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Evasão de divisas e bitcoin à luz da jurisprudência do STJ

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23/04/2020 às 12:15
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REGULAMENTAÇÃO DO BITCOIN E SUA RELAÇÃO COM O CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS:

 

 As  criptomoedas podem configurar uma espécie de meio de pagamento online, tendo surgido na década passada, e, durante muito tempo, ficou  restrita ao ambiente dos empreendedores virtuais mais sofisticados, a ponto de paulatinamente ter conquistado adeptos e angariado espaço no mercado, resultando na atual preocupação gerada nos inúmeros representantes de Estado.

 

 Com efeito, trata-se de uma moeda virtual e um meio de pagamento, que pode ser empregado para qualquer tipo de transação comercial, e já vem sendo utilizada nas transações (compra e venda) de moeda estrangeira em algumas casas de câmbio do Brasil (disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passa-a-aceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208).

 

  Todavia, é uma moeda virtual ainda não reconhecida pelo Banco Central do Brasil, inexistindo o respectivo lastro, haja vista a ausência de correspondência a uma existência física em papel moeda equivalente, assim como pela  impossibilidade de comprovação do seu efetivo valor,  a teor do que consta no Comunicado Bacen n.º 31.379/2011  (disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado n° 31.379 de 16_11_2017.html).

 

 Indaga-se, porém, se a manutenção de valores superiores a US$ 100.000,00  (cem mil dólares) em bitcons configuraria o delito de evasão de divisas, na modalidade evasão imprópria?

 

 Em relação ao tipo penal de evasão divisas previsto na Lei 7.492/86,  cumpre descrevê-lo em sua íntegra:

 

 Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

 

 Nesse ponto, enquanto o bitcoin não for regulamentado pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) e/ou pelo BACEN, fica inviável cogitar, em tese, na tipificação como evasão de divisas propriamente dita (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da LSN) ou da modalidade evasão imprópria,  porquanto não poderá ser classificado na condição de depósito, moeda ou divisa,  por não estar vinculado a qualquer instituição financeira, e pelo fato de as operações não serem reconhecidas e regulamentadas pelos aludidos  entes do sistema financeiro nacional.

 

Por outro lado, apenas na hipótese do crime do caput do art. 22 da Lei 7.492/86 é que se poderia cogitar, em princípio, da possibilidade de configuração do delito de evasão, quando a aquisição da criptomoeda for utilizada para fins de efetivação de contrato de câmbio ilegal, cujo objetivo seja a evasão de divisas (remessa dos valores para outro país, em desconformidade às regras do Banco Central), conforme se nota da análise da seguinte  ementa de decisão oriunda do Superior Tribunal de Justiça:

 

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL. INVESTIGADO QUE ATUAVA COMO TRADER DE CRIPTOMOEDA (BITCOIN), OFERECENDO RENTABILIDADE FIXA AOS INVESTIDORES. INVESTIGAÇÃO INICIADA PARA APURAR OS CRIMES TIPIFICADOS NOS ARTS. 7º, II, DA LEI N. 7.492/1986, 1º DA LEI N. 9.613/1998 E 27-E DA LEI N. 6.385/1976. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL QUE CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE OUTROS CRIMES FEDERAIS (EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL E MOVIMENTAÇÃO DE RECURSO OU VALOR PARALELAMENTE À CONTABILIDADE EXIGIDA PELA LEGISLAÇÃO). INEXISTÊNCIA. OPERAÇÃO QUE NÃO ESTÁ REGULADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO. BITCOIN QUE NÃO TEM NATUREZA DE MOEDA NEM VALOR MOBILIÁRIO. INFORMAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB) E DA COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). INVESTIGAÇÃO QUE DEVE PROSSEGUIR, POR ORA, NA JUSTIÇA ESTADUAL, PARA APURAÇÃO DE OUTROS CRIMES, INCLUSIVE DE estelionato E CONTRA A ECONOMIA POPULAR. 1. A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976. 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, nos autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. 5. Inexistindo indícios, por ora, da prática de crime de competência federal, o procedimento inquisitivo deve prosseguir na Justiça estadual, a fim de que se investigue a prática de outros ilícitos, inclusive estelionato e crime contra a economia popular. 6. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara de Embu das Artes/SP, o suscitado.  (STJ, CC-161123, Rel. Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 05/12/2018).

 

 No mesmo sentido, é o que consta do  Comunicado Bacen n° 31.379, de 16 de novembro de 2017:

 

"(...) 6. É importante ressaltar que as operações com moedas virtuais e com outros instrumentos conexos que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastam a obrigatoriedade de se observar as normas cambiais, em especial a realização de transações exclusivamente por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no mercado de câmbio" (Disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado n° 31.379 de 16_11_2017.html. Acesso: 12 de agosto de 2019)

 No que se refere à conceituação das criptomoedas, leciona CARDONI:

 

“(...) essa criptomoeda ainda não foi conceituada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não sendo possível a sua equiparação à divisa. Além disso, foi demonstrado que o bitcoin não pode ser considerado uma moeda em razão das suas condições econômicas e também da legislação atual” ( CARDONI, p. 61).

 

 Com efeito, as criptomoedas  são  criptografadas para garantir proteção e segurança, e o aludido valor monetário apenas trafega no universo virtual.

 

 De forma similar a outros tipos de moedas, a criptomoeda pode ser utilizada para aquisição de bens e serviços, mas a sua principal vantagem é o fato de não estar atrelada a um determinado sistema bancário, tendo, ainda, como característica, a possibilidade de transferência via internet de baixo custo, porquanto inexiste a necessidade de pagamento  das respectivas  taxas inerentes às instituições financeiras tradicionais.

 

  A criptografia de tais moedas é realizada por intermédio de uma série de códigos dotados de "chaves"  de difíceis decodificações, tornando-a menos suscetíveis a invasões, por parte de hackers ou criminosos do mundo cibernético.

 

  Contudo, isso não impede a configuração do eventual crime de lavagem de dinheiro (ocultação e/ou dissimulação de  bens ou valores proveniente de infração penal antecedente), quando for comprovada a sua utilização para fins de ocultação  ou dissimulação de ganhos oriundos de ilícitos penais.

 

 Nesse ponto, leciona LEDRA RIBEIRO:

 

“(...) Inobstante a isso, o bitcoin ser considerado como bem imaterial não escusaria os seus operadores de desrespeitar regras referentes ao combate às fraudes e corrupção nos termos da lei 9.613/98. A depender das transações realizadas em bitcoin, por exemplo, as partes podem recair no crime de ocultação de bens, direitos e valores, ao “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, nos termos do caput do art. 1º da mesma lei(...)”

 

 No  mesmo sentido, poder-se-á caracterizar o delito de sonegação fiscal, caso seja comprovada a omissão de declaração de bens ou valores no imposto de renda,  resultando na omissão de renda auferida tributável, desde que constituído definitivamente o crédito tributário, por intermédio do lançamento fiscal a cargo da Receita.

 

 Em relação à prevenção e repressão à sonegação fiscal, a Receita Federal emitiu um ato normativo por meio do qual tornou obrigatória a informação na declaração de imposto de renda do referido ativo financeiro, conforme se nota na instrução normativa  RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019 , a qual institui e disciplinou a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), nos seguintes termos:

 

"Art. 1º Esta Instrução Normativa institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

(...)

Art. 6º Fica obrigada à prestação das informações a que se refere o art. 1º:

I - a exchange de criptoativos domiciliada para fins tributários no Brasil;

II - a pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil quando:

a) as operações forem realizadas em exchange domiciliada no exterior; ou

b) as operações não forem realizadas em exchange.

§ 1º No caso previsto no inciso II do caput, as informações deverão ser prestadas sempre que o valor mensal das operações, isolado ou conjuntamente, ultrapassar R$ 30.000,00 (trinta mil reais)"

 

 Relativamente à submissão do lucro das transações à tributação pelo fisco, preleciona REVOREDO:

 

“A tributação dos ganhos obtidos com a alienação de criptomoedas Segundo a própria Receita Federal (tópico 607 do Documento de Perguntas e Respostas): “Os ganhos obtidos com a alienação de moedas virtuais (bitcoins, por exemplo) cujo total alienado no mês seja superior a R$ 35.000,00 são tributados, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, e o recolhimento do imposto sobre a renda deve ser feito até o último dia útil do mês seguinte ao da transação”. Para isso, o contribuinte deve informar no GCAP o custo de aquisição e o valor de venda. O pagamento do DARF é até o final do mês subsequente”

 

  Como se nota, a orientação  da Receita Federal é no sentido de que a referida criptomoeda configura uma espécie de ativo financeiro, razão pela qual seria exigível o recolhimento de imposto sobre a renda a título de ganho de capital (https://www.conjur.com.br/2019-abr-15/opiniao-tributacao-operacoes-criptomoedas).

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  O Banco Central (BACEN) já se pronunciou em algumas oportunidades, manifestando o entendimento de que as criptomoedas ainda não foram regulamentadas, porquanto não seriam moedas fiduciárias,  haja vista não possuírem natureza de meio de curso forçado para fins de  transações financeiras.

 

​  De outro lado, a  Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, em março de 2020, a competência da Justiça Federal para julgar fatos relacionados à captação de recursos atrelados à especulação no mercado de criptomoedas, por intermédio de oferta pública de contrato coletivo de investimento com bitcoin, sem prévio registro de emissão na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

 

   Segundo o respectivo julgado, cuja ementa segue abaixo transcrita, a oferta pública de contrato coletivo de investimento configura valor mobiliário previsto na Lei 6.385/76, submetendo os fatos às disposições da lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/1986), atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal,  in verbis:

 

HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO EGYPTO. SUPOSTA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. CASO QUE OSTENTA CONTORNOS DISTINTOS DO CC N. 161.123/SP (TERCEIRA SEÇÃO). DENÚNCIA OFERTADA, NA QUAL É NARRADA A EFETIVA OFERTA DE CONTRATO COLETIVO DE INVESTIMENTO ATRELADO À ESPECULAÇÃO NO MERCADO DE CRIPTOMOEDA. VALOR MOBILIÁRIO (ART 2º, IX, DA LEI N. 6.385/1976). INCIDÊNCIA DOS CRIMES PREVISTOS NA LEI N. 7.492/1986. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 26 DA LEI N. 7.492/1986), INCLUSIVE PARA PROCESSAR OS DELITOS CONEXOS (SÚMULA 122/STJ). 1-A Terceira Seção desta Corte decidiu que a operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976 (CC n. 161.123/SP, DJe 5/12/2018).2- O incidente referenciado foi instaurado em inquérito (não havia denúncia formalizada) e a competência da Justiça estadual foi declarada exclusivamente considerando os indícios colhidos até a instauração do conflito, bem como o dissenso verificado entre os Juízes envolvidos, sendo que nenhum deles cogitou que o contrato celebrado entre o investigado e as vítimas consubstanciaria um contrato de investimento coletivo. 3. O caso dos autos não guarda similitude com o precedente, pois já há denúncia ofertada, na qual foi descrita e devidamente delineada a conduta do paciente e dos demais corréus no sentido de oferecer contrato de investimento coletivo, sem prévio registro de emissão na autoridade competente. 4.- Se a denúncia imputa a efetiva oferta pública de contrato de investimento coletivo (sem prévio registro), não há dúvida de que incide as disposições contidas na Lei n. 7.492/1986, notadamente porque essa espécie de contrato consubstancia valor mobiliário, nos termos do art. 2º, IX, da Lei n. 6.385/1976. 5- Interpretação consentânea com o órgão regulador (CVM), que, em situações análogas, nas quais há oferta de contrato de investimento (sem registro prévio) vinculado à especulação no mercado de criptomoedas, tem alertado no sentido da irregularidade, por se tratar de espécie de contrato de investimento coletivo. 6- Considerando os fatos narrados na denúncia, especialmente os crimes tipificados nos arts. 4º, 5º, 7º, II, e 16, todos da Lei n. 7.492/1986, é competente o Juízo Federal para processar a ação penal (art. 26 da Lei n. 7.492/1986), inclusive no que se refere às infrações conexas, por força do entendimento firmado no Enunciado Sumular n. 122/STJ.7- Ordem denegada (STJ, 6ª Turma, HC 530563 / RS,Dje 12/03/2020)

 

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Sobre o autor
Leandro Bastos Nunes

Procurador da República. Ex-Advogado da União. Especialista em direito penal e processo penal. Articulista. Autor da obra "Evasão de divisas" (Editora JusPodivm). Professor da pós-graduação em direito penal econômico da FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências), e em cursos do Ministério Público da União. Palestrante em crimes financeiros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Leandro Bastos. Evasão de divisas e bitcoin à luz da jurisprudência do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6140, 23 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81411. Acesso em: 27 abr. 2024.

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