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Acidentes de trabalho em massa: responsabilidade civil do empregador na reparação do dano moral coletivo

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17/04/2020 às 17:55
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No caso dos acidentes em massa, a evolução do regime de responsabilidade civil possibilitou o reconhecimento do dano moral coletivo, haja vista que as tragédias trabalhistas agridem não somente os trabalhadores envolvidos, mas a sociedade como um todo.

RESUMO: As novas formas de organização do trabalho têm sido responsáveis pela massificação dos sinistros laborais. O acidente de trabalho não atinge apenas a vítima: projeta-se em sua família e tem reverberações emocionais e econômicas na sociedade como um todo. Nestes casos, doutrina e jurisprudência têm debatido qual das espécies de responsabilidade civil deveria ser aplicada ao empregador: a subjetivação da responsabilidade ou o enfoque dos sinistros laborais à luz da teoria do risco. No caso dos acidentes em massa, a evolução do regime de responsabilidade civil possibilitou o reconhecimento do dano moral coletivo, haja vista que as tragédias trabalhistas agridem não somente os trabalhadores envolvidos, mas o ordenamento jurídico como um todo, provocando revolta e consternação na sociedade. Desta forma, investigar os lastros legais e teóricos da responsabilidade civil é fundamental para descobrir quais soluções ela pode oferecer na perspectiva reparatória dos acidentes coletivos.

Palavras-chave: Acidentes coletivos. Dano Moral. Responsabilidade civil. Responsabilidade do empregador. Teoria do risco.


1 INTRODUÇÃO

Acidentes e tragédias sempre fizeram e farão parte da história da civilização. O saudoso ministro Mozart Russomano, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, costumava a dizer que “como a vida é mais inteligente que o homem, a lei e a técnica, por mais perfeita que sejam, não podem impedir que ocorram acidentes” (RUSSOMANO, 1961, p. 190).

É verdade que a Revolução Industrial marca uma importante virada histórica, aumentando a renda média, o padrão e a qualidade de vida da população em geral. Ao mesmo tempo, as novas formas de organização do trabalho que dela emergiram têm sido responsáveis, em grande medida, pela sinistralidade laboral massiva e sistemática que caracterizou o mundo do trabalho nos últimos dois séculos (PINTO, 1996).

Muitas vezes, o indelével dano sofrido em um acidente profissional não fica restrito ao trabalhador acidentado: atinge sua família e produz reverberações na esfera social. Acresça-se a isso o fato de que a queda de produtividade nos ambientes de trabalho em que ocorrem acidentes é evidente e inevitável, seja pelo afastamento do acidentado, seja pelas transformações no clima organizacional impactado pela ocorrência (MORAIS, 2018).

O fenômeno acidentário também acarreta, em escala nacional, consideráveis prejuízos previdenciários e econômicos (HASSON & LAVALLE, p. 3). De acordo com dados[1] do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, entre 2012 e 2019, a Previdência Social gastou cerca de 83 bilhões de reais com benefícios acidentários (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio-acidente). Neste mesmo período, foram registradas 4,7 milhões de ocorrências envolvendo trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, sendo que 17.443 foram fatais.

Na visão do ilustre Desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira, em sua formidável obra ‘Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional’, “a questão fica ainda mais incômoda quando já se sabe que a implementação de medidas preventivas — algumas bastante simples e de baixo custo — alcança reduções estatísticas significativas, ou seja, economiza vidas humanas” (OLIVEIRA, 2018, p. 31).

Sabemos que não se pode evitar todo e qualquer incidente trabalhista, pois, como lembrou recentemente o Professor Doutor João Areosa, no Seminário Internacional sobre Grandes Acidentes do Trabalho, “o risco zero não existe”[2]. Portanto, será necessário reparar o mal, nos casos em que o trabalhador acidentado não se recuperar inteiramente.

Assim, quando a vítima é incapaz de voltar a exercer sua profissão original, deve ser buscada a sua reabilitação profissional, à qual a Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios da Previdência Social - LBPS) dedicou vários dispositivos, notadamente os artigos 62[3] e 89[4]. Além de ter acesso aos tratamentos necessários, o acidentado, reabilitado ou não, também terá direito à percepção do auxílio-acidente (a título de indenização) previsto no artigo 86[5] da Lei 8.213/91, com fincas a compensar, ao menos teoricamente, os prejuízos sofridos em virtude do sinistro.

Todavia, é óbvio e ululante que a proteção previdenciária não é plena. Do ponto de vista da infortunística[6], o trabalhador ficaria, a priori, desguarnecido em aspectos como lucros cessantes e danos emergentes. Nesta linha, esclarecem CASTRO & LAZZARI (2017, p. 419):

“Por esta razão, o constituinte de 1988 manteve a responsabilidade civil do empregador, independentemente do seguro de acidentes de trabalho e a consequente proteção pelo regime previdenciário. Havendo culpa do empregador, no campo da responsabilidade civil, o indivíduo pode postular em Juízo uma reparação maior, com pretensão de restitutio in integrum – incluindo então as perdas e danos decorrentes da morte, lesão corporal ou perturbação funcional.”

Neste sentido, o ordenamento jurídico pátrio consagrou o entendimento de que a indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa do empregador. Doutrina e jurisprudência analisam e debatem qual das espécies de responsabilidade civil deve ser aplicada ao empregador nos casos de acidentes de trabalho (SILVA, 2012, p. 8). Conforme veremos adiante, haverá a possibilidade de responsabilidade subjetiva, com fulcro no artigo 7º, inciso XXVIII, da Carta de 1988, ou a perspectiva de aplicação da responsabilidade objetiva, prevista artigo 927 do novo diploma civil e fundamentada na teoria do risco.

Nos últimos anos, a evolução jurisprudencial e doutrinária do regime da responsabilidade civil tem consolidado a devida tutela nos casos de acidentes de massa, viabilizando o reconhecimento do instituto do dano moral coletivo (MEDEIROS NETO, 2012, p. 303). Acidentes em massa, como as tragédias ocorridas em Mariana e Brumadinho, agridem não apenas os trabalhadores envolvidos e suas famílias, mas o ordenamento jurídico como um todo, provocando indignação e repulsa na sociedade. Portanto, é preciso considerar, na esfera reparatória dos acidentes coletivos, a ofensa a valores éticos fundamentais da coletividade.

Desta forma, deve-se examinar em que medida são aplicáveis os sistemas de responsabilidade previstos pelo Código Civil de 2002, harmonizando suas premissas com os preceitos constitucionais e com as leis ordinárias que garantem os direitos do trabalhador, sobretudo no âmbito da coletividade, cuja dignidade e padrão ético possuem, segundo a Ministra Nancy Andrighi[7] “natureza extrapatrimonial, pois seu valor econômico não é mensurável”.

Para proceder essa análise, desenvolveremos as noções necessárias para a compreensão do tema, notadamente o conceito e as modalidades de acidente do trabalho, de forma a delimitar suas características e fundamentos legais. Num segundo momento, faremos uma síntese da responsabilidade civil e de como ela tem sido aplicada no Direito Trabalhista para abordar a sinistralidade laboral, demonstrando a teoria do risco e os debates sobre sua aplicação. Por fim, analisaremos em que medida a violação a direitos difusos e coletivos pode ensejar a lesão de valores extrapatrimoniais de uma dada coletividade, bem como as perspectivas reparatórias nestes casos, especialmente à luz da teoria do risco.


2 ACIDENTE DE TRABALHO

De acordo com a Lei de Benefícios e Previdência Social (Lei nº 8.213 de 1991), o acidente do trabalho é um evento social de conteúdo genérico, que abrange o acidente típico, previsto no art. 19, as moléstias ocupacionais (descritas no art. 20) e as demais equiparações legais elencadas no art. 21 da mesma lei.

Acidente típico

O acidente típico é caracterizado pela lesão corporal ou psíquica resultante da ação súbita, fortuita e violenta de uma causa exterior ou de um esforço desenvolvido pelo próprio lesado quando em trabalho. Segundo o caput do artigo 19 da Lei nº 8.213/1991, com redação dada pela LC nº. 150/2015:

“Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.”

Na lição de Mozart Russomano, “o acidente de trabalho é um acontecimento externo, violento, súbito e fortuito, vinculado ao serviço prestado pela vítima” (RUSSOMANO, 1981, p. 186).

Assumir que o acidente é gerado por um fato externo implica dizer que o dano que atingiu o indivíduo não era congênito nem preexistente. Isso não significa a impossibilidade de o fato ser gerado pela própria vítima. Para CASTRO & LAZZARI (2017, p. 414) “a partir da inclusão das prestações por acidente de trabalho no âmbito da Previdência Social, está-se diante da teoria do risco social, segundo a qual é devido o benefício, independentemente da existência de dolo ou culpa da vítima”.

RUSSOMANO (1981, p. 187) também o concebe como um fato de natureza violenta, na medida em que o acidente laboral fere a integridade física ou psíquica do indivíduo, tendo como resultado a incapacidade ou morte. Assim, o incidente que não gera danos à integridade do indivíduo não integra, portanto, o conceito. No sentido estrito do termo, deve-se ressaltar que o acidente do trabalho se equipara ao caso fortuito ou força maior, constituindo acontecimento imprevisível, cujo resultado não era desejado por nenhum dos agentes. Além disso, o evento que gera o infortúnio é abrupto, ou seja, transcorre durante curto lapso temporal, embora seus efeitos possam repercutir tempos após (as chamadas sequelas). Por isso, diz-se que o acidente de trabalho decorre de um fato súbito.

Sabe-se, também, que a culpa exclusiva da vítima é uma das causas excludentes da responsabilidade, não havendo que se falar em ressarcimento nesses casos. Não há que se impor ao empregador a responsabilidade de indenizar quando, pelo conjunto de provas dos autos, conclui-se que foi a própria vítima que, agindo por conta e risco, causou a si mesma acidente (LEMOS, 2018).

Doenças ocupacionais

O artigo 20 da lei nº 8.213/91 considera como acidente do trabalho as chamadas doenças ou moléstias ocupacionais. Para STEPHANES (1998, p. 219), tais moléstias são aquelas que “resultam de constante exposição a agentes físicos, químicos e biológicos, ou mesmo do uso inadequado dos novos recursos tecnológicos, como os da informática”.

O texto legal faz distinção entre doenças profissionais e do trabalho. As doenças profissionais, segundo o art. 20, I da Lei 8.213/91, são aquelas produzidas ou desencadeadas pelo trabalho, comuns a profissionais de certa atividade. Por exemplo, o saturnismo (intoxicação provocada pelo chumbo) e a silicose (sílica), muito comuns em trabalhadores da mineração.

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Já as doenças do trabalho, elencadas no art. 20, inciso II da Lei 8.213/91, não estão atreladas às atividades desempenhadas pelo trabalhador, mas às condições especiais sob as quais o trabalho é executado. É o caso de um segurança que exerce atividade em casa noturna cujo “som ambiente” supera os limites de tolerância. A atividade em si não gera doença ou incapacidade, mas, pelas condições em que exerce o seu trabalho, o empregado estará sujeito ao agente nocivo à sua saúde – ruído excessivo (CASTRO & LAZZARI, 2017, p. 415).

Acidente por equiparação

A Lei 8.213/91, em seu art. 21, tratou de equiparar alguns eventos a acidentes de trabalho, ainda que tais ocorrências não reunissem todos os elementos do acidente de trabalho típico. Como exemplo de eventos equiparados, podemos citar o acidente sofrido no local de trabalho, nos períodos destinados a descanso (Art. 21, § 1º). Neste caso, opera-se a equiparação no sentido de suprir a literalidade do termo “exercício do trabalho”. Ou seja, ainda que o funcionário, no momento do acidente, não estivesse literalmente exercendo a atividade laborativa, considerar-se-á o evento como acidente de trabalho.

Outros exemplos são aqueles danos sofridos em viagens a serviço da empresa (art. 21, IV, alínea a), ou os chamados “acidentes de trajeto”[8] (art. 21, IV, alínea d), ocorridos no percurso da residência do trabalhador até a empresa.

Como a lei traça normas gerais e abstratas, os casos concretos solucionados pelo Poder Judiciário ensejaram o desenvolvimento de um repertório jurisprudencial muito variado no que se refere aos acidentes por equiparação (CAIRO JR, p. 56).


3 DA INSUFICIÊNCIA DA PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA

Incumbe à União, através do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), gerir o sistema de seguros nos casos de incapacidade ou morte decorrentes de acidente de trabalho. Mensalmente, os empregadores recolhem, sobre a folha de pagamento, um determinado percentual, que varia[9] conforme o número de empregados da empresa. Em caso de incapacidade ou morte acidentária, INSS deve indenizar a vítima ou sua família com o pagamento de uma renda mensal de benefício. Neste caso, afirma José Cairo Júnior:

“Há uma simples transferência do risco do empreendimento para o segurador (INSS), através de uma determinação legal, que pode ser considerada como sendo representativa de um contrato de seguro obrigatório” (CAIRO JR, 2002, p. 80)

Desta forma, o empregador passou a ter a responsabilidade de resguardar a integridade física e emocional de seus empregados. RUSSOMANO (1961, pp. 191-192) entende que:

“A parte mais importante de nossa legislação sobre infortunística — do ponto de vista do empregado e da sociedade — se consubstancia naqueles dispositivos que visam a impedir que o acidente se desencadeie. O dano físico resultante do evento não é, apenas, um dano pessoal. Projeta-se na família da vítima e perturba a paz social, pois o grupo humano, para sobreviver e progredir, precisa do trabalho e da cooperação de seres válidos, capazes e sãos. Eis porque as normas sobre higiene e segurança do trabalho, que têm natureza preventiva, adquirem relevância social e caráter público.”

Todavia, a ausência de uma cultura de higiene e segurança do trabalho, associada à insuficiência de recursos financeiros e humanos nos órgãos fiscalizadores, tem feito com que a prevenção de acidentes não se dê nos níveis desejados. Para José Cairo Júnior:

“Como o prêmio do seguro transformou-se, através de um processo histórico-evolutivo, em um tributo do tipo contribuição social adicional, cobrado de forma impositiva, o responsável originário pela indenização decorrente do infortúnio laboral, qual seja, o empregador, por comodidade, deixou de adotar as medidas de segurança necessárias para evitar o sinistro.” (CAIRO JR, 2002, p. 80)

No mesmo sentido, Sebastião Geraldo de Oliveira explica que o entendimento que prevaleceu no século passado era de que a vítima ou seus dependentes faziam jus aos limitados benefícios garantidos pelas leis da previdência social:

“No entanto, as prestações decorrentes do seguro de acidente do trabalho são de caráter marcadamente alimentar, pois asseguram tão somente a sobrevivência da vítima ou da sua família. Não têm como objetivo a reparação do dano causado, de acordo com o princípio secular da restitutio in integrum, adotado reiteradamente no campo da responsabilidade civil.” (OLIVEIRA, 2018, p. 27)

Neste contexto de elevadas taxas de ocorrências acidentárias de insuficiência da legislação infortunística, o legislador constituinte[10] entendeu por bem não excluir a responsabilidade do empregador, nas hipóteses em que este agisse com culpa ou dolo. Nos últimos anos, essa possibilidade de reparação civil não apenas tem sido ratificada, como ampliada pelo direito pátrio, uma vez que setores da doutrina e da jurisprudência têm admitido a possibilidade de responsabilização objetiva do empregador.

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Sobre o autor
Otavio Morato de Andrade

Doutorando em Direito (UFMG). Possui mestrado em Direito (UFMG); pós-graduação em Direito Civil (PUC-MG); graduação em Direito (UFMG) e graduação em Administração (PUC-MG). Exerce a advocacia em Belo Horizonte, com ênfase em Direito Imobiliário, Direito Constitucional, Direito de Família e relações consumeristas. É autor do livro "Governamentalidade algorítmica: democracia em risco?", assim como de diversos artigos publicados nacional e internacionalmente, tratando das mais variadas áreas jurídicas. Ministrou aulas, palestras e conferências no campo do Direito Civil. É parecerista das Revistas Direito em Debate e E-Civitas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORATO, Otavio Andrade. Acidentes de trabalho em massa: responsabilidade civil do empregador na reparação do dano moral coletivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6134, 17 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81215. Acesso em: 24 dez. 2024.

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Artigo originalmente publicado na Revista do TRT3

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