Capa da publicação Dia sagrado e a educação: o direito à liberdade religiosa no ensino
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Dia sagrado e educação:

direito de liberdade religiosa no acesso à educação

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07/04/2020 às 10:30
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4. A GARANTIA DA LIBERDADE RELIGIOSA E DE CULTO NO DIA SAGRADO

4.1. Estudantes, Sábado e Legislação brasileira infraconstitucional

A Educação, no Brasil, é tema de relevância constitucional e foi detalhado por Lei Ordinária Nacional[63], decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, em 20 de dezembro de 1996, estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional. A referida norma é a Lei nº 9.394[64] e prevê as seguintes regras sobre a carga horária regular:

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: I – a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver; […] VI – o controle de frequência fica a cargo da escola, conforme o disposto no seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a frequência mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação; […]. [grifo nosso]

Art. 31. A educação infantil será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013) […] II – carga horária mínima anual de 800 (oitocentas) horas, distribuída por um mínimo de 200 (duzentos) dias de trabalho educacional; (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) III – atendimento à criança de, no mínimo, 4 (quatro) horas diárias para o turno parcial e de 7 (sete) horas para a jornada integral; (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) IV – controle de frequência pela instituição de educação pré-escolar, exigida a frequência mínima de 60% (sessenta por cento) do total de horas; (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013) […].[grifo nosso]

Art. 47. Na educação superior, o ano letivo regular, independente do ano civil, tem, no mínimo, duzentos dias de trabalho acadêmico efetivo, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver. […] § 2º Os alunos que tenham extraordinário aproveitamento nos estudos, demonstrado por meio de provas e outros instrumentos de avaliação específicos, aplicados por banca examinadora especial, poderão ter abreviada a duração dos seus cursos, de acordo com as normas dos sistemas de ensino. § 3º É obrigatória a frequência de alunos e professores, salvo nos programas de educação a distância. [grifo nosso]

Conforme os artigos acima extraídos da Lei de Diretrizes e Bases Nacional – LDBN, a educação básica, infantil e superior, são organizadas de forma a funcionar durante todo o ano letivo, sendo comum a essas a exigência de 200 (duzentos) dias letivos para o trabalho acadêmico efetivo. Quanto à educação infantil, também há previsão de turno parcial mínimo de 4 (quatro) horas e de turno integral mínimo de 7 (sete) horas, controlando o tempo de presença diária de crianças na escola. Não sendo essa a única exigência, para a educação infantil e básica, são também estabelecidas as cargas horárias mínimas de 800 (oitocentas) horas anuais, distribuídas durante o ano todo. A educação superior não é regida por uma legislação genérica, não tendo sido estabelecida, na LDBN, a carga horária mínima, nem o mínimo de dias de trabalho acadêmico.

A frequência é um requisito presente em todos os níveis da educação, seja na infantil, seja na básica ou mesmo na superior. Para a educação básica, está prevista a frequência mínima escolar de 75 (setenta e cinco) por cento do total de horas. A frequência mínima da educação infantil é de 60 (sessenta) por cento do total. No que diz respeito ao ensino superior, apesar de não constar, expressamente, texto de lei – estando em tramitação na Câmara dos Deputados uma proposta[65] –, a Resolução nº 4, de 16/9/86[66], do extinto Conselho Federal de Educação, prevê, no artigo 2º, a reprovação do “aluno que não cumprir a frequência mínima de 75% (setenta e cinco por cento) às aulas e demais atividades escolares de cada disciplina, sendo-lhe, consequentemente, vedada a prestação de exames finais e da 2ª época”.

No que diz respeito à obrigatoriedade da frequência escolar, contudo, não é uma previsão absoluta, mas relativa, pois não se pode retirar de sua disposição a sua finalidade e os objetivos maiores que digam respeito à vida escolar. A finalidade citada é a de promover a educação de crianças, adolescentes e jovens, garantindo, por meio de medidas legais, a sua participação e presença no ensino. Entretanto, quando se analisa que existem motivos externos, sejam permanentes ou provisórios, inviabilizadores da presença regular do estudante, torna-se evidente que a frequência não é a medida mais eficaz e nem o único instrumento capaz de garantir a participação acadêmica. Tanto é assim que, no ordenamento jurídico pátrio, a título exemplificativo, há o Decreto-Lei nº 1.044, de 21 de outubro de 1969[67], que traz o teor do regime de compensação de ausências para os alunos de qualquer nível de ensino portadores de afecções congênitas ou adquiridas, infecções, traumatismo ou outras condições mórbidas, determinando distúrbios agudos ou agudizados, bem como a Lei nº 6.202, de 17 de abril de 1975[68], que atribui à estudante em estado de gestação o regime de exercícios domiciliares instituído pelo decreto anteriormente citado. Sendo assim, é possível concluir que o próprio Estado já reconheceu que a obrigatoriedade da frequência, embora seja medida eficaz no controle da presença e envolvimento estudantil, contribuindo para a melhoria da educação nacional, deve ser passível de alterações ao se deparar com situações excepcionais que emergem da sociedade.

Partindo dessa perspectiva do Legislador nacional, é possível entender a iniciativa de alguns Estados-membros em legislar sobre a condição de religiosos que, por vezes, se encontram em contextos adversos em virtude de aulas e exames, inclusive provas de concurso públicos, em dia considerado sagrado para determinados grupos religiosos[69]. Esses Estados, por processo legislativo próprio, esforçaram-se por definir os critérios gerais a serem seguidos por todos, para que os direitos de minorias pudessem ser respeitados e que todos, com igual oportunidade, tivessem acesso à educação, sem barreiras ou dificuldades ocorridas em virtude de crença, e à candidatura em provimento de cargos públicos, por meio de concursos. É o caso, por exemplo, do Estado do Pará[70], de São Paulo[71], do Paraná[72], de Santa Catarina[73], do Estado do Rio Grande do Sul[74] e de Rondônia[75].

Tema de importância nacional, a regularização da situação de estudantes religiosos também foi aprovada na Câmara dos Deputados[76], tramitando, atualmente, no Senado Federal[77], e aguardando a sua apreciação. Essa lei, se aprovada e publicada, permitirá que os estudantes gozem do direito de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de prova ou de aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades, devendo-se lhe atribuir, a critério da instituição e sem custos para o aluno, prestação alternativa prevista pela mesma lei, consoante disposição constitucional. Dessa forma, cada estudante, independentemente de etnia, cultura ou religião, terá acesso à educação de forma equânime, permitindo que o direito de liberdade religiosa permaneça intacto ante o direito à educação.

4.2. Estudantes, Sábado e Ministério da Educação

Paralelamente às discussões do Poder Legislativo, em suas diferentes esferas, o Ministério da Educação vem, ao longo do tempo, emitindo pareceres para regulamentar as situações de conflito existentes, de acordo com sua interpretação da legislação em vigor. Vejamos:

[…] Assim, os estudantes que, por motivos religiosos, não puderem comparecer às aulas em certos dias da semana, terão de receber faltanão havendo amparo legal para o abono desta. É de se esperar que, devidamente justificada a ausência, a Faculdade propicie prova substitutiva para a avaliação do aproveitamento, entretanto, não poderá abonar a ausência, para o fim de apuração de assiduidadeCertamente conviria que lei viesse a regular o abono de faltas em tal caso – o de falta em razão de culto religioso – mas até lá outra não pode ser a resposta à consulta formulada […]. (Parecer CFE nº 430/1984[78] – Consulta sobre que procedimento adotar com relação a fastas de alunos adventistas às aulas, em razão do culto religioso.) [grifo nosso]

[…]Diante do exposto, considerando-se a relatividade do tempo e a convencionalidade das horas sob a forma de construção sócio-histórica e a necessidade de marcadores do tempo, comuns a todos e facilitadores da vida social, considerando-se a clareza dos textos legais, não há amparo legal ou normativo para o abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido às convicções religiosas […]. (Parecer CNE/CEB nº 15/1999[79] – Consulta sobre legislação pertinente ao tratamento diferenciado a aluno frequentador da Igreja Adventista do Sétimo Dia.) [grifo nosso]

[…]Entende a Relatora que a iniciativa de compor turmas específicas destinadas a alunos adventistas representaria uma espécie de reserva de vagas, o que fere o princípio da igualdade de condições de acesso e permanência na escola, consagrado no artigo 206, da Constituição. Entende, ainda, a Relatora que a Instituição poderia apresentar projeto propondo a criação do turno diurno, com novas vagas ou com parte das vagas autorizadas para o turno noturno, sem contudo destinar tais vagas a essa clientela específica. Tais vagas seriam destinadas a quaisquer interessados que desejassem estudar no período diurno […]. (Parecer CNE/CES nº 336/2000[80] – Consulta sobre a criação de turma no turno diurno para atender alunos adeptos da religião adventista.) [grifo nosso]

[…] Em face de todo o exposto, manifesto-me no sentido de que não há amparo legal ou normativo para o abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas por motivos religiosos […]. (Parecer CNE/CES/224/2006[81] – Consulta sobre abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido a convicções religiosas.) [grifo nosso]

Apesar da posição rígida do CNE destacada acima, há importante declaração da Conselheira Maria Izabel Azevedo Noronha, emitida no Parecer CNE/CEB nº 19/2009[82], sobre a reorganização dos calendários escolares, no período da epidemia da “gripe A”, dissertando acerca da finalidade da lei que rege a educação brasileira, consoante se transcreve no seguinte trecho:

[…] Ademais, é importante observar que o processo ensino-aprendizagem não se desenvolve com base no número de dias letivos, embora haja previsão legal neste sentido; mas que, na realidade, os alunos têm seus estudos organizados com base em horas-aula, assim como os salários dos professores são calculados também com base em horas-aula. A hora-aula é, portanto, a unidade que compõe a totalidade dos 200 dias letivos exigíveis pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nosso apreço pela qualidade do ensino deve nos levar a que, em qualquer situação onde não seja possível cumprir de maneira eficaz os 200 dias letivos, sejam evitadas quaisquer medidas que, afinal, criem apenas um efeito enganoso para a população, sem assegurar ao aluno o efetivo aproveitamento dos conteúdos curriculares. Desta forma, é necessário estabelecer um diálogo com a comunidade para buscar a melhor maneira de cumprir, com qualidade, tais conteúdos. Qualquer solução encontrada, entretanto, tem que estar de acordo com o projeto político-pedagógico da unidade escolar. É importante ressaltar que, sob o ponto de vista sociológico, o tempo não é apenas algo matemático e quantitativo, mas, sobretudo, alguma coisa que se institui a partir de determinadas exigências que são sociais; ou melhor, essa outra concepção temporal parte do pressuposto de que o tempo é, por princípio, uma instância de regulação social que ordena os próprios acontecimentos sociais. Assim, pode haver flexibilidade na organização do tempo escolar, desde que a questão esteja contemplada no projeto político-pedagógico da escola, discutido e decidido pelo conselho de escola, para que todas as disciplinas e atividades necessárias à formação integral do aluno possam ser contempladas. Que o cumprimento do trabalho educacional com o aluno deve ter como foco central a íntegra dos conteúdos previstos no projeto político-pedagógico. O que deve estar no centro, portanto, numa situação atípica como a que vivemos, não é o mero cumprimento da norma legal ao pé da letra, como uma camisa-de-força, mas a salvaguarda do direito dos nossos alunos a um ensino de qualidade. Diante do exposto, é forçoso que se reconheça que os Estados-membros e seus Municípios, quando resolveram adiar o início das atividades acadêmicas previstas para o segundo semestre letivo no presente ano, o fizeram em virtude de ocorrência de motivo de força maior, que é causa que exclui a ilicitude. Levando-se em conta que nenhuma norma que confere direitos é construída para não ser exigível de bom grado por aqueles para as quais elas são destinadas, fica evidenciado que não há razoabilidade na exigência meramente burocrática do cumprimento de 800 (oitocentas) horas e 200 (duzentos) dias letivos, ainda mais quando se leva em conta o motivo exposto neste voto. […]

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Cumpre, também, destacar que, enquanto não há a aprovação da lei que definirá a frequência mínima obrigatória nos cursos superiores, consoante destacado no tópico 4.1, as instituições de ensino superior seguem as recomendações dos pareceres do CNE, a saber os Pareceres CNE/CES  282/2002[83] e 224/2006[84]. Vejamos:

Parecer CNE/CES 282/2002:

 2.5.5. Frequência obrigatória.

Nos cursos de natureza presencial, a frequência docente às atividades acadêmicas é obrigatória, nos termos do disposto no art. 47, § 3°, da LDB. O regimento deve dispor sobre tal obrigatoriedade e sobre as sanções para a inobservância. Segundo também o art. 47, § 3°, da LDB, a frequência discente às atividades acadêmicas é obrigatória. Recepciona-se, à falta de regulamentação posterior à LDB, o regime legal anterior, que dispunha sobre frequência mínima discente de 75% para garantir aproveitamento.

Parecer CNE/CES 224/2006:

Frequência

A frequência do aluno aos cursos de graduação é obrigatória?

R.: O art. 47, § 3º, da Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, dispõe que é obrigatória a frequência de alunos e professores, salvo nos programas de educação a distância, que se regem por outras disposições.. Não existe legalmente abono de faltas. É admitida, para a aprovação, a frequência mínima de 75% da frequência total às aulas e demais atividades escolares, em conformidade com o disposto na Resolução nº 4, de 16/9/86, do extinto Conselho Federal de Educação.

Em virtude da ausência de lei específica e na urgência pela regulamentação dos casos concretos, o Estado-Administração tem se posicionado favoravelmente a suas instituições, considerando, inflexivelmente, que os estudantes que se ausentam regularmente por motivo religioso devem se adequar às normas em vigor, entendendo não haver amparo legal para seus reclames. Nesse posicionamento, a liberdade religiosa cede lugar para o acomodamento das normas administrativas sob o manto de uma isonomia idealizada, de uniformidade populacional. O que se vê, no caso concreto, é que a omissão do Legislador gera insegurança jurídica e tolhimento injustificado e irracional de direitos constitucionalmente protegidos.

4.3. Estudantes, Sábado e Poder Judiciário

O tratamento judicial dos estudantes religiosos que santificam o sábado como dia de descanso tem uma projeção significativa nas cortes superiores e, inclusive, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com decisões controversas. Passa-se a analisá-las.

O Conselho Nacional de Justiça mantém um entendimento bastante rígido e negativo no que diz respeito à diversidade e adaptação às variadas manifestações culturais quando diz respeito à oportunidade de minorias terem acesso às mesmas garantias dos demais, adequando-se às suas necessidades, como é o caso, por exemplo, de concessão de horário diferenciado para candidatos em concursos públicos que optem, por questão religiosa, em realizar a prova após o pôr-do-sol[85]. É o que se pode concluir das seguintes decisões:

1. Adoto o bem lançado relatório do Conselheiro Fabiano Silveira, in verbis: O requerente, candidato no concurso para Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, classificado para a segunda fase do certame, requer condição especial para realização da prova discursiva, invocando sua crença religiosa, que considera o sábado um dia santo, dedicado à adoração a Deus. Afirma que sua convicção religiosa não permite atividades cotidianas desde o pôr do sol de sexta-feira até o pôr do sol de sábado, porém seu pedido para realizar a prova em horário diverso foi negado pela comissão do concurso. Discorreu sobre a proteção constitucional à sua liberdade de crença e que pretende apenas iniciar a prova após o pôr do sol, ficando incomunicável até este horário. Solicitei informações ao Tribunal que, em resposta, juntou a decisão exarada em outro pedido idêntico, onde foi indeferida a pretensão do candidato, sob o argumento de que a realização de provas em horários diferenciados fere os princípios da legalidade e da impessoalidade, consoante decidiu o STJ. […] 4. Dessa forma, seguindo o precedente desta Casa, bem como a jurisprudência da Suprema Corte, a medida liminar, apesar de o candidato já ter realizado a prova, não deve ser ratificada para manter alinhadas a jurisprudência deste Conselho com a do STF. 5. Ante o exposto, divirjo do Conselheiro Relator e voto pela não ratificação da liminar. (CNJ – ML – Medida Liminar em PP – Pedido de Providências – Conselheiro – 0003657-86.2014.2.00.0000 – Rel. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA – 195ª Sessão – j. 16/09/2014 – Precedentes Citados: CNJ Classe: PCA – Procedimento de Controle Administrativo – Processo: 0005544-13.2011.2.00.0000 – Relator: JOSÉ ROBERTO NEVES AMORIM; STF Classe: AgR – Processo: 389 – Relator: Min. GILMAR MENDES).[86] [grifo nosso]

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NA CARREIRA DA MAGISTRATURA. DATA DE REALIZAÇÃO DA PROVA SUBJETIVA EM UM SÁBADO. ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. ALTERAÇÃO DO HORÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Trata-se de Procedimento de Controle Administrativo instaurado por Julival Silva Rocha contra ato do Presidente da Comissão do XIX Concurso Público para Provimento de Cargos de Juiz de Direito Substituto do Estado de Rondônia que agendou a prova da segunda etapa do certame para um sábado. Requer permissão para que chegue no mesmo horário que os demais candidatos e que fique aguardando, incomunicável e sob vigilância, a fim de que possa fazer a prova após o pôr do sol. 2. Em manifestação da maioria do Plenário do STF, em sede ainda de juízo de delibação, a Corte Suprema não acolheu a pretensão de se realizar provas em horários diferenciados. 3. Essa interpretação é corroborada pela jurisprudência dos Tribunais internacionais, como nos Estados Unidos (Employment Div. V. Smith); na Comissão Europeia de Direitos Humanos (Chappel v. United Kingdom) e na Corte Européia de Direitos Humanos (Valsamis anda Efstratiou v. Greece). 4. Ainda que se alegue que, em Rondônia, há lei estadual garantido aos adventistas a prerrogativa de não realizar provas aos sábados, há decisões do Tribunal de Justiça que a relativizam o que, em tese, poderia servir de fundamento para a decisão denegatória contra o requerente. 5. Procedimento de Controle julgado improcedente. (CNJ – PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0005544-13.2011.2.00.0000 – Rel. NEVES AMORIM – 144ª Sessão – j. 26/03/2012).[87] [grifo nosso]

A primeira decisão acima toma como base a segunda citada. Por essa razão, passa-se a destrinchar apenas a segunda decisão. Essa, por sua vez, tem como fundamento decisão do STF que trata de dia alternativo e não horário diferenciado. Pelo inteiro teor da decisão do STF, claramente os ministros apoiam o horário diferenciado e não votam, por hora, a favor do dia alternativo. Precedente equivocado para a decisão do CNJ. Por outro lado, a segunda decisão, consoante se apura do inteiro teor, também se baseia em processos e julgamentos em cortes e comissões estrangeiras e internacionais, que, perceptivelmente, tendem a ser mais equilibrados em suas decisões, respeitando o direito dos diferentes na medida de suas diferenças, conforme o comentário do tópico 3.2 deste trabalho.

A segunda decisão apontada do CNJ também se utiliza do termo “normas neutras”. Apesar de não ter desenvolvido o significado de tal expressão, é necessário entender, como exaustivamente exposto nas linhas acima, que o Direito bem como o Estado não estão imunes e nem afastados da sociedade, sendo uma criação cultural, tendo por valores máximos os direitos do povo. Nesse sentido, é difícil compreender uma concepção racional de “normas neutras” sem infringir direitos, sobretudo de minorias.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, vem se mantendo passivo nessas discussões, sendo pragmático e, por vezes, puramente legalista, apresentando decisões que pouco contribuem para o avanço do entendimento, mas também que não o impede. Em ordem cronológica, tem-se o recurso em Mandado de Segurança nº 16.107 – PA (2003/0045071-3 de 01/08/2005[88]) que negou provimento ao pedido por entender não existir direito líquido e certo por lei e nem no edital para conceder oportunidade diferenciada aos diferentes. Mais adiante, tem-se o recurso em Mandado de Segurança nº 37.070 – SP (2012/0020565-0 de 10/03/2014[89]) que entendeu pelo necessário cumprimento da lei estadual de São Paulo nº 12.142/2005[90] por não haver declaração de inconstitucionalidade da mesma, sendo favorável à liberdade religiosa do estudante. Um pouco mais a frente, foi a vez do REsp nº 1560555/RS (2015/0254678-5[91]), autuado em 08/10/2015, e do AREsp nº 503969/SE (2014/0089703-9[92]), autuado em 25/04/2014, não prosperando os argumentos dos opositores, nos casos concretos, ao direito de liberdade de religião, que tentaram impedir o cumprimento das decisões favoráveis do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO e do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO, respectivamente, tendo sido fundamentados os votos dos Ministros do STJ em questões meramente processuais, pouco se adentrando no mérito.

Em tempos de possível promulgação de lei que garanta a liberdade religiosa de estudantes que santificam o sábado como dia de descanso [vide tópico 4.1], o Supremo Tribunal Federal não se distanciou da discussão e está em andamento o processo de julgamento de casos concretos de estudantes nessa situação. A Corte Suprema foi provocada algumas vezes, sobretudo quando o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) foi estabelecido como prova universal, abrangendo todos os cursos superiores, tendo sido decidido, administrativamente, os dias de sábado e domingo como dias do citado exame.

Nesse contexto, milhares de jovens judeus, adventistas, batistas do sétimo dia, entrou outros, tiveram um dilema cruel para enfrentar, sendo conflitada a sua crença e o direito de acesso ao ensino superior. É importante entender que este assunto foi e continua sendo de temática geral, em virtude de atingir uma parcela da sociedade que está diante de uma decisão administrativa de efeito geral, sendo necessário um juízo detalhado sobre as consequências de decisões como esta. E essa escolha do Poder Executivo quanto ao ENEM é apenas um reflexo das milhares de deliberações administrativas públicas e privadas que ocorrem em todo o país[93], ficando demonstrada a repercussão geral da matéria e a necessidade de análise pelo STF. Diante disso, passa-se a transcrever fragmentos de algumas decisões:

LIMINAR EM SUSPENSÃO DE IDÊNTICA MEDIDA – EXCEPCIONALIDADE NÃO VERIFICADA. 1. Observem-se os parâmetros da espécie. A medida acauteladora implementada e que se pretende afastada do cenário jurídico envolve um único candidato. Soma-se a essa diminuta extensão a circunstância de haver sido formalizada presente a razoabilidade. Ante a crença religiosa do beneficiário – Adventista do Sétimo Dia –, impõe-se-lhe “guardar” o sábado. Daí o Judiciário, de forma precária e efêmera, haver assegurado a feitura da prova em horário diverso do designado, ficando imposta a cabível incomunicabilidade. A conclusão é única – o risco de alguma perda é, unicamente, do candidato, caso não frutifique, alfim, a impetração. 2. Indefiro a liminar suspensiva. 3.  Estabeleça-se o inafastável contraditório. Uma vez ultimado, colha-se o parecer da Procuradoria Geral da República. 4. Publique-se. (SS 2144 / DF – DISTRITO FEDERAL; SUSPENSÃO DE SEGURANÇA; Relator(a): Min. PRESIDENTE; Julgamento: 18/04/2002; Decisão Proferida pelo(a): Min. MARCO AURÉLIO; Publicação: DJ 25/04/2002)[94][grifo nosso]

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembleia Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas; bem como, no caso das particulares, invade competência legislativa privativa da União. Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual n.º 11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente garantida a tais organismos educacionais. Ação julgada procedente. (ADI 2806-5, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 23/04/2003, DJ 27-06-2003 PP-00029 EMENT VOL-02116-02 PP-00359 RTJ VOL-00191-02 PP-00479)[95][grifo nosso]

EMENTA: Agravo Regimental em Suspensão de Tutela Antecipada. 2. Pedido de restabelecimento dos efeitos da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat 3. Alegação de inobservância ao direito fundamental de liberdade religiosa e ao direito à educação. 4. Medida acautelatória que configura grave lesão à ordem jurídico-administrativa. 5. Em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso 6. Decisão da Presidência, proferida em sede de contracautela, sob a ótica dos riscos que a tutela antecipada é capaz de acarretar à ordem pública 7. Pendência de julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 391 e nº 3.714, nas quais este Corte poderá analisar o tema com maior profundidade. 8. Agravo Regimental conhecido e não provido. (STA 389 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2009, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-01 PP-00001 RTJ VOL-00215-01 PP-00165 RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135)[96][grifo nosso]

Na primeira decisão citada, à época, foi entendido que a deliberação da segurança em favor do candidato adventista ainda era efêmera e precária e que, diante da diminuta extensão do caso e da presença da razoabilidade na formalização, o Ministro Marcos Aurélio decidiu que o risco de alguma perda era do candidato, indeferindo a liminar suspensiva da liminar em Mandado de Segurança. Nessa decisão a preocupação do julgador era com a extensão e importância do feito e com a presença da razoabilidade no caso concreto.

A segunda decisão da Corte Suprema, na presidência do Ministro Marcos Aurélio, sem grandes discussões ou aprofundamento, se valeu do entendimento de que leis estaduais, em matéria de ensino público, são de iniciativa privativa do Chefe do Executivo estadual, sendo o ensino das escolas privadas matéria privativa da União. Ademais, acenou seu entendimento de que essa disposição infraconstitucional estadual quanto às universidades violaria a garantia constitucional de autonomia destas. Frise-se o juízo do Ministro Sepúlveda Pertence de que tais leis teriam conteúdo inconstitucional, concluindo que normas como tais seriam desarrazoáveis e que feririam o bom andamento da Administração Pública.

No terceiro julgamento, por outro lado, vê-se uma Corte mais disposta a discorrer, com profundidade, sobre o tema. Entendeu o STF, nessa ocasião, que o direito de horário alternativo, no ENEM, estaria em consonância com os princípios constitucionais, mas que a mudança para um dia diferente, por hora, soara desproporcional e não isonômico. Destaque-se o voto do Ministro Gilmar Mendes – que esteve presente também na segunda decisão mencionada –, trazendo à tona a importância e complexidade do tema, que deverão ser estudados com mais acuidade nos processos em andamento, quais sejam, a ADI 3714/SP[97] de atual Relatoria do Ministro Teori Zavascki e a ADI 3901/PA de atual Relatoria do Ministro Edson Fachin[98]. Frise-se, ainda, o emblemático voto do Ministro Marcos Aurélio que resume, com grande maestria, o que se entende por liberdade religiosa e quais os reclames da Constituição para a sua proteção. Senão, vejamos um fragmento:

[…] Atuou no campo da razoabilidade, da proporcionalidade? A meu ver, não. Não atuou. Manteve o ato e o exame poderia ocorrer em qualquer dia da semana: segunda, terça, quarta, quinta – excluída a sexta –, tendo em conta o islamismo. […] Presidente, estamos diante de situação concreta em que a obrigação não decorreu de lei, mas sim de ato administrativo. Situação em que possível seria encontrar um denominador comum, para não se ter possível arranhão à Carta da República, quanto à liberdade religiosa e à preservação de direitos, tudo isso a partir de óptica distorcida referente a essa mesma liberdade. Creio que as peculiaridades do caso precisam, na conciliação de valores, e devem ser consideradas. Tanto quanto possível, há de partir-se para o empréstimo de concretude maior às garantias constitucionais. E seria possível ter-se a assunção de postura compatível com a Carta da República, com a preservação da liturgia própria deste ou daquele segmento religioso. […] No tocante ao tema de fundo do agravo, provejo-o para restabelecer a decisão do Regional Federal, no que determinou que se observasse a cláusula final do inciso VIII do artigo 5º, a revelar que se deve, sempre, prever prestação alternativa. A prestação alternativa, mais do que viável, seria a designação do exame para dia útil, dia de atuação normal, tendo em conta os diversos segmentos da sociedade. É como voto. [grifo nosso]

Não é certa a promulgação da lei que garante ao estudante e candidato a cargo público o respeito à garantia constitucional de objeção de consciência e prestação alternativa, tampouco o entendimento por sua constitucionalidade, mas o STF se prepara para discutir tais temas e tomar decisões mais firmes e influenciadoras sobre o assunto. Há, ainda, muita discussão sobre a relação do direito de liberdade religiosa e o direito ao acesso à educação, bem como a garantia constitucional de autonomia das instituições de ensino superior. O fato é que a Suprema Corte reconheceu a repercussão geral da matéria, no RE 611874[99], com a Relatoria atual do Ministro Dias Toffoli, e discutirá, em breve, com minuciosidade, os direitos envolvidos e as consequências possíveis. Eis a ementa do recurso:

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PRETENDIDA AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE ETAPA DE CONCURSO PÚBLICO EM HORÁRIO DIVERSO DAQUELE DETERMINADO PELA COMISSÃO ORGANIZADORA DO CERTAME POR FORÇA DE CRENÇA RELIGIOSA. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS EM CONFLITO. MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. (RE 611874 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 14/04/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-02 PP-00275 )

É perceptível que se está em um cenário de transformação e de discussão mais profunda e esclarecida, de modo que as tomadas de decisões estejam firmemente respaldadas no ordenamento pátrio. O Brasil, avançando em seus debates, tem acompanhado as discussões internacionais e tem lutado por ser um Estado mais protetor.

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Sobre a autora
Lorena Ferreira de Araújo

Advogada | Doutoranda e Mestra em Direito Privado | Pós-Graduanda Lato Sensu em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Lorena Ferreira. Dia sagrado e educação:: direito de liberdade religiosa no acesso à educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6124, 7 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80863. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito na Universidade Católica de Pernambuco (Recife, 2016). Orientador: Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos.

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