Capa da publicação Dia sagrado e a educação: o direito à liberdade religiosa no ensino
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Dia sagrado e educação:

direito de liberdade religiosa no acesso à educação

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07/04/2020 às 10:30
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3. DIREITO E RELIGIÃO: IGUALDADE, LIBERDADE E PLURALISMO

3.1. Ordenamento jurídico e Religião/Dia Sagrado: uma relação histórica

  Como foi destacado, a religião tem um marco fundamental no próprio sentido de ser da sociedade. E os valores produzidos pelas relações sociais, enquanto principais fontes materiais do Direito, fundamentaram, durante a História das civilizações, importantes costumes e leis adotadas por diversos Estados. Em sendo assim, abre-se o caminho para expor alguns desses valores.

Ritos religiosos e práticas espirituais foram incorporados nas esferas de trabalho, empresariais, de negócios, penais, administrativos, dentre outras formas de vínculos sociais que conduzem o desenvolvimento de uma civilização. Como um exemplo das tantas influências da Religião no Direito, pode-se mencionar a questão do dia sagrado no âmbito do Direito do Trabalho.

Quando se trata de Direito do Trabalho, por ser um Direito voltado para a proteção de direitos básicos do indivíduo, é mais fácil identificarmos uma carga valorativa social mais presente. É nesse sentido que foi cada vez mais defendido e garantido um descanso semanal para o trabalhador, por ser este um ser pertencente a um grupo que tem nesta prática um ritual milenar e de grande importância social, cuja relação vai além dos interesses corporativistas e econômicos de sociedades empresárias empregadoras. A luta pela garantia de trabalhadores, dentre outros motivos, sempre foi pela salvaguarda da dignidade da pessoa, não o enxergando como uma máquina, mas como um ser de relações socioculturais. Por essa razão, houve a inserção do descanso semanal no rol de direitos dos trabalhadores, sendo encontrado em diversos ordenamentos ao redor do mundo.

A Organização Internacional do Trabalho consagrou em mais de uma Convenção a importância, para os trabalhadores, do descanso semanal. O Brasil ratificou todas elas. A Convenção nº 14 foi promulgada pelo Decreto nº 41.721[21], de 25 de junho de 1957, tratando da concessão do repouso semanal nos estabelecimentos industriais. Outra foi a Convenção nº 106, promulgada pelo Decreto nº 58.823[22], de 14 de julho de 1966, relativa ao repouso semanal no comércio e nos escritórios. E, ainda, a Convenção nº 110, promulgada pelo Decreto nº 58.826[23], de 14 de julho de 1966, relativa às condições de emprego dos trabalhadores em fazendas.

Tal estima pela preservação do repouso semanal é encontrada em muitos países e, talvez, seja uma das proteções aos trabalhadores mais enraizadas, como representantes da própria OIT tiveram oportunidade de destacar[24]. Como exemplo disso, temos a proteção do repouso semanal consagrada na Constituição da República Portuguesa[25], art. 59, 1, “d”, elencando-o como direito fundamental do trabalhador.

3.2. Religião e Direito Internacional

Nesse ponto, é interessante analisar o papel do Direito Internacional e suas influências no cenário nacional no que diz respeito à liberdade de pensamento, religião e de culto. O Direito Internacional é matéria de estudo recente, sendo sua origem ainda matéria mal compreendida, apesar de existir dados suficientes para indicar possíveis vestígios de início de um direito para além do campo dos Estados soberanos. Por ser temeroso o impacto de assumir a existência de direitos que ultrapassam a soberania nacional, a eficiência dos direitos internacionais e a competência dos órgãos internacionais são dependentes de uma complexidade processual, de forma a garantir a participação e autorização dos Estados soberanos, sendo estes detentores de crucial autonomia na escolha dos direitos que seus nacionais obterão. Até mesmo a caracterização de nação e Estado depende de princípios internacionais, como a autodeterminação, que serão reconhecidos ou não nas relações entre soberanos.

Nesse diapasão, é possível analisar o posicionamento internacional tendente no que diz respeito às liberdades e aos direitos humanos. E esse entendimento é consolidado por entidades internacionais que declaram por meio de documentos oficiais aquilo que é considerado como bem comum a todos os indivíduos, independentemente de cor, nacionalidade, aspectos somáticos, religião, etnia, grupo social e cultura. Esses documentos são avaliados e considerados em cada Estado, sendo validado ou não pelas leis internas.

O Brasil, internacionalmente, posicionou-se oficialmente a favor de direitos fundamentais, declarados universais, os quais estariam acima de privações e limitações impostas que não sejam fruto da necessidade em proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas[26]. Nesse contexto, extraiam-se importantes prescrições do artigo 27 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos de 1966, promulgado, no Brasil, em 1992, bem como do artigo 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, promulgado, no Brasil, em 1992, respectivamente. Senão, vejamos:

Artigo 27: Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.[27]

Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião: 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2.Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.[28][grifo nosso]

O artigo 27 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/MRE prevê expressamente a proteção de minorias religiosas, indicando que tais crentes não podem ser privados de ter sua própria vida cultural e esse compromisso internacional vai além do que simplesmente permitir sua existência. O pacto é de não prejudicar a educação, a profissão e tantos outras características do ser humano em virtude de sua crença. O artigo 12 do Pacto São José da Costa Rica, por sua vez, expressa que as limitações à liberdade de crença só podem ser feitas unicamente por lei e se for necessária para proteção pública ou das liberdades das demais pessoas.

Interessante notar a intenção de se preservar a cultura dos diferentes grupos sociais da sociedade, inclusive as minorias religiosas. Essa parcela da sociedade, muito embora não tenha tanta expressão em comparação à grande população, deve ter seus direitos socorridos e, salvo os casos justificadores de proteção à segurança, à ordem, à saúde ou à moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas, não podem ser privadas de direitos que fazem jus, pressionando determinada minoria a se desfazer de suas crenças e valores por comodidade do Estado-Administração ou mesmo baseado em argumentos abstratos e inconsequentes. Por isso, é importante frisar que as disposições de normas internacionais, quando vigora regularmente no país, não detém apenas caráter de recomendação, mas, conforme interpretação do Supremo Tribunal Federal, contempla o status supralegal[29].

Quando se analisa os fatos ligados à liberdade religiosa no âmbito interno de diferentes Estados, percebe-se que o objeto de discussão em outros países se assemelham com o brasileiro. Vê-se, por exemplo, decisões importantes como o caso de Sherbert v. Verner (1963)[30], no qual um direito individual religioso foi protegido de forma a ter acesso a um direito social, um direito de todos. Por outro lado, há casos como o de Mba v. Mayor and Burgesses of the London Borough of Merton[31], que, diante de um conflito entre a liberdade religiosa de um indivíduo e a liberdade individual de outro sujeito ou dever do Estado como empregador na prestação de um serviço público, este foi resguardado em detrimento do direito religioso.

No que diz respeito aos Tribunais Internacionais, a opção pelo equilíbrio nas decisões é justificada diante da complexidade e diversidade dos países sob suas jurisdições. Nesse pensamento, encontra-se decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos que, em diversos casos de possível afronta à liberdade religiosa, tem buscado harmonizar os direitos dos iguais ante seus iguais e garantir a diferença de tratamento entre os desiguais. É o que se extrai dos seguintes julgamentos: Tsirlis and Kouloumpas v. Greece[32]; Thlimmenos v. Greece[33]; e Eweida and others v. The United Kingdom[34].

Nesse diapasão, é notório que, longe de ser uma discussão meramente interna, a liberdade religiosa é uma demanda internacional, em distintas profundidades. Nesse quadro, a liberdade religiosa dos estudantes pertence a um discurso maior, qual seja, a liberdade dos religiosos diante de aspectos cotidianos da sociedade que são objeto de tratamento legal e jurídico. Nesse caso, os estudantes religiosos integram outro fragmento social, a dos religiosos que, por suas crenças, enfrentam barreiras para se inserirem paritariamente no convívio cultural. Essa questão é uma temática de interessante discussão nas cortes internas e internacionais.

A questão central, nesses termos, é que a liberdade religiosa e suas repercussões no cotidiano de estudantes, trabalhadores, instituições e empregadores, é um tema de interesse geral, não podendo ficar desapercebido pelos Poderes, como algo que não necessita de apurada discussão. Há muito o que se discutir, principalmente no âmbito do Poder Executivo, para que a garantia dos direitos individuais se harmonizem e sejam viáveis diante dos direitos coletivos. Cite-se, ainda, o fato de alguns países tentarem harmonizar as relações de religiosos com o cotidiano da sociedade e das exigências do Estado não só por decisões judiciais, mas também por outros meios, como, por exemplo, é o caso de Portugal, que editou a Lei nº 16/2001[35], que prescreve, no artigo 14, a dispensa de trabalho, de aulas e de provas, por motivo religioso.

Relembre-se que a Religião é uma expressão social humana, com o transcendente, presente em toda parte do mundo. O Estado, quando surge como uma realidade também presente em todo mundo, não pode ignorar o próprio modo de ser dos indivíduos, como se fossem simples máquinas que cumprem papéis para sustentar seu país. Cada pessoa, independente de nacionalidade ou lotação, é um ser de valores e de modos de vida e a omissão não é o caminho lógico a ser seguido para a construção organizada da sociedade e de seus objetivos.

3.3. Religião e Constituição Brasileira: a laicidade como garantia de liberdade religiosa

O termo laico[36] tem a mesma origem que a palavra leigo. Isso é bastante elucidativo quando se entende que o termo laico é uma expressão que se contrapõe aquilo que é considerado sagrado ou separado. A laicidade denota aquilo que é comum aos povos, sem singularidades ou preferências, isto é, quando não há religiões, ideologias ou culturas que sejam defendidas, em detrimento das demais, pelo Estado.

O Estado laico é a consciência pública de respeito e oportunidade a todas as correntes de pensamento, sem distinção das demais. Esta postura requer do Estado a não-oficialização de determinadas filosofias ou religiões, para que não haja latente prejuízo às outras que sofram pela ausência de reconhecimento do Estado e de igualdade de condições dos membros das diferentes tribos. A laicidade é uma das principais características do Estado Democrático de Direito, permitindo que as diferentes culturas possam conviver pacificamente, sem a interferência ou coerção das de maior projeção ou mesmo do Estado.

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Essa garantia constitucional [artigo 19, I e III, da Carta Maior[37]] apresenta dois lados que se complementam: aplicabilidade positiva e aplicabilidade negativa[38]. Fala-se em uma eficácia positiva, posto que o Estado, para que seja concretamente laico, deve demonstrar respeito a todas etnias, culturas e religiões, de forma a garantir a igualdade material entre os povos[39]. Essa noção da laicidade indica que o Estado, por vezes, deverá tomar medidas que protejam religiões específicas, tidas como minoritárias, para que estas se encontrem em uma situação de isonomia perante outras de maior expressão social. Longe de prejudicar as religiões majoritárias, essas medidas visam permitir que as minorias religiosas não sejam prejudicadas por não pertencer à “normalidade” social. Isso se torna mais evidente quando a Administração toma medidas rotineiras ou de organização, que aparentam ser imparciais, mas que sofrem a influência direta das religiões dominantes do país. Exemplo disso é a escolha constante de reposição de aulas nos sábados e não nos domingos [dia sagrado para maioria dos religiosos brasileiros] quando há paralisação dos serviços das instituições de ensino, sem, por vezes, estabelecer condições alternativas para que estudantes pertencentes a minorias religiosas não sejam prejudicados por situações alheias a esses, configurando-se um caso fortuito ou de força maior. Doutra banda, a eficácia negativa da laicidade é tão essencial quando a positiva, pois essa noção do laico impõe que o Estado se abstenha de práticas que fortaleçam grupos religiosos e que, como consequência, tragam prejuízos às demais religiões, independentemente se o grupo auxiliado seja de religiões minoritárias ou majoritárias. A questão central nessa vertente é que o Estado não deve participar ou contribuir para o desenvolvimento de qualquer religião ou cultura, mas se abster de tais atos. O dever do Estado é garantir o bem-estar social de forma a permitir que a população viva pacificamente, contribuindo para a igualdade material dos povos.

A aplicabilidade positiva e negativa da laicidade, aparentemente, é antagônica, o que não é verdade. Ambas demonstram que a imparcialidade do Estado é um dever, mas que isso não significa a omissão, posto que, em determinadas situações, o próprio ato de se omitir já é uma escolha. Por ser uma questão delicada, o Estado tem a obrigação de ser mais diligente e problematizador quando se trata de laicidade, não se eximindo de seu dever.

Ao se tratar da laicidade, contudo, conforme já destacado neste estudo, o Estado brasileiro, historicamente, teve uma relação muito próxima com a religião, estando, atualmente, numa situação de cooperação mais equilibrada e imparcial. A Constituição é fruto da sociedade, como também o Direito, e, portanto, não se deve excluir a própria sociedade ao se estabelecer qual será a relevância dada às religiões no Estado Democrático de Direito. A harmonização da laicidade do Estado, situando conforme o tempo, a época e a História, com a sociedade, para se aproximar gradativamente do ideal de igualdade.

A liberdade, por sua vez, é um tema que ultrapassa a esfera jurídica, sendo objeto de outros campos de estudo. Contudo, no Direito, a liberdade encontra um grande arcabouço científico e de consequências concretas no cotidiano da população, estabelecida como fundamento das diferentes visões doutrinárias e jurídicas, incluindo o Direito Positivo. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em destaque preambular, coloca a liberdade como um dos objetos a serem protegidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro. Como não bastasse, ainda está elencando como direito fundamental no artigo 5º da Carta Maior. A aresta que interessa a esse estudo dessa tão enaltecida liberdade é a que diz respeito às religiões.

A análise jurídica da liberdade religiosa a constrói dentro de uma categorização das liberdades, bem como a desconstrói didaticamente em algumas vertentes que a compõe[40] [41], com liberdades voltadas ao interior do ser e outras se relacionando com a externalização do interno, na interação com os outros. Nesse sentido, pode-se observar que a liberdade religiosa tem sua origem na liberdade de pensamento e de expressão[42], se desdobrando, consoante diversas classificações, inclusive na adotada pela Carta Maior[43], na liberdade de consciência – que é mais ampla, por conter a liberdade de ter e de não ter religião[44] –, de crença, de culto, de liturgia e de organização religiosa[45].

O direito à liberdade de consciência é matéria vinculada à liberdade religiosa, mas vai além desta, pois abrange o direito de professar uma religião e também o direito de não ter outra ou mesmo nenhuma. A liberdade religiosa está prevista, de maneira analítica, no art. 5º, inciso VI, da Constituição Brasileira[46], e a liberdade de consciência, por sua vez, está garantida pelo citado artigo e também pela previsão no art. 5º, inciso VIII, da Constituição Brasileira[47], que traz o instituto da objeção de consciência. Essa é matéria constitucional, de efeitos imediatos, que garante a todos a proteção de seus direitos, não sendo possível mitigá-lo em virtude de sua crença ou não crença, ou por sua posição filosófica ou política, sendo garantido, de pleno, a proteção do indivíduo.

A liberdade religiosa teve um destaque profundo e exemplar na Constituição da República de 1988[48], ausentes, no entanto, uma legislação infraconstitucional que ajude a solucionar os problemas recorrentes entre a aplicação dos direitos fundamentais e o eficiente desempenho da Administração Pública. O Estado-Administração é obrigado a agir de forma a executar as políticas públicas e a gerir a máquina pública, sendo que, por vezes, os direitos constitucionais sofrem restrições injustificadas por falta de orientação legal detalhada pertinente.

3.4. Direito à Educação e Liberdade Religiosa

O Estado brasileiro atual, um Estado Democrático de Direito, alicerçado nas normas constitucionais, dedicou o tema Educação ao ramo da Política. Mércia Cardoso De Souza[49], após análise de diversos textos constitucionais, afirma que o tratamento dedicado à temática da educação reflete valores e ideologias, sendo, portanto, um tema político. Diz, ainda, que, observando a disposição dos objetivos do ensino e a própria estruturação do sistema educacional, constata-se a perspectiva pública e política da Educação.

Doutra banda, é expressamente previsto, na Constituição, dentro do Título da Ordem Social, no artigo 206[50], alguns princípios que norteiam o sistema educacional atual. Entre esses, pode-se destacar a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e, também, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

O Brasil é um país plural e os princípios da Educação não poderiam seguir outro caminho. Por ser um Estado com sociedade plural, o ensino deve ser plural e, por conseguinte, garantir a igualdade de condições de acesso e a coexistência. Haverá sempre etnias e culturas predominantes, mas isso não deve dar a nota final à estrutura educacional. Pelo contrário, a existência de categorias dominantes deve dar mais força aos princípios norteadores do Direito Educacional e garantir às minorias seu direito à existência, à coexistência e à igualdade.

O acesso ao ensino é para todos. Não todos os que se enquadram no perfil socialmente aceito, mas para todos. Isso, todavia, não quer dizer moldar o “todos” para se tornarem uno, mas para que o multi, respeitando-se sua diversidade, tenha liberdade e garantia de acesso à mesma educação que os demais da “massa” têm. Não quer dizer melhores oportunidades ou benefícios, quer dizer não ter pior ou não ter uma limitação e um prejuízo em virtude de diferenças de culturais.

Adventistas do Sétimo Dia, Judeus e demais religiosos que têm como norma de fé a sacralidade do sábado, não sendo considerado um dia comum, mas um dia especial, de encontro com o seu Deus, também são, enquanto cidadãos, sujeitos de direito e obrigações perante o Estado e a sociedade, bem como são protegidos pelos direitos fundamentais, por vezes constitucionalizados, que são inerentes ao ser humano. Nesse viés, esses que se caracterizam por ter uma rotina semanal divergente são dissonantes da grande massa e culturalmente estranhos ao “normal”. Esses indivíduos compõem uma minoria que está dentro da sociedade e que se utilizam de todos os recursos públicos, como quaisquer outros – ensino é um recurso público de acesso livre que abarca também essa minoria. Dessa forma, o Estado tem o dever de proteger seu direito à cultura e de forma de vida (artigos 215 e 216, da CR/88[51]), sem prejudicar o direito à educação.

Ademais, há que se ter um vislumbre de outro direito, inerente a pessoa, que envolve diferentes credos, principalmente os de minorias, que é o da liberdade de culto. Essa liberdade, prevista no artigo 18 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992[52], bem como no artigo 5º, inciso VI, da Constituição da República[53], é direito fundamental inviolável, imodificável e de eficácia plena, devendo ser respeitada e protegida de imediato, não havendo norma superior a esta. Nesse sentido, há de se entender que o Direito à Liberdade de Culto e de Religião, por sua extensão, e o Direito à Educação, plural, igualitário e efetivo convergem positivamente, criando uma atmosfera favorável ao bem-estar de toda a sociedade, sem excluir minorias sociais das efetivas obras e serviços do Estado para a população, sobretudo no que diz respeito ao ensino. Entretanto, abre-se espaço para uma discussão mais aprofundada quando se tenta dimensionar o possível prejuízo ao direito à isonomia em favorecimento ao direito da liberdade de culto e de religião, quando se parte para a execução das medidas estatais no âmbito da educação, mais destacadamente, quando se parte para a condução da educação regular de uma população plural que terá acesso ao mesmo ensino e, para tanto, terá que ser adequada a um perfil escolar e didático escolhido por um seleto grupo da Administração Pública, responsável pelas medidas e regulamentos internos no âmbito da Educação, que, no Brasil, fica a cargo da União, consoante disposição da própria Constituição que prevê, no artigo 22, inciso XXIV[54], competência privativa quanto às diretrizes e bases da educação nacional. Nesse ponto, há, supostamente, uma, nos dizeres de Luís Roberto Barroso[55], colisão entre direitos fundamentais, que precisa ser solucionado pelo intérprete do Direito.

O direito à isonomia, como um direito fundamental igualmente previsto e protegido pelo ordenamento pátrio e por diversos tratados e convenções internacionais, não deve ser analisado de forma superficial e frivolamente. É necessário entender o a finalidade desse direito fundamental e as razões de sua existência.

Antes de tudo, é necessário esclarecer que o direito à isonomia, ou à igualdade, é uma garantia fundamental pertencente a primeira e segunda dimensão[56], sendo a igualdade formal conquistada primeiramente, que é a igualdade perante a lei, evitando privilégios de uns em detrimento de outros. A igualdade material é considerada um direito fundamental de segunda dimensão, pois tem sua raiz nos direitos sociais. Não adianta a lei prevê medidas igualitárias perante todos se, na vida prática, as pessoas já se encontram em situações desiguais, uns com grandes desvantagens em relação a outros. Nesse sentido, a igualdade material garante que medidas serão tomadas para diminuir as desigualdades já existentes, ou seja, privilegiar os desprivilegiados ou reduzir regalias dos mais favorecidos[57]. Isso quer dizer que a lei não só impedirá que novas desigualdades se produzam (igualdade formal), como ela mesma preverá vantagens a classes e grupos, para que estes possam ser igualados, materialmente, aos grupos favorecidos.

Nessa visão, não há que concluir a existência de conflito entre o direito à isonomia e o da liberdade de religião quando aquele direito serve para que grupos, como religiosos estudantes, cujo calendário é divergente do tipicamente seguido, tenham iguais direitos aos demais estudantes de classes sociais que não se encontram em desvantagem, ou seja, que não sofrem prejuízo, pelas leis e medidas regulamentadoras do Estado, ao criar e executar as diretrizes e bases do sistema educacional nacional. Nesse diapasão, a visão da situação fática existente é a de que a maior parcela da comunidade estudantil está em harmonia, inclusive cultural, com os ditames da Educação, em especial com o calendário escolar, enquanto que uma minoria, culturalmente diversa, não está adequada e, portanto, precisa ser conduzida diferenciadamente, para que tenha também acesso ao sistema educacional de forma distinta, porém não melhor, tampouco pior.

Ademais, conforme a clareza de Barroso[58], a ponderação, para solucionar colisão de direitos fundamentais, socorre-se do princípio da razoabilidade-proporcionalidade, para promover a máxima concordância prática entre os direitos em conflito. Somente no caso de incompatibilidade clara, indistinta e justificada, o intérprete, no entendimento do autor, precisaria fazer escolhas, determinando, in concreto, o princípio ou direito que prevaleceria.

Assim percebe-se que, ainda que haja comprovado conflito entre o direito à isonomia e o direito à liberdade de culto, é necessário fazer uma construção fática-argumentativa, para que haja a melhor solução, sem grandes perdas para ambos os lados. E, ao que tudo indica, tal solução foi prevista pelo próprio texto constitucional[59], no artigo 5º, incisos VI e VIII, quando dispõe sobre fórmulas alternativas a serem observadas a quem tiver direito de consciência e de crença sofrendo ameaça ou violação. Nesse caso, não haveria significativa perda ou lesão ao religioso que tiver seu direito ameaçado, tendo em vista que medida alternativa estaria sendo proposta a ele, para que o seu direito à liberdade de culto e religião seja preservado, sem que, para isto, este seja beneficiado ou favorecido em detrimento dos demais, do povo.

Todavia, na prática, o cenário social, que deveria ser de soluções jurídicas e protetivas, demonstra uma passividade e acomodação pelo mais simples. O problema é que esse simples é a medida mais violadora dos direitos fundamentais.

3.5. Dia Sagrado e Constituição: direito à objeção de consciência e a garanta de prestação alternativa

A plenitude e imediatidade do direito à liberdade de consciência é reforçado pelo fato de só existir uma única hipótese para o seu não cumprimento, qual seja, quando houver obrigação instituída por lei a todos e houver a recusa de prestação alternativa também instituída por lei. Desta forma, a objeção de consciência só não será garantida quando, por lei – não sendo válido outro meio mitigador –, o Estado impor uma obrigação geral e prever alternativa a esta obrigação. Assim, o indivíduo terá a opção de prestar a alternativa legal ou ver seu direito mitigado em virtude de consciência.

Interessante notar que, expressamente, a Constituição, com intuito de dar segurança jurídica aos direitos fundamentais previstos, impõe que a mitigação deste direito seja por lei, não sendo possível outro instrumento, como, por exemplo, uma decisão meramente administrativa. Esse ponto revela como a ausência de regulamentação legal torna pior a situação de estudantes religiosos que tem o seu direito à educação tolhido sem justa disposição legal, com a devida fixação de alternativa possível. Trata-se de alternativa possível, posto que, não seria lógico a previsão de meio alternativo à obrigação legal se esta também ferir à liberdade de consciência, tornando inócua a exigência do artigo 5º, inciso VIII, da Carta Maior[60].

A presença de alternativa por escusa de consciência, na Constituição Cidadã, demonstra o avanço democrático do Brasil, permitindo, assim, que um maior número de pessoas conviva harmoniosamente no país. Essa oportunidade envolve, inclusive, a de ofertar serviço alternativo na seara militar, em tempos de paz (art. 143, §1º, da CR/88[61]). O Brasil demonstra ter uma Constituição sólida e vanguardista na ampliação dos direitos individuais, sobretudo, na liberdade. A religião é um braço do indivíduo cuja liberdade é protegida. Essa tendência constitucional deve ser seguida em todas as esferas públicas, na atuação de todos os Poderes, para que ultrapasse a ideia de meros ideias e se transforme em efetivos direitos fundamentais. A consciência é um elemento humano sem a qual a própria dignidade humana queda comprometida.

A garantia de prestação alternativa é consequência do direito de objeção de consciência quando houver obrigação imposta a todos. Não é opcional. O Estado, no exercício de suas atividades, deve garantir a todos que, por motivo de crença, posição filosófica ou posicionamento político, se escusarem de um dever legal geral, haja uma opção viável para o indivíduo. Impor uma obrigação e não dispor de alternativa é tolher o direito a essa, bem como o direito de liberdade de consciência, protegido como cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, CR/88[62]). Caso não haja tal opção, exigida por norma constitucional, ninguém poderá ser privado de direitos, leciona a Carta Maior.

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Sobre a autora
Lorena Ferreira de Araújo

Advogada | Doutoranda e Mestra em Direito Privado | Pós-Graduanda Lato Sensu em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Lorena Ferreira. Dia sagrado e educação:: direito de liberdade religiosa no acesso à educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6124, 7 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80863. Acesso em: 5 mai. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito na Universidade Católica de Pernambuco (Recife, 2016). Orientador: Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos.

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