III – A interpretação conforme à Constituição
O eminente Ministro Alexandre de Moraes (2003), em sua obra “Direito Constitucional”, afirma que a interpretação conforme à Constituição, como técnica interpretativa, é admissível nos casos em que a norma jurídica admite vários significados, norma plurissignificativa, portanto, sendo necessário interpretá-la da forma que lhe confira o verdadeiro sentido constitucional:
(...) exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico. (MORAES, 2003, p. 36 e 37)
Acrescenta, ainda, que interpretação conforme admite três hipóteses:
Para que se obtenha uma interpretação conforme a Constituição, o intérprete poderá declarar a inconstitucionalidade parcial do texto impugnado, no que se denomina interpretação conforme com redução do texto, ou, ainda, conceder ou excluir da norma impugnada determinada interpretação, a fim de compatibilizá-la com o texto constitucional. Essa hipótese é denominada interpretação conforme sem redução do texto. (MORAES, 2003, p. 37)
Na interpretação conforme com redução de texto declara-se que determina expressão ou conjunto de expressões sejam incompatíveis com a Constituição, logo, devem ser excluídas do texto.
Na interpretação conforme sem redução admite-se duas vertentes: (1) declarar-se que determinada norma somente é constitucional se for dado determinado sentido à ela, ou seja, que seja concedida interpretação num sentido ou sentidos determinados; ou (2) declarar-se que determinado sentido não poderá ser dado à norma, porquanto violadora da Constituição. Neste último caso, tem-se uma interpretação excludente de significado.
O Controle de Constitucionalidade é um dos mecanismos jurídicos para alcançar a interpretação conforme (MORAES, 2003, p. 38).
A necessidade de coadunar as normas infraconstitucionais com a Constituição decorre do primado desta, ou seja, de sua superioridade em face do ordenamento jurídico, como norma fundante do Estado de Direito e fundamento de validade de todas as demais:
(...) a supremacia da Constituição corresponde à vinculação irrestrita de todos os Poderes do Estado a suas normas, ou como denominado por Canotilho, "a função promocional da constituição, radicalmente antagônica da tese da eficácia zero do direito constitucional". (MORAES, 2003, p. 287)
Em primeiro lugar, a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la. (MORAES, 2003, p. 468)
Rememorando o artigo 486 da CLT, a autoridade responsável por impossibilitar a continuidade, temporária ou definitiva, de atividade deverá indenizar o trabalhador que tiver seu pacto empregatício rompido:
Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. (BRASIL, 1951)
Observa-se que a expressão “prevalecerá o pagamento de indenização, que ficará a cargo do governo responsável” (expedidor do ato) possui diversos sentidos. Ou seja: o Estado responderá em todo e qualquer caso? É, portanto, integral a responsabilidade? Ou não, admite-se excludente de responsabilidade? Se sim, admite-se todas as excludentes ou, apenas, algumas? Se for algumas, quais são admitidas?
Como já observado neste estudo a regra matriz da responsabilidade do Estado encontra-se no artigo 37, §6º, da Constituição Federal, que adotou, como regra, a teoria da responsabilidade objetiva informada pelo risco administrativo.
O único sentido possível que compatibiliza a norma do artigo 486 da CLT com a referida norma do artigo 37, §6º, da Constituição, é aquele que admite a aplicação das excludentes de responsabilidade do estado.
E isso se deve ao fato de que, como dito, em nenhum momento, qualquer ato normativo do Poder Público previu ampliação de responsabilidade por atos de interrupção temporária das atividades econômicas e, como demonstrado, a jurisprudência admite tal responsabilização, mas desde que haja expressa manifestação do Estado nesse sentido.
Ademais, os danos colaterais de exigir o dever de indenizar do Estado em casos excepcionais como o de pandemia de doença até então desconhecida e cujas consequências ainda pouco se sabe, é deslocar a responsabilidade por caso fortuito ou força maior em direção ao ônus social sem amparo legal.
Um Estado que já vem assumindo, inclusive de modo acima de sua capacidade financeira, o ônus de manter a sociedade minimamente estável com medidas de auxílio de renda, crédito empresarial, dilação de prazos de recolhimento de tributos, assunção temporária de salários de trabalhadores privados, entre outras, ter que assumir, agora, a responsabilidade por medidas profiláticas adotadas mundialmente a fim de minorar as consequências desastrosas da pandemia, é subverter a ordem constitucional e lógica. É querer a destruição do próprio Estado e da sociedade. É levar o povo à ruína pela via do Direito. É levar a injustiça onde deveria levar a paz.
Portanto, é necessário dar interpretação conforme à Constituição ao artigo 486 da CLT para, em compatibilidade semântica com o artigo 37, §6º, da CF/1988, excluir qualquer interpretação que permita aplicar a teoria do risco integral na responsabilidade objetiva do estado, isto é, pela possibilidade de adoção das excludentes de responsabilidade, em especial do caso fortuito ou força maior, na verificação do dever de indenizar.
Conclusão
Este artigo demonstrou que o “fato do príncipe”, teoria originária do Direito Administrativo, foi incorporada ao Direito do Trabalho para permitir a responsabilização do Estado por atos de suspensão de atividades econômicas, mesmo que temporárias, que ensejassem possíveis rupturas dos contratos de emprego.
Ficou demonstrado que a Constituição Federal de 1988 adotou, como regra, a responsabilidade objetiva do Estado informada pelo risco administrativo. Todavia, por via de exceção, tanto a Constituição como a legislação infraconstitucional, adotam, pontualmente, a responsabilidade pelo risco integral desde que expressamente prevista, conforme manifestação do Supremo Tribunal Federal.
Explicou-se que a diferença entre o risco administrativo e o risco integral reside na possibilidade e na amplitude da exclusão da responsabilidade estatal.
Demonstrou-se que a ocorrência da pandemia de Covid-19 é um típico fato excepcional que permite subsunção às normas que preveem o caso fortuito ou força maior como excludente de responsabilidade estatal.
Por fim, após indicar a posição da doutrina e jurisprudência sobre a interpretação conforme à Constituição, chegou-se à conclusão que ao artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho é necessário excluir qualquer sentido ou interpretação que impossibilite aplicar a excludente de responsabilidade objetiva do Estado por caso fortuito ou força maior.
Conclui-se, assim, que a interpretação constitucional da responsabilidade objetiva do Estado por atos de suspensão temporária das atividades econômicas admite excludente de responsabilidade, não havendo assim, o dever de indenização, por parte do Poder Público, quando da ruptura dos contratos de emprego decorrentes da pandemia de Covid-19.
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