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A poliparentalidade decorrente da socioafetividade com procedimento diretamente protocolado nos cartórios extrajudiciais

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26/05/2023 às 13:05
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Estuda-se a filiação socioafetiva decorrente da poliparentalidade à luz dos Provimentos 63 e 83 do CNJ. Ao final, traz um roteiro prático para ajudar os interessados junto aos cartórios.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo sobre as possibilidades jurídicas da filiação socioafetiva poliparental no Direito Registral brasileiro e de sua recente regulamentação por meio de Provimentos no âmbito do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Nesse sentido, também, visa a demonstrar a evolução da doutrina e da jurisprudência em matéria de filiação para a edificação de normas positivas. Vale ressaltar que até bem pouco tempo, não se admitia sequer o registro da filiação homoafetiva nem por adoção. Os avanços foram tremendos e decorrem diretamente da mudança de mentalidade da sociedade brasileira e do ativismo judicial à luz de uma visão neo-constitucionalista cujo marco tem sido o princípio da dignidade da pessoa humana como corolário para todas as decisões envolvendo direitos individuais, como é o caso da filiação.

Pode-se afirmar, de forma sucinta, que o foco do Direito Civil Contemporâneo é estudar as garantias e a concretização da efetividade horizontal dos direitos constitucionais sempre à luz de demandas sociais:

O direito civil constitucional representa a superação da interpretação formalista tão-somente fundamentada no mecanismo lógico-teórico da subsunção do fato concreto à norma jurídica abstrata; a proposta contemporânea de interpretação das disposições normativas enfatiza a hierarquia das fontes e dos valores dentro de uma acepção sistemática e lógica.1

Nesse sentido, a judicialização de temas relacionados ao princípio da dignidade da pessoa humana faz surgir um entendimento novo, uma interpretação dos fatos sociais à luz da hermenêutica constitucional: “A constitucionalização do direito civil trouxe a superação da tradição que tanto privilegiou a conduta hermenêutica simplificada da subsunção dos fatos à hipótese normativa, dentro de estrutura deôntica rígida.”2

Com efeito, a positivação de normas por meio dos Provimentos do CNJ representa o resultado dessa construção normativa, jurisprudencial, dogmática e exegética dos valores humanos. Defende-se que só foi possível a edificação de normas positivas porque houve uma construção dogmática nesse sentido. A Constituição Federal é a mesma desde 1988, mas o entendimento jurisprudencial sobre a aplicação desses princípios, através de mutações constitucionais, tem suscitado novas configurações para o conceito clássico de família. O Direito mudou porque a sociedade também está em crescente transformação, e a família, núcleo básico desta sociedade, com o reconhecimento das garantias constitucionais da igualde e da liberdade, tem se diversificado, alcançando configurações jamais vistas. Doutrinadores têm nomeado essas novas formas de família de família pachtwork, família mosaico, família poliafetiva ou homoafetiva, todas formadas a partir de vínculos não só de afetividade, mas também de responsabilidade. O dinamismo é uma característica dessa nova configuração que se altera entre si com mais rapidez, sendo também vista, por alguns críticos mais conservadores, como uma família resultante de uma sociedade consumista e imediatista.

O que se pretende demonstrar nesse trabalho é que o ativismo judicial aliado a uma sociedade liberal tem trazido novos contornos para o Direito das Famílias com repercussões para o Direito Registral. Nesse contexto, a poliparentalidade decorrente da filiação socioafetiva, seja entre pessoas do mesmo sexo ou não, são tipos novos de configuração familiar. A possibilidade de realizar o registro parental em cartório de mais de 2 genitores com base nos laços de socioafetividade é uma demonstração dessa evolução. Não se deve confundir o registro poliparental em cartório com o instituto da adoção. A maior diferença entre eles é que na adoção o processo é exclusivamente judicial e não há necessidade de existir nenhum vínculo de socioafetividade; já no procedimento de reconhecimento de filiação poliparental, a socioafetividade deve ser comprovada, além de ter sido desjudicializado.

Visando a melhor esclarecer esse procedimento, este trabalho analisa a recente modulação normativa acerca da possibilidade da multiparentalidade pela filiação socioafetiva em âmbito administrativo; suas possibilidades, requisitos legais e efeitos. Defende-se, nesse trabalho, que a possibilidade jurídica desse procedimento pela via administrativa foi um avanço para a garantia dos direitos individuais. Se por um lado já existem normas garantindo o acesso a um direito tão relevante, por outro lado há um desconhecimento desse direito por grande parte da população, aquela que seria o público alvo dessa garantia. Por esse motivo, em especial, é tão importante divulgar a possibilidade jurídica desse novo direito e garantir o acesso das informações de forma clara e objetiva tal qual se pretende fazer neste trabalho.


1. O DIREITO DAS FAMÍLIAS À LUZ DO DIREITO REGISTRAL

Em princípio, deve-se diferenciar o Direito Registral do Direito Notarial. Apesar de ambos serem ramos de estudo da atividade extrajudicial, apresentam conteúdo individualizado. O Direito Notarial é aquele aplicado nas atividades notariais e é resumido pelos doutrinadores como sendo um: "(...) conjunto sistemático de normas que estabelecem o regime jurídico do notariado"3; ou ainda, como: "(...) o direito notarial pode definir-se como o conjunto de normas positivas e genéricas que governam e disciplinam as declarações humanas formuladas sob o signo da autenticidade pública"4; ou, simplesmente, como define Leonardo Brandelli dizendo sê-lo um "(...) aglomerado de normas jurídicas destinadas a regular a função notarial e o notariado" 5.

Já o Direito Registral é aquela atividade inerente aos cartórios de registro como por exemplo os registros civis e o imobiliário. Nos registros civis de pessoas naturais, por exemplo, está o reservatório registral, desde o nascimento da pessoa natural, passando pelo casamento até seu óbito; quanto aos registros de pessoas jurídicas, também se encontram desde sua constituição e alterações até sua extinção; já o registro imobiliário traz o reservatório de cada uma das unidades imobiliárias existentes, conferindo a elas uma identificação única e inconfundível, que é a matrícula, sendo esta comparada à matrícula da pessoa natural no CPF, no qual não há homonímia; cada ser humano tem um CPF, bem como cada unidade imobiliária também tem uma matrícula6. Interessante trazer à colação uma passagem do livro de Nicolau Balbino Filho, ao analisar a função registral:

O Registro seja uma fiel reprodução da realidade dos direitos imobiliários. A vida material dos direitos reais, bem como a sua vida tabular, deveriam-se desenvolver paralelamente, como se a segunda fosse espelho da primeira. Com efeito, esta é uma ambição difícil de se concretizar, mas em se tratando de um ideal, nada é impossível; basta perseverar.7

Há de se ressaltar que o Direito Registral evoluiu conferindo também maior liberdade aos Registradores. Neste trabalho, se verificará o crescimento da autonomia dos Registradores de Registro Civil das Pessoas Naturais – RCPN - quanto à instrumentalização dos registros públicos sobretudo pela ampliação de sua atuação conferida pelos Provimentos 63 e 83 do CNJ.


2. A POLIPARENTALIDADE: CONCEITOS E POSSIBILIDADES JURÍDICAS

Grosso modo, pode-se dizer que a homoparentalidade, menos discutida atualmente, é a possibilidade de se registrar dois genitores de mesmo sexo no assento de nascimento de um filho, e vinha sendo feita através da adoção em um primeiro momento. Mesmo não sendo atualmente o centro do debate, já que o tema se encontra pacificado na jurisprudência, é sabido que pode causar muita estranheza a considerável parte da sociedade. Há alguns anos, já se consolidou o entendimento jurisprudencial acerca da possibilidade de se registrar duas pessoas de mesmo gênero como genitores de uma criança, seja esta fruto de uma gravidez unilateral ou de adoção.

Apesar de o recorte deste trabalho não estar focado na questão social, não custa lembrar que o Direito teve que alcançar as estruturas sociais homoafetivas, que já se tornaram uma realidade de longa data. Essa trajetória de conquistas sociais dos Direitos homoafetivos custou muita luta social e muito esforço acadêmico. Nesse sentido, vale trazer o excelente trabalho da lavra das sociólogas Amanda Cristina Ramos de Oliveira e Paula Manuella Silva de Santana, intitulado “Famílias homoparentais: reflexões acerca do ser família na contemporaneidade”, que bem demonstra essa evolução na garantia desses direitos:

A família homoparental teve de enfrentar ao longo das décadas, diversas formas de preconceito social, revelados através dos discursos e comportamentos da sociedade em relação a esta forma de ser família. 3170. Contudo, é possível perceber através da história, da sociologia, da antropologia, do direito e da psicologia social que a família homoparental vem ganhando espaço nos meio sociais, reivindicando direitos constitucionais, buscando o respeito e aceitação social como instituição familiar, porém, através de muitas lutas sociais.8

As Autoras, acima mencionadas, tinham como objetivo “(...) apresentar e discutir a forma como a homoparentalidade tem sido concebida e representada pelo meio social, bem como quais as possibilidades e contribuições da homoparentalidade para a sociedade e para o conceito de família em nosso país.”9. O recorte das Autoras não é jurídico, mas sociológico. Todavia, como dito acima, mesmo não tendo este trabalho um viés sociológico, não se pode deixar de apontar as contribuições das ciências sociais para a evolução do Direito Registral até a admissibilidade da instrumentalização do registro em si. Ademais, o foco das ciências sociais é estudar essa evolução social e reafirmar o reconhecimento das famílias homoparentais como fenômeno social.

A liberdade humana de se autodeterminar, muitas vezes, extrapola os limites acadêmicos cerceados pelos conceitos pré-estabelecidos. Imagine, por exemplo, que 2 homens realizaram uma adoção cujo registro da criança apresenta 2 genitores do gênero masculino e que, passados alguns anos, com a separação do casal, um deles tenha estabelecido uma união heteroafetiva. A criança continuará sendo filha de 2 genitores masculinos, portanto, fruto da homoparentalidade registral, ainda que a nova família dentro da qual esteja inserida não seja mais homoafetiva. Sabiamente, estas configurações familiares foram denominadas de família pachtwork ou família mosaico. No trabalho “As famílias pluriparentais ou mosaicos”, as Autoras Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira e Konstanze Rörhmann ilustram como se dá essa configuração mencionando doutrinadores que também têm dedicado seu tempo ao estudo dessa nova configuração familiar, como resumem as Autoras:

O modelo familiar oitocentista, singular e hegemônico, perde espaço para as formas plurais, marcadas pela diversidade. As famílias pluriparentais resultam da pluralidade das relações parentais, fomentadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias não-matrimoniais e pelas desuniões. Tais famílias são organizadas através de novas uniões, a presença de filhos de outras relações e formação e administração de patrimônio. Em decorrência desta ordem familiar, questões permanentes do Direito de Família, agora redimensionadas pelas especificidades das famílias mosaicos, transportam para o centro das reflexões dilemas como: alteração do nome de família, a divisão do pátrio poder e guarda dos menores, o direito de visita e o dever alimentar. As famílias plurais sinalizam para uma profunda tarefa educativa com o fim de manter a integração social. Não são fatores de desintegração, mas sim, veículos de integração social.10

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No presente trabalho, diferentemente do foco das Autoras, acima citadas, pretende-se estudar a poliparentalidade registral, não importando a origem familiar. Com efeito, não se trata, aqui, de um estudo da homoafetividade, nem um estudo sobre as famílias homoparentais, e sim da poliparentalidade registral, qual seja, analisar os requisitos e efeitos do registro de uma criança com mais de 2 genitores, sejam de eu sexo for.

A diferença entre a multiparentalidade e a dupla paternidade está na simples constatação de que na pluri ou multiparentalidade há mais de 2 genitores. Essa diferença foi demonstrada em artigo intitulado “Multiparentalidade e a dupla paternidade: as diferenças”, onde a Autora resume assim:

A multiparentalidade é a prova que no Direito de Família a situação fática, ou seja, a própria realidade, deve e pode ser tutelada. A multiparentalidade pode ser definida como a coexistência jurídica do vínculo biológico e do afetivo.11

Na poliparentalidade existem relações biológicas de parentesco ao lado das relações meramente socioafetivas. Do ponto de vista genético, somente é possível a reprodução humana através de um óvulo e de um espermatozoide, portanto é biologicamente impossível existir mais de 2 genitores biológicos; todavia, os genitores biológicos podem estar relacionados aos genitores afetivos. São os laços de afetividade que justificam a poliparentalidade.

Cumpre asseverar, desde já, que os Provimentos 63 e 83 do CNJ exigem como requisitos para o registro poliparental não apenas o laço de afetividade, mas a comprovação da externalização desses laços na sociedade; por isso, o nome é socioafetividade; não basta a afetividade, tem que se provar a ostensividade social desses laços.

Nesse sentido, cumpre lembrar que as inovadoras técnicas de reprodução humana, muito bem regulamentadas pelo Provimento nº 63 do CNJ, ainda permitem uma terceira figura que é a barriga solidária, na qual a mulher recebe um embrião com material genético diferente do seu. São tantas as formas de composição genética aliadas à liberdade sexual humana que já se pode considerar a poliparentalidade como uma consequência dessa sociedade livre e liberal. Por esta razão, a porta-voz na defesa dos direitos alternativos, a jurista Maria Berenice Dias, afirma que: “Utilizadas as modernas técnicas de reprodução assistida, como a decisão de ter filhos é do casal, é necessário assegurar, quer aos gays, quer às lésbicas, o direito de proceder ao registro dos filhos no nome do casal.”12. Muitos Autores como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald também se dedicam a estudar o fenômeno da poliparentalidade:

(...) com esteio no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, algumas vozes passaram a defender a possibilidade de multiparentalidade ou pluriparentalidade, propagando a possibilidade de concomitância, de simultaneidade, na determinação da filiação de uma mesma pessoa. Isto é, advogam a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai e/ou mais de uma mãe simultaneamente, produzindo efeitos jurídicos em relação a todos eles a um só tempo.13

Isto posto, não se pode confundir estudos sobre famílias com o presente trabalho, cujo foco está centrado sobre as repercussões registrais da poliparentalidade, sendo simplesmente a configuração registral na qual o filho apresenta mais de 2 genitores do mesmo sexo ou sexo diferente. Em ambas, pode haver o reconhecimento da paternidade pelos vínculos afetivos. Por óbvio que a família é o ceio social onde a criança será educada e crescerá, portanto, a família se relaciona com o presente estudo, mas não é o recorte deste trabalho.

E, para tratar do ponto de vista registral, deve-se passar a um estudo mais técnico, centrado nos aspectos jurídicos das novas configurações de parentalidade.


3. EVOLUÇÃO JURÍDICA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E DA POLIPARENTALIDADE

Como já foi dito acima, a homoparentalidade encontra seu fundamento a partir do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Assim, quando entra em vigor o Código Civil, em 2002, o seu Art. 1.723 já vinha sendo criticado como uma norma inconstitucional já que violaria o princípio supremo da igualdade entre as pessoas e mais um outro princípio constitucional, em nome do qual muito se pode fazer, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. A doutrina civilista, já desde à época da tramitação do Projeto de Lei do Novo Código Civil, vinha opondo-se ferozmente à redação obtusa do Art. 1.723, abaixo transcrito:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (grifos nossos)

Bastava o supra artigo dizer: “É reconhecida como entidade familiar a união entre pessoas, configurada (...)”; estaria resolvido o problema. Não tardou, todavia, para o STF, em maio de 2011, reconhecer a união entre pessoas do mesmo gênero (por uma interpretação conforme a Constituição do art. 1723 do Código Civil), na ADPF 132 e ADIn 427714. E assim vem sendo desde então.

Desde então, a união estável homoafetiva vem sendo inoponível ao sistema jurídico brasileiro e foi alçada à realidade de igualdade integral com as uniões estáveis entre homem e mulher. Não tardou para que o CNJ -Conselho Nacional de Justiça – editasse a Resolução 175 que permite o casamento homoafetivo e a conversão das uniões estáveis homoafetivas em casamento.

A prova de que o contexto de luta travado pela sociedade LGBT através da judicalização do tema, resta provado nos Considerandos da Resolução 175, abaixo:

CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;

CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;

A judicialização do tema que contou com a participação de pessoas dispostas a enfrenar o sistema em situações concretas, foi o campo de batalha para a vitória do Direito. Sem o ativismo judicial não existiria a Resolução 175, mas sem o enfrentamento dos autores em ações pelo Brasil inteiro, também não haveria sequer a oportunidade de manifestação judicial.

Todos os eventos, acima mencionados, fomentaram o crescimento das configurações familiares homoafetivas, conduzindo a uma liberdade ainda maior para evoluir na direção de uma poliafetividade. Ainda bem pouco adotada, a família poliafetiva, que compreende a união entre mais de 2 pessoas, sejam ou não do mesmo sexo, ficou em discussão dentro do CNJ por longo tempo, tendo sido resolvido em junho de 2018 pela proibição de lavraturas de uniões poliafetivas15.

Apesar da decisão polêmica do CNJ em negar o direito de casais poliafetivos de fazer uma escritura de união estável compreendendo mais de 2 pessoas, o poliamor já é um fato social e a tendência no campo das liberdades individuais é se encaminhar o tema para uma tutela jurídica positiva. Vale trazer à colação os dizeres do Ministro Luís Roberto Barroso, na Tribuna do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas: “Ninguém deve ser diminuído nessa vida pelos afetos” (informação verbal)16.

Com efeito, se consolida a cada dia uma cultura da diversidade sexual, com leis protetivas, como o Estatuto da Diversidade, e uma crescente jurisprudência que busca nos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana a justificativa jurídica para a tutela desses interesses. Desta forma, natural que essa mudança no status familiar se reflita no Direito Registral. Quanto mais famílias homoafetivas e poliafetivas se formam, maior a incidência de registros de filhos provenientes dessas famílias.

Neste trabalho, como já fora dito, o foco não é o estudo das famílias poliafetivas, mas sim da filiação poliafetiva. Nem sempre a existência de uma filiação poliafetiva (filho com mais de 2 genitores) está atrelada a união dessas pessoas. Na verdade, são raros os casos de famílias poliafetivas, onde há a união afetiva entre mais de 2 pessoas com filiação comum. Na maioria das situações envolvendo a filiação decorrente da poliafetividade, que é aquela em que o filho possui mais de 2 genitores, não há união de fato entre todos os genitores.

No entanto, do ponto de vista do filho que tem mais de 2 genitores, todos eles são sua família, apesar de nem sempre, ou quase sempre, os genitores não estarem em união afetiva. Fica confuso falar apenas em termos, sendo bastante elucidativo trazer um exemplo: um casal, homem e mulher, tem um filho; este casal se separa e a mãe passa a ter uma relação afetiva com outra mulher, com a qual o filho se relaciona muito bem; ao longo dos anos, essa mulher desenvolve grande afetividade e responsabilidades sobre a criança, que é filho de sua companheira; ambas vão ao cartório e requerem o reconhecimento da maternidade socioafetiva da “madrasta”; assim, o filho terá 2 mães e um pai, estabelecendo com eles laços familiares; porém entre os 3 genitores não há relação afetiva, havendo apenas a união afetiva entre as duas mulheres; o tempo passa e o casal de mulheres se separa; o filho continua mantendo 3 genitores e com eles também continua mantendo seus laços de parentesco e afetividade familiar, apesar de os 3 genitores não terem mais nenhum vínculo entre si.

Sendo assim, do ponto de vista do filho, fruto da poliparentalidade, seus genitores constituem sua família; mas, nem sempre entre esses genitores existirá união afetiva. Por esta razão, falar de poliparentalidade é falar também da família poliafetiva, sobretudo do ponto de vista do filho com mais de 2 genitores.

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Sobre a autora
Mariangela Ariosi

Sou tabeliã e registradora no interior do estado de São Paulo. Carioca, fiz meus estudos no RJ; mestrado em Direito na UERJ. Cursei o doutorado em Direito na USP, sem concluir a Tese, interrompido pois estava estudando para vários concursos, todos na área de cartório. Cursei algumas Pós na área cartorária e atualmente me preparo para retornar e concluir o doutorado. Também , fui professora de Direito durante quase 20 anos em algumas universidades do RJ como UCAM, São José, Castelo Branco e UNIRIO, dentre outras. Atualmente continuo estudando e escrevendo sobre temas afetos às atividades cartorárias. Estou a sua disposição para conversarmos sobre esses temas e trocar informações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARIOSI, Mariangela. A poliparentalidade decorrente da socioafetividade com procedimento diretamente protocolado nos cartórios extrajudiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7268, 26 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81733. Acesso em: 24 abr. 2024.

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