, busca a verdade, o acertamento dos fatos e se embasa na consciência como forma de revelar a verdade.
Neste processo, grosso modo, o juiz "conhece" dos fatos e faz incidir a lei. E para conhecer dos fatos, ele se vale das provas. Sim, porque as partes alegam o que lhes aprovem, Cumpre aquilatar se isso corresponde à "verdade". [01]
Então, é da essência da cognição a produção, admissão, interpretação e valoração da prova. Esta atividade desempenha papel central na cognição.
Ordinariamente, a cognição busca a verdade, e esta somente será encontrada, conforme os postulados ancestrais da dogmática jurídica, como decorrência de uma cognição exauriente e ampla.
É celebre a divisão da cognição em dois planos, um horizontal e outro vertical. No plano vertical, há a profundidade, que delimita até que ponto as questões (no sentido da doutrina de Carnelluti) [02], podem ser investigadas, e esta limitação se traduz em uma limitação do conteúdo probatório e da atividade de valoração da prova. Teremos, por conseguinte, cognição exauriente, ou seja, onde não há limitação, ou, ao revés, sumária, quando presentes limites. Esta última é associada com a aparência ou verossimilhança.
No plano horizontal, por outro lado, a limitação diz com as questões que poderão ser tratadas, não com a profundidade com que o serão. Teremos neste caso cognição limitada ou ampla.
As formas podem coexistir e combinarem-se livremente, de forma que poderemos ter cognição sumária e limitada ou plena.
Normalmente, a tutela cognitiva final está relacionada à cognição exauriente e ampla, mas isso não é uma regra absoluta, bastando citar-se a exceção materializada nos denominados processos sumários documentais, de que é exemplo o mandado de segurança, onde a cognição é limitada.
Já nos incidentes processuais normalmente ocorre o inverso, vale dizer, a regra é a cognição sumária ou limitada.
A antecipação dos efeitos da tutela é uma forma de incidente processual e, nos moldes em que concebida, representa um prelúdio da decisão final. Mas como incidente cognitivo, também entra em valoração a prova, através de cognição sumária (e ampla, em regra), valendo os mesmos princípios que orientam a produção, admissão e valoração da prova em relação à tutela definitiva.
Esta análise, ou seja, os princípios da prova em vista desse incidente é que constitui exatamente o objeto desta abordagem.
3- SISTEMAS DE ANÁLISE DA PROVA
A disciplina da prova reflete, como de resto a de todos os aspectos dogmáticos de um sistema processual, os valores e preocupações que orientam um determinado momento histórico de uma sociedade.
Ordinariamente, três sistemas de análise da prova podem ser elencados, quais sejam, o da íntima convicção, o da prova legal e o da livre convicção motivada.
O sistema da íntima convicção baseia-se na livre apreciação da prova pelo julgador, que não necessita justificar a opção pelas soluções que a partir destas provas tomar. Por outras palavras, o julgamento pode não refletir necessariamente o contexto probatório, pois não há necessidade de objetivar a decisão através da fundamentação vinculada à prova. A decisão apresenta, portanto, um caráter eminentemente subjetivo. Este sistema é hoje de escassa aplicação (no júri, por exemplo), porque a jurisdição representa o exercício de um dos Poderes do Estado, e o Estado contemporâneo prima pela impessoalidade, não sendo admissível que o julgador, investido dos poderes do Estado, os exerça a seu talante.
A prova legal, ou tarifada, representa o vértice oposto, e foi a regra nos períodos em que o processo, seja civil ou penal, não tinha uma estruturação científica, momento em que era pouco mais do que uma simples ritualística. Segundo este sistema, o próprio sistema processual, principalmente através da lei, determina, previamente, qual o valor, específico e estanque, pode ser atribuído a cada espécie de prova. A decisão surgirá, conseqüentemente, de uma consulta a um gabarito, de forma que, exempli gratia, um documento vale mais do que duas testemunhas, ou um documento público vale mais do que um privado etc...Também é um sistema em desuso.
Por fim, a livre convicção motivada ou sistema da persuasão racional do juiz, permite a livre apreciação e valoração da prova, mas condiciona a validade da decisão a que se reporte ao contexto probatório, exigindo do julgador a motivação, a fundamentação da decisão a partir dessas provas. Este é o sistema mais acolhido atualmente, pois permite a "objetivação" da decisão, de forma a assegurar a imparcialidade dos julgamentos e o controle do arbítrio nas decisões judiciais.
É preciso, porém, salientar que, apesar de a livre convicção motivada ser a regra, há, ainda, reflexos do sistema da prova da prova legal, mesmo no processo civil, podendo se afirmar que há um hibridismo com preponderância clara de um sistema.
4- NEUTRALIDADE E ÔNUS DA PROVA
A tratativa da prova é influenciada de forma significativa pelo dogma da neutralidade do juiz. Nem sempre foi assim, pois há períodos históricos nos quais preponderou o processo inquisitivo, onde a produção probatória é antes carreada ao julgador do que às partes.
O dogma da neutralidade do juiz encontrou largo campo de sedimentação no período de formação da moderna dogmática processual, o que se deu a partir do século XVIII, e tal fato se deve a três circunstâncias.
A primeira se materializa na consolidação do Estado Liberal-Iluminista, escudado na premissa da impessoalidade, significando a antítese do Estado Absolutista que foi por ele substituído.
A segunda reside na expansão do método científico, que apregoa a possibilidade de neutralidade do observador e, portanto, do julgador, decorrente da aplicação desse método ao Direito.
O terceiro fator é a busca da igualdade formal, primado central das declarações de direitos que passaram a permear os textos constitucionais da época. Se os cidadãos são iguais, também os litigantes merecem tratamento isonômico, devendo o julgador manter-se absolutamente imparcial.
Um outro aspecto visível na formação da sistemática da tratativa da prova no processo civil reside na supremacia do direito privado no processo continental europeu. Como cediço, o processo continental europeu de origem romano-canônica orienta-se pela dualidade jurisdicional, de forma que os pleitos envolvendo direito público encontram seara nos tribunais administrativos. Logo, ao processo civil cabem, de forma geral, as questões de direito privado, onde estão em voga direitos de natureza patrimonial e disponível. Isto tem por consectário uma visão que torna o ônus da prova uma carga quase que exclusivamente suportada pelas partes.
Estes princípios, erigidos à luz de um processo civil voltado para os direitos privados estão à base da formação do processo civil brasileiro.
Observa-se, assim, que, diante do dogma da neutralidade do juiz, em decorrência da necessidade de imparcialidade, e da tradição do processo continental europeu, a disciplina da prova indica que sua produção é um ônus das partes, e que somente excepcionalmente poderá o juiz produzir prova de ofício.
5- OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ
Mais recentemente, constatamos um visível aumento dos poderes instrutórios do juiz no processo civil. No processo penal, diante da natureza dos direitos postos em discussão e do fato de ser a persecução penal uma atividade essencialmente pública, sempre teve o juiz uma maior possibilidade de produção de provas, já que buscada a denominada "verdade real". O processo civil, de seu turno, admitiria a verdade formal. [03]
Hoje, a busca da verdade real também é uma preocupação do juiz no processo civil, ainda que neste o ônus da prova incida de forma mais incisiva sobre as partes do que no processo penal.
Um dos aspectos que conduziu a esta alteração de perspectiva sem dúvida foi o vertiginoso incremento das relações jurídicas que envolvem direitos públicos ou indisponíveis, com especial atenção para as que têm como obrigado o Estado e as decorrentes dos novos direitos difusos e coletivos.
Este mesmo fato conduziu a um aumento do número de processos que culminou por sobrecarregar a atividade jurisdicional e levou às recentes reformas processuais no processo civil brasileiro, que indicam para um aumento dos poderes decisórios do juiz de primeiro grau e do julgador monocrático no segundo grau. Neste contexto, soa natural que o aumento das responsabilidades do julgador monocrático seja acompanhado de uma flexibilzação da disciplina do ônus da prova, seja ela operada pela lei, seja pela jurisprudência.
O certo é que não devemos mais considerar a utopia de que todos os litigantes apresentem iguais condições de produzir prova ou que venham a juízo em paridade de armas, conforme expressão da doutrina italiana. Esta noção, cada dia mais equivocada, é fruto de um conceito de igualdade meramente formal, próprio do constitucinalismo iluminista, e que não corresponde à realidade dos fatos.
Em síntese, consoante consagrada máxima, a igualdade reside em tratar os desiguais de forma desigual, regra que vale também para a prova.
6- OBJETO DA PROVA
Em regra, o objeto da prova são fatos. Mas quais fatos? Os que sejam processualmente relevantes, quer para a resolução da lide seja em relação a incidentes. Por outras palavras, são os fatos relacionados às questões, entendidas como os pontos de fato ou de direito que são controvertidos nos autos ou que fundamentam pretensão e oposição e conseqüentemente a decisão.
Mas não somente fatos podem carecer de prova. Também o direito pode, excepcionalmente, ser objeto de prova, conforme a previsão do artigo 337 do CPC, que menciona a possibilidade de prova do direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, se assim o juiz de determinar. Logo, a necessidade de prova em caso de invocação de uma dessas categorias não é automática, mas depende de determinação judicial, salientando-se que presumivelmente o juiz conhece o direito (iura novit curia).
Há casos, porém, nos quais a prova é dispensada, o que ocorre nos termos do artigo 334 do CPC.
O rol inicia-se pelos fatos notórios. São os fatos evidentes, de conhecimento geral, público.
No inciso II, constam os fatos afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária. A menção à confissão reporta-se a uma situação bem específica, prevista no artigo 348 do CPC. No entanto, é preciso que seja admissível, na hipótese, a confissão, o que não ocorre se o direito é indisponível, salientando-se que a confissão opera contra o confitente, não produzindo efeitos em relação aos litisconsortes.
Outro caso onde inexiste necessidade de prova refere-se aos fatos "admitidos no processo como incontroversos" (inciso III do artigo 334). Um das hipóteses em que isso pode ocorrer é a regulada no artigo 302 do CPC, que consagra o princípio da eventualidade, segundo o qual cabe ao réu manifestar-se especificamente sobre os fatos articulados na exordial, sob pena de, sob certas condições ressalvadas no próprio dispositivo legal, serem considerados verdadeiros.
Por fim, no inciso IV do artigo 334, temos os fatos em favor dos quais milita presunção legal de existência ou veracidade. Estão abrangidas ai uma série de situações nas quais a própria lei aponta para a presunção de existência ou veracidade de um fato, discriminando-o.
Embora não careçam de prova, os fatos notórios e os revestidos de presunção de existência ou veracidade admitem prova em contrário, pois a desnecessidade de prova é em relação a quem os invoca.
7- ÔNUS DA PROVA
Excetuados os casos nos quais está o juiz autorizado a produzir prova, o ônus probatório recai diretamente sobre as partes, conforme as regras do artigo 333 do CPC. Assim sendo, ao autor ou postulante, cumpre provar os fatos que embasam sua pretensão. Ao réu ou à parte contrária no incidente processual (que pode ser o autor da demanda) cumpre provar fatos obstativos da pretensão contra ele articulada, ou seja, fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor ou postulante.
Esta regra, como já referido, foi erigida à luz de um processo concebido sob a ótica dos direitos privados e da igualdade formal, que não condiz com a realidade empírica, de relações de massa e assimétricas, como é o caso das relações de consumo ou dos direitos onde figura como "obrigado" o Estado.
Daí que se tenha preconizado regras de mitigação destes princípios, tais como a estampada no artigo 6º inciso VIII, do CDC. De par com estas situações específicas, a distribuição do ônus probatório através da carga dinâmica da prova permite ao magistrado flexibilizar as regras de acordo com a situação particular das partes em relação à determinada prova.
Exemplo de situação onde esta inversão se faz necessária é na prova de fato negativo, pois a alegação de fato negativo, em linha de princípio, transfere o ônus da prova para à parte contrária, presumindo-se, por exemplo, que a afirmação de inadimplemento é de difícil prova para o credor, mas o seu contrário, ou seja, o adimplemento, é facilmente provável pelo devedor.
Esta principiologia, de flexibilizaçãodo ônus da prova, deve também ser aplicada em casos de relações assimétricas ou fatos onde, não obstante seja o ônus, pela regra geral, carreado a um das partes, esteja a parte ex adversa em melhores condições de produzir a prova. Cuida-se de prestigiar a verdade real também no processo civil, impedindo que questões formais superem as questões de fundo.
8- ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA E ÔNUS DA PROVA
A antecipação de tutela é um incidente processual, que tem processamento nos mesmos autos, produzindo uma decisão interlocutória baseada em cognição sumária (sentido vertical) e ampla, em regra (sentido horizontal).
A rigor, esta espécie de cognição é do mesmo tipo daquela levada e efeito na tutela cautelar, mas há um traço distintivo, qual seja, a menção à prova inequívoca. Como já referi em outra oportunidade, na esteira de significativa parcela da doutrina pátria, existe uma contradição em se falar em prova inequívoca e verossimilhança, pois esta última é um estado que resulta da mera plausibilidade, a qual de seu turno, pode originar-se de provas apenas razoáveis. Prova inequívoca, por outro lado, induz certeza. Ocorre que, processualmente e de acordo com nossa tradição, a certeza somente advirá após o contraditório.
Mas o que seriam as provas inequívocas? A característica de ser inequívoca se traduz na potencial incontrastabilidade por outras provas, implicando em um elevado grau de probabilidade de que o que a mencionada prova estampa efetivamente corresponde à realidade.
Normalmente, mas não exclusivamente, a prova documental é que com mais freqüência se apresente com este atributo.
Como a antecipação da tutela representa uma antecipação total ou parcial dos efeitos da sentença, os fatos a serem provados são os mesmos que dão suporte à pretensão, vale dizer, os mesmos fatos que compõem a causa de pedir. Mas outros ainda podem carecer de prova e são os relativos a requisitos específicos do incidente, como, por exemplo, fatos relacionados ao "perigo de dano irreparável ou de difícil reparação".
E o ônus da prova? Certamente valem as mesmas regras gerais ou específicas, de forma que ao postulante cabe a prova dos fatos que alegar, ressalvada a inversão do ônus, seja por força de lei ou pela aplicação da teoria da carga dinâmica da prova.
Logo, está o autor, por exemplo, isento de provar fatos negativos, salvo se for possível prova através de fato positivo e contraposto. Tomemos o exemplo de um contrato de compra e venda, onde o comprador se torna inadimplente. O alienante ingressa com ação de rescisão contratual e pedido de busca e apreensão, este último sob a forma de antecipação dos efeitos da tutela.
Terá o alienante e autor de provar o contrato e mencionar a possibilidade de venda do bem a terceiros ou de ocorrência de sinistro como ensejadoras de prejuízo de difícil reparação. Mas e a mora que caracteriza o descumprimento contratual e enseja a rescisão? Deveremos observar de que espécie de mora se trata, se é ex re ou ex persona. Se a mora é ex re, ela existe pelo só fato da inadimplência, não carecendo de qualquer providencia do alienante a fim de interpelar o adquirente.
Neste caso, não se pode exigir que o alienante e autor prove a mora. A uma, porque esta prova não lhe compete, pois quem tem de provar que a mora não ocorreu é o adquirente. A duas, porque o não pagamento do preço é fato negativo, e como tal, é muito mais fácil ao devedor provar que pagou. Eventual interpelação ou protesto (fato positivo) que poderia provar a mora pode exatamente significar a frustração da execução da liminar, com a conseqüente ocultação do bem pelo réu.
A possibilidade de alienação do bem a terceiros, por outro lado, é um fato que se presume, ressalvadas hipóteses restritas onde há indicativo contrário, de forma que não carece de prova, a priori. A potencial ocorrência de sinistro pode ser indicada pela simples menção á espécie de uso.
Nos casos de ações onde está em pauta uma relação de consumo, a possibilidade de inversão do ônus da prova também abarca a antecipação dos efeitos da tutela, bastando que a alegação seja verossímil ou que seja comprovada a condição de hipossuficiência, nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do CDC. E note-se que a verossimilhança necessária para que se opere a inversão do ônus probatório no caso não carece de prova inequívoca.
Esta, portanto, o magistrado autorizado a flexibilizar, na apreciação da antecipação de tutela, o regramento do ônus probatório,quando isso for cabível e indicado, nas mesmas bases em que pode fazer na instrução do processo, devendo ainda, considerar os casos onde a prova não é requerida.
9- CONCLUSÕES
As partes não vêm ao processo em paridade de condições e o ônus da prova deve refletir esta desigualdade. As regras do ônus da prova encartadas no CPC ainda refletem uma concepção de processo civil direcionada ao direito privado.
Através da modificação deste regramento pela legislação específica ou pela aplicação da teoria da carga dinâmica da prova, o ônus da prova pode ser distribuído de forma mais equânime no âmbito do processo civil, corrigindo distorções que distanciavam o processo do ideário de justiça preconizado pelo texto constitucional.
Esta flexibilização também deve ter aplicação nos incidentes processuais, dentre os quais se destaca, por sua crescente importância, a antecipação de tutela.
Desta forma, ao analisar o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, também deve magistrado atentar para as regras de distribuição do ônus da prova e para a condição de cada parte de produzir determinada prova, tendo em mira que também no processo civil deve ser buscada, na medida do possível, a verdade real.
NOTAS
01
A moderna filosofia da linguagem revela quão vã é busca da verdade. A própria definição do que seja a verdade é um dos mais tormentosos problemas da filosofia. Hoje sabemos que a verdade depende do observador, da cultura em que ele está imerso, depende, em síntese, da linguagem. E pela linguagem, e não pela consciência que o homem conhece o mundo e a linguagem é essencialmente sazonal. Logo, não há uma verdade imutável, apofântica, esperando ser revelada pela consciência do observador. Há sim uma verdade que verterá das condições por ele vivenciadas naquele momento.02
Nesta visão, questão é o ponto controvertido de fato ou de direito, seja por força da atividade das partes seja pela atuação do magistrado. Obviamente, tratam-se dos pontos relevantes para o deslinde da demanda.03
É uma verdadeira contraditio in terminis falar de uma verdade formal, pois a verdade pressupõe exatamente a eliminação da suposição e da presunção