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Breves notas sobre o quinqüídio decadencial das representações do art. 96 da Lei Eleitoral

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18/04/2006 às 00:00
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4. A criação de prazo decadencial após a representação: direito intertemporal.

O mais grave da criação do prazo decadencial pelo RO 748 foi o desrespeito ao ato jurídico perfeito da representação eleitoral. Criou-se um prazo fatal, que não existia, numa questão de ordem suscitada no julgamento, e, a partir dele, julgou-se que a representação havia sido intempestiva. Foi como se o TSE bradasse ao Ministério Público, autor da representação, um sonoro: "Bati. Takará!". Para espanto e perplexidade do Ministro Marco Aurélio, evidentemente constrangido na hora de decidir pela perda de prazo, por parte do Ministério Público, criado naquela oportunidade, sem que ninguém soubesse da sua existência, até mesmo porque ele de fato não existia.

A Constituição Federal protege o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito. Cuidou assim de não vedar a retroatividade das leis ou atos normativos, desde que mantivessem incólume a esfera jurídica daqueles que agiram sob o império da norma revogada e praticaram atos ou obtiveram vantagens jurídicas. Evitar-se-ia com isso a submissão do cidadão à tirania do poder estatal, pondo-se a salvo das contingências políticas posteriores, que manteriam o tráfego jurídico em constante transe. O Poder Judiciário, de outra banda, teria como tutelar esses interesses constitucionalmente protegidos, mantendo a necessária estabilidade das relações jurídicas.

Curiosamente, quando o Poder Judiciário passa a exercer o poder regulamentar, mas vulneráveis ficam as esferas jurídicas do cidadão, porque aquele que edita as normas erga omnes é o mesmo que a aplica ao caso concreto. E, o que é pior, cria-se uma norma a partir e para o julgamento de um caso concreto. Há no RO 748 um diálogo impressionante entre Ministros. Pergunta Marco Aurélio, depois de fixado o prazo de cinco dias: "A representação foi tempestiva? Senhor Presidente, nesse caso, deu entrada dentro dos cinco dias?". A resposta do Ministro Madeira: "Não". E o Ministro Marcos Aurélio pergunta: "Fixa-se não tendo em conta o caso concreto?". Responde Madeira: "Não. Só a questão de ordem." Diante da situação inusitada, obtemperou Marco Aurélio: "Presidente, estou mais perplexo ainda, porque simplesmente surge prazo que nada tem a ver com o processo. Fui informado pelo relator que, muito embora o Ministério Público tenha entrado tempos após o acontecimento glosado pelo art. 73, não haverá aplicação nesse caso. Isso só informa que se passa a atuar no campo legiferante, porque não se está interpretando a lei para aplicação no caso concreto. Estar-se-á realmente legislando sobre o tema e acho perigosíssimo da parte do Tribunal fazer isso sem que seja, sequer, via resolução para disciplinar as eleições. Uma coisa seria a atuação do Tribunal, no exame global, no exame em tese da matéria. Mas, apregoado o processo, no caso concreto, atuar em tese?". E, em seguida, concluiu ele: "Vejam, no exame do caso, segundo o relator, a matéria não é necessária à definição do recurso. Imagine-se que a questão de ordem, a definição, seja indispensável ao julgamento. Mas será algo conflitante, em passo seguinte, dizer-se que o que decidido na questão de ordem não guarda adequação com a situação concreta, porque, caso contrário, haveria a retroação da deliberação do Tribunal. Isso demonstra que a deliberação surge com contornos normativos.".

O entendimento firmado no RO 748, embora não esteja ainda pacificado, vem sendo aplicado pelo TSE e, na sua esteira, pelos tribunais regionais eleitorais. Aplicando-se, insista-se, a processos que já estavam em tramitação quando da questão de ordem suscitada. Parece-nos que há aqui flagrante inconstitucionalidade dessas decisões judiciais.


5. Conclusões.

Diante de todo o exposto, necessário firmar aqui algumas importantes conclusões:

1. Os prazos decadenciais apenas devem ser criados por lei, não podendo o Poder Judiciário criá-los, ainda mais porque ao fazê-lo excede inconstitucionalmente o seu poder regulamentar.

2. O interesse de agir é qualificado pela utilidade, necessidade e efetividade da tutela jurídica pretendida para proteger/realizar o direito substancial invocado, em face do ordenamento jurídico.

2.1. A fixação de prazo ope judicis para o exercício da representação do art.96 da Lei n° 9.504/97, como meio de aferir o interesse de agir, é insustentável, porque um prazo fatal (dies supremus) é preclusivo ou decadencial e não serve para aferir a utilidade que o processo possa dar ao interessado.

2.2. Sendo o interesse de agir observado em face da norma jurídica invocada (objeto litigioso), tem-se que a sanção do § 5º do art.73 da Lei n° 9.504/97 prevê a cassação do registro ou do diploma, razão pela qual há interesse de ajuizar a representação após as eleições. O TSE, quando muito, poderia invocar analogicamente o prazo decadencial de 15 dias, idêntico ao da ação de impugnação de mandato eletivo, previsto no art.14, § 10 da Constituição Federal. Aí não haveria criação de prazo decadencial, mas integração da lacuna legislativa.

3. A representação do art.96 da Lei n° 9.504/97 pode atacar condutas vedadas aos agentes públicos, aplicando a sanção de cassação do registro ou diploma e multa, no prazo de quinze dias após a diplomação. Todavia, atualmente prevalece no TSE o prazo fatal de cinco dias.

4. A ação de investigação judicial eleitoral pode atacar abuso de poder econômico ou político, uso indevido dos meios de comunicação, captação de sufrágio (art.41-A), as condutas vedadas aos agentes públicos (art.19 da Res.-TSE nº 22142 de 02 de março de 2006 (Instrução nº 99/06) aplicando a sanção de inelegibilidade para a eleição presente e futura (03 anos, etc) e no prazo até a diplomação.

5. A mesma conduta ilícita pode ser qualificada como abuso de poder político, ensejando o manejo da AIJE, no prazo até a diplomação, ou como conduta vedada aos agentes públicos, ensejando a representação do art.96, com prazo de quinze dias após a diplomação (Para o TSE, esse prazo seria de cinco dias a contar do conhecimento do fato). Cada uma das ações teria conseqüências distintas: aquela a inelegibilidade cominada; essa, a cassação do registro ou diploma (inelegibilidade simples).

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6. A aplicação do prazo decadencial de cinco dias às representações ajuizadas antes do RO 748 fere o ato jurídico perfeito e o direito adquirido dos interessados, em retroatividade indevida da norma geral e abstrata criada com efeito erga omnes.

7. Takará!


NOTAS

01 TSE, Ac. nº 748, Rel. Min. Luiz Carlos Lopes Madeira, publicado no DJ de 26/08/2005, p. 174.

02 ARESPE 25227/PB, rel. Min. Gilmar Ferreira Mendes, DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 19/08/2005, Página 152.

03 Os grifos foram apostos.

04 ARO 718/DF, rel. Min. Luiz Carlos Madeira, DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Data 17/06/2005, Página 161.

05Tratado de direito privado. Atualizada por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1999, t.1, p.68.

06As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: RT, 1977, p.46.

07 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p.52.

08Tratado de direito privado, t.1, cit., 74.

09 Todavia, a Resolução nº do TSE permite que os legitimados escolham o rito a ser utilizado para impugnar as condutas vedadas aos agentes públicos, mais uma vez editando normas em conflito com a sua própria jurisprudência, gerando mais uma série de confusões práticas. Eis o teor do texto do seu art.19: "As representações que visarem à apuração da hipótese disciplinada no art. 41-A da Lei nº 9.504/97 seguirão o rito previsto nos incisos I a XIII do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90, sendo facultativa a adoção do mesmo procedimento no que se refere a apreciação das chamadas condutas vedadas aos agentes públicos em campanha".

10 OST, François. O tempo do direito (Le temps du droit). Trad. de Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p.259-260.

11 Vide, por exemplo, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p.42, passim.

12Teoria dos princípios..., cit., p.49-50.

13Teoria dos princípios..., cit., p.26.

14Teoria dos princípios...., cit., p.33.

15Teoria dos princípios..., cit., p.52.

16 Sobre o tema, remeto o leitor ao meu Teoria da incidência da norma jurídica: crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, passim.

17Tratado de direito privado. Atualizada por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Boolkseller, 2000, tomo 6, p.173.

18 TSE, RESPE 15.322/CE, rel. Ministro Eduardo Ribeiro, DJ - Diário de Justiça, Data 24/03/2000, Página 126. Citado na RP 683/SE, rel. Ministro Peçanha Martins, DJ - Diário de Justiça, Data 13/08/2004, Página 401.

19 TSE, ARESPE/PR, rel. Ministro Luis Carlos Madeiras, DJ - Diário de Justiça, Volume I, Data 04/11/2005, Página 106.

20 MANDRIOLI, Crisanto. Corso di diritto processuale civile: Nozioni introduttive e disposizioni generali. Turim: G. Giappichelli, 1993, vol. I, p.50.

21Corso di diritto processuale civili..., cit., p.51.

22 RAPISARDA, Cristina. Profili della tutela civile inibitoria. Padova: Cedam, 1987, pp.28-30.

23Profili della tutela civili inibitoria, cit., p.81, com tradução livre.

24Apud RAPISARDA, Cristina. Profili della tutela civili inibitoria, cit., p.64.

25 DI MAJO, Adolfo. La tutela civile dei diritti. 4ª ed., Milão: Giuffrè, 2003, p.5.

26La tutela civile dei diritto, cit., p.7.

27 Nesse sentido, VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p.84. Ensina ele: "Se a proposição deôntica primária e a proposição deôntica secundária são ambas válidas na proposição jurídica total, o conectivo ou é usado em sua função includente". E adiante (p.85): "... O ou inclui a possibilidade de ambas serem válidas. De fato, são, na norma jurídica integral".

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Breves notas sobre o quinqüídio decadencial das representações do art. 96 da Lei Eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1021, 18 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8259. Acesso em: 19 abr. 2024.

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