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O uso dos mecanismos de tutela específica na implementação de deveres contratuais anexos

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20/04/2006 às 00:00
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Sumário:INTRODUÇÃO.1. NASCIMENTO DE DEVERES CONTRATUAIS ANEXOS.1.1. Concepção atual de contrato.1.2. Deveres originados da boa fé objetiva.1.2.1. Boa fé enquanto norma de conduta.1.2.2. Demais funções da boa fé.1.3. Deveres originados do equilíbrio contratual.2. TUTELA ESPECÍFICA DE DIREITOS E DEVERES.2.1. Tutela jurisdicional e tutela específica.2.2. Tipos de tutela específica.2.2.1. Tutela inibitória.2.2.2. Tutela preventiva executiva.2.2.3. Tutela reintegratória.2.2.4. Tutela das obrigações contratuais de fazer e não fazer.2.2.5. Tutela ressarcitória.2.3. Técnicas de tutela específica.2.3.1. Eficácias sentenciais.2.3.2. Meios de execução.3. TUTELA ESPECÍFICA DE DEVERES ANEXOS.3.1. Atividade lógico-cognitiva em relação aos deveres contratuais anexos e sua tutela específica: noções gerais.3.2. Fixação do tema: casuística.3.3. Limites à atividade jurisdicional.CONCLUSÃO.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

O presente estudo visa realizar a interação entre duas matérias que vêm conquistando espaço na seara jurídica brasileira atual.

De um lado, tem-se a relação obrigacional, em uma nova concepção, de norte mais solidarista que a anterior. Em função disso, criam-se uma série de deveres, a ela vinculados, provindo de fontes como a boa fé objetiva e o equilíbrio contratual. Sendo o contrato um notável instrumento de construção da sociedade e envolvendo, para sua realização, tal sorte de deveres a serem mantidos constantemente – os quais, volta e meia, restam descumpridos pelos contratantes – necessário definir os meios mais eficazes para consecução de tais elementos.

Em outra banda, subiu à tona a importância da proteção aos direitos em si, antes que a lesão aos mesmos se transmude em dano – tutela específica –, em contraface à indenização pecuniária que se entendia como único – ou principal – consectário à tal violação do direito, e que tão-somente conseguia corrigir o dano resultante.

Para tanto, o ordenamento jurídico brasileiro prevê uma série de mecanismos de tutela jurisdicional relativos a deveres de fazer e de não fazer e de entrega de coisa. Seu uso é direcionado tanto ao bojo do processo de conhecimento – seja sob rito comum, previsto nos artigos 461 e seguintes do Código de Processo Civil, seja quanto aos processos que amparam direitos do consumidor, consagrados no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor, seja nos demais procedimentos especiais – quanto ao processo de execução clássico.

De igual forma, foi acentuado o caráter de tutela dentro da mesma relação processual em que é lavrada a sentença. Para tanto, possibilitou-se ao magistrado imprimir certa eficácia à sentença que profere (mandamental e executiva lato sensu) e operacionalizar vasto cabedal de medidas para que o resultado desejado seja alcançado o mais breve e aproximadamente possível do direito material.

Pela novidade do tema estima-se que certa parcela dos operadores do Direito demonstre ainda um entendimento meramente superficial da matéria, o que realça a importância deste trabalho, o qual visa indicar formas de atingir o objetivo mencionado.

Assim, deseja-se fornecer alguns subsídios sobre cada uma das áreas referidas e demonstrar – mediante fixação de alguns parâmetros e demonstração casuística – a sistemática de implantação dos citados direitos materiais através dos mecanismos processuais referidos.

Faz-se a ressalva de que o presente estudo não almeja, utopicamente, expor com exacerbada profundidade o tema, mesmo porque depara-se com objeto complexo, alvo de inúmeros tratados onde restam dissecadas suas nuances.

Objetiva-se, tão-somente, colocar à mostra instrumentos para que seja entendida a da relação obrigacional através do foco escolhido e tomado conhecimento do cabedal de meios existentes para satisfazer as pretensões originadas nesse campo, no Direito hodierno.

À medida que a matéria vem servindo de base a inúmeras decisões judiciais e comportamentos contratuais cotidianos, ressalta-se novamente a importância do estudo.

Utilizou-se, como método de procedimento, a pesquisa legal, bibliográfica e jurisprudencial e a interpretação e concatenação dessa base de conhecimento.

O trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, é analisada a nova concepção do instituto contrato e da relação obrigacional dele derivada, bem como os elementos – boa fé objetiva e equilíbrio contratual – que passaram a ser tomados em conta quando do exame desse campo e os deveres que se originam de tais fontes, com suas peculiaridades.

Na segunda divisão, considera-se a noção de tutela específica – dentro da tutela jurisdicional do Estado – e os métodos de implantação desse instrumental postos no Direito brasileiro atual – com a caracterização de cada espécie de tutela em sentido estrito, das eficácias dos provimentos que veiculam tais tutelas e dos meios de execução desses julgados.

Por fim, no terceiro capítulo são correlacionadas as duas espécies de conhecimento, mediante análise de algumas hipóteses, no fito de melhor demonstrar a sistemática de implementação da tutela específica dos deveres contratuais anexos e estabelecidos limites à atividade jurisdicional nesse campo.

Feita breve análise acerca daquilo a que o trabalho se propõe, passa-se ao estudo do tema.


1. NASCIMENTO DE DEVERES CONTRATUAIS ANEXOS

1.1. Concepção atual de contrato

O termo contrato denota o acordo de vontades entre pessoas – físicas ou jurídicas – que objetiva constituir uma relação jurídica de natureza patrimonial e eficácia obrigacional. Trata-se da concepção tradicional desse ato jurídico, conforme lição de GOMES [01]. No dizer de MONTEIRO [02], seria "o acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito."

Há até pouco tempo, fruto das idéias do Liberalismo, o ato jurídico contrato era a pura concretização individualista da autonomia da vontade, baseada numa concepção de que, em existindo igualdade formal [03] entre os contratantes, haveria plena liberdade de manifestação volitiva, com estabelecimento quase ilimitado do conteúdo contratual. A legislação que regulasse a matéria teria papel meramente interpretador ou supletivo, para proteger a vontade criadora e assegurar os efeitos desejados pelos contratantes.

Ocorre que, por pensamento originado principalmente após o advento do Código Civil italiano de 1942 [04], o homem passou a ser considerado no âmbito social, incluso em diversas relações jurídicas. O Estado, ao invés de se limitar a assistir à movimentação social, começou a intervir, nessa seara, para garantir o cumprimento dos postulados que fixou objetivando a construção da sociedade desejada, seja no tocante ao livre desenvolvimento da personalidade de seus cidadãos, seja para consecução de uma suficiente e regulada base produtiva.

O contrato, frente a esse novo pensamento, expressamente positivado em nossa Constituição Federal [05], é entendido não mais como mero instrumento motor da circulação de riquezas, mas como instrumento de convivência social. Impõe-se, assim, nesse campo, condutas que tomem por base a chamada solidariedade contratual [06], originada da co-relação entre a solidariedade social – objetivo de nosso Estado – e a, hoje relativa, liberdade contratual. É um mecanismo posto a serviço não mais do indivíduo, mas das necessidades sociais – expressa principalmente nos conceitos éticos de paz social e de bem comum –, que se tornaram elemento do contrato. Estamos diante da chamada funcionalização do direito, em que o exercício de certo poder somente é legítimo se tiver em vista determinada finalidade.

Importante ressaltar, porém, que a vontade dos indivíduos não foi relegada a segundo plano; ocupa ainda lugar de relevo. Ocorre que foram jurisdicizados interesses outros, a que o ordenamento confere relevância, para que a liberdade das pessoas em estabelecer vinculações mútuas não os confrontassem.

Dessa forma, as normas privatistas devem ser avaliadas sob o prisma dos princípios constitucionais, e as condutas realizadas ao longo do contrato devem obedecer a uma ética que objetive a boa realização de tais programas. O novo Código Civil positivou o entendimento, em alguns de seus aspectos.

Tenha-se em mente o artigo 421 [07], por exemplo, que vem a ser projeção daquilo que, de modo mais genérico, está programado na Carta Maior (artigos 3º e 5º, inciso XXIII, v. g.). Essa cláusula geral da função social do contrato desempenha duplo papel, como condicionante à liberdade contratual (conceito negativo) e como elemento integrante do conceito de contrato (conceito positivo), servindo na interpretação e na concretização das normas contratuais específicas. Tem a função, aqui, além de norte aos executantes da avença, de modelo para o julgador, ao construir o sentido das imposições contratualmente feitas, quando da avaliação processual de tal situação jurídica [08].

Mudou o instituto contrato, como ato jurídico vinculante entre as partes, e mudou também a relação obrigacional, que vem a ser o conteúdo material do contrato.

Pelo sistema anterior, centrado na análise externa dos elementos constitutivos do contrato, a relação obrigacional era compreendida como vínculo estruturado sobre dois pólos – credor e devedor –, ligados pelos co-respectivos direitos e deveres. Não eram analisados os diversos graus de intensidade de tais direitos e deveres, tampouco o desenvolvimento e mudança deles ao longo do tempo, até porque as relações eram mais estáveis, refletindo a sociedade em que se aconteciam.

Já no modelo preceituado para adoção nos dias de hoje, qual seja a análise interna da relação, de inspiração finalista, fulcrada no adimplemento como objetivo-mor do contrato, é considerado o contrato em concreto, como um todo dinâmico de direitos, deveres, faculdades, ônus e expectativas dos contratantes, que surgem a cada momento, mesmo após a satisfação da obrigação principal. Leva-se em conta as peculiaridades dos contratantes e o contexto do pacto; em outras palavras, passa a ter valor jurídico a mudança que a chamada base objetiva sofre ao longo do desenvolvimento da relação [09].

Trata-se de uma visão transindividual, em que se observa os interesses de outros sujeitos, senão do Estado como um todo, além dos interesses dos titulares das prestações principais.

Nessa mudança de visão, de externa para interna, a relação obrigacional deixa de ser entendida como algo estático, para ser compreendida como um encadeamento de atos, em forma processual, que tendem ao adimplemento do dever [10].

Hoje, o fulcro não é mais o vínculo obrigacional existente entre os sujeitos da relação, mas os efeitos que tal liame gera e as necessidades existentes para que o contrato chegue ao seu fim maior, que é o cumprimento.

Justamente por essa análise de norte mais subjetivo, faz-se necessário a consideração de alguns conceitos flexíveis ou fórmulas ordenadoras. Daí deriva a força que os postulados da boa fé objetiva e do equilíbrio contratual ganharam nos últimos tempos em nosso ordenamento.

1.2. Deveres originados da boa fé objetiva

Quando da concepção antiga de contrato, examinava-se a boa fé subjetiva, ou seja, havia proteção daquele que tem a consciência de estar agindo conforme o direito, ao contratar, embora não esteja. A teoria da aparência representa a cláusula geral a abrigar tal instituto, e são vários os exemplos de previsão nos códigos como, por exemplo, a proteção da posse de boa fé [11].

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Atualmente, contudo, por ser avaliado o contrato e as obrigações enquanto conceito dinâmico, não se considera mais o momento da criação do pacto, apenas, mas a relação jurídica em sua integralidade.

Nessa senda, por ser o contrato colaboração intersubjetiva, baseada na confiança, tendo por fim alcançar certos interesses principais, deve tal confiança restar assegurada por conjunto de princípios e regras que permitam a observância do pactuado, através cumprimento de deveres que exsurgem ao longo da relação.

Não basta, desse modo, os contratantes estarem de boa fé – ou seja, acreditarem que venham agindo regularmente, sem lesar direito alheio – mas devem proceder de boa fé, para não criar falsas expectativas e satisfazer as expectativas criadas – conceitos negativo e positivo.

Essa espécie de boa fé, chamada objetiva, exige um plus, uma manifestação exterior – além da crença interna do contratante em estar agindo corretamente – que norteia a colaboração intersubjetiva. Em síntese da lavra do mestre AGUIAR JÚNIOR [12], segundo os ditames da boa fé objetiva, "a inter-relação humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança [13] e lealdade" [14].

No dizer de MARTINS-COSTA [15], a boa fé, na acepção objetiva [16], teria três funções, quais sejam (1) de "norma de conduta que impõe aos participantes da relação obrigacional um agir pautado pela lealdade, pela colaboração intersubjetiva (...), pela consideração dos interesses da contraparte", (2) de critério de interpretação dos negócios jurídicos e (3) de parâmetro limitador ao exercício dos direitos subjetivos [17].

Veja-se cada uma delas mais detalhadamente.

1.2.1. Boa fé enquanto norma de conduta

Como norma de conduta, a boa fé objetiva engloba todas as pessoas que participam do vínculo obrigacional e estabelece, entre elas, um elo de cooperação, em face do objetivo a que visam [18].

Avalia-se não mais apenas o adimplemento dos interesses vinculados direta ou indiretamente à prestação principal – advindos da vontade –, mas também o cumprimento de certos deveres comportamentais, ligados à manutenção do estado pessoal e patrimonial dos integrantes da relação e à manutenção da própria relação – advindos do liame de confiança que ela envolve.

Essa necessidade cria os chamados deveres secundários, anexos, ou instrumentais, que englobam a relação obrigacional desde antes do seu nascimento, até mesmo depois do adimplemento da prestação principal [19].

Consistem em [20]:

(a) atos de esclarecimento, com caráter meramente declaratório. Este dever de informar significa tornar clara certa circunstância que o outro ignora, tem conhecimento imperfeito ou errôneo. Isso porque tais informações são fundamentais para a tomada de decisão do outro parceiro. Exemplo é a prestação de contas ou a manifestação, pelo locatário ao locador, acerca de situação que possa vir a afetar o imóvel locado; ou a necessidade de redação clara, objetiva e destacada das cláusulas contratuais em um contrato de adesão. Por óbvio somente se exige que uma parte indique certa situação para o co-contratante, quando dessa situação tenha ciência.

Visualiza-se tal dever já na fase pré-contratual; persiste ele ao longo da relação e, mesmo na fase pós-contratual continua subsistindo [21].

Importante ressaltar ainda que, hoje, principalmente em face do Código de Defesa do Consumidor, foi invertida a regra que ordenava ao aceitante uma atitude ativa, em busca de informações – sendo a ele atribuídas as conseqüências da não tomada desta postura – para a regra que manda o proponente fornecer todas as informações necessárias, sob pena de a ele serem atribuídos os riscos da falta de informação [22].

(b) atos de cooperação para obtenção da finalidade da avença. Tal dever significa colaborar antes, durante e depois [23] da execução do contrato, para que seja atingido o adimplemento de forma total, agindo como lealdade, sem obstruir – por ação ou omissão – o cumprimento dos deveres principais.

Estes atos têm caráter material, primordialmente. Por exemplo, não deve o credor dificultar o pagamento, impondo local especial e horas difíceis ou criando procedimentos burocráticos.

Do mesmo modo que o dever de informar, o dever de cooperar reflete-se na redação das cláusulas contratuais, como no destaque de regras que limitem ou excluam os direitos do consumidor, para que a avença não venha a ser dissolvida pela falta de condições de uma das partes.

A doutrina alemã considera incluído, no dever de cooperar de modo positivo, o dever de renegociar o contrato quando haja modificação substancial das condições objetivas que levaram ao fechamento do pacto, com o fito de promover, mesmo nesse momento de dificuldade, a manutenção do vínculo, em função do seu preponderante papel social [24]. No microssistema consumerista brasileiro (Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90), tal dever encontra-se positivado, a regular casos específicos, nos artigos 6º, inciso V e 53 e uma das faces do dever de renegociação – sua argüição em juízo (revisão judicial) – é consagrada doutrinária e jurisprudencialmente [25].

MARQUES [26] acrescenta mais uma espécie de dever anexo, (c) o de cuidado, que significa preservar o co-contratante de danos à sua integridade pessoal e patrimonial. São condutas compatíveis a ele precipuamente, entre outras: agir com precaução ao divulgar informações cujo conhecimento se tomou em função da relação contratual; utilizar um meio técnico seguro na prestação do serviço (principalmente em transportes); assumir a parte hipersuficiente os riscos da atividade econômica; não levar o nome do autor a cadastros de inadimplentes, causando dano moral.

Os deveres anexos podem ser divididos, ainda, em independentes – quando tenham finalidade diversa da obrigação principal e possam ser acionados independentemente da prestação–eixo, sem com isso acarretar o desfazimento dela – e dependentes – em que seu descumprimento acarreta inarredavelmente o inadimplemento da prestação principal [27]. Exemplo dos primeiros é o do sócio que, saindo de sociedade, cede informações que venham a prejudicar aquela pessoa jurídica que outrora compunha.

Anteriormente, havia previsão da imposição de conduta baseada na boa fé apenas em disposições esparsas do Código Civil, como a exigência de declarações sinceras emitidas pelo contratante de seguro (artigos 1443 e 1444).

Hoje vem especificadamente prevista no artigo 422 do novo Código Civil [28], cláusula geral que impõe o dever de conduta segundo a boa fé a todas as relações contratuais. No Código de Defesa do Consumidor encontra-se tal disposição, entre outros, nos artigos 51, inciso IV, como cláusula geral [29], no artigo 42, como hipótese de dever de proteção [30] e no artigo 8º, como hipótese de dever de proteção e informação [31].

Necessário repisar, por fim, que os deveres secundários não surgem somente durante a execução do contrato, mas antes mesmo de sua formação, bem como subsistem após o adimplemento da prestação principal.

A teoria do contato social serve para justificar o nascimento de direitos e obrigações quando não existe, a rigor, o instituto contrato. Pode ser entendido como a atenção ao princípio da boa fé objetiva antes de manifestação formal da vontade de contratar, ocasião em que nascem expectativas legítimas das partes, mesmo que não venham a se concretizar em pacto, posteriormente. Apesar de COUTO E SILVA [32], em meados da década de 70, mostrar-se pessimista quanto à adoção de tal tese, o Código de Defesa do Consumidor positivou uma série de deveres pré-contratuais oriundos da boa fé objetiva [33], implicitamente dando crédito a tal construção jurídica.

Já o tratamento da relação pré-contratual, frente às novas normas civis, de outra banda, leva em conta a hodierna concepção da relação obrigacional, a conjunção entre o artigo 187 e o 927 do Código Civil e a norma de interpretação dos negócios jurídicos (artigo 113 do mesmo diploma).

Frise-se o papel preponderante que o dever de informar tem nessa fase, pois as informações prestadas passam a ser juridicamente relevantes, mesmo que não se considere a teoria do contato, a partir do momento que integram a relação contratual futura, já que deverão ser cumpridas na fase de execução do contrato.

Como bem expõe MARTINS-COSTA [34], para sintetizar o tema:

A fase do nascimento dos deveres, por sua vez, nem sempre nasce ex abrupto e nem termina sem deixar rastros, pois pode ser antecedida por tratativas, negociações preparatórias, nas quais se alocam deveres jurídicos, e pode ser seguida por um período ainda marcado por deveres, ditos pós-contratuais. Por sua vez, a fase do desenvolvimento pode sofrer as mais diversas vicissitudes, decorrentes do tempo e das circunstancias, por forma a gerar direitos, deveres, poderes formativos, modificativos e extintivos, sujeições e ônus não originalmente previstos, sem que a relação, mesmo modificada, perca a sua unidade substancial e finalística. Assim, a compreensão da relação em sua complexidade, evidencia, ao lado dos deveres de prestação (principais e secundários), os já aludidos deveres de proteção, laterais, "anexos" ou "instrumentais", além de direitos potestativos, sujeições, ônus jurídicos, expectativas jurídicas, todos coligados, como diz Almeida Costa, "em atenção a um identidade de fim", constituindo o conteúdo de uma relação de caráter unitário e funcional, isto é, justamente a relação obrigacional complexa.

1.2.2. Demais funções da boa fé

O princípio da boa fé como norma de interpretação já vinha previsto no artigo 131 do Código Comercial. Hoje, encontra-se presente no artigo 113 do Código Civil [35] e, aplicável ao microssistema consumerista, no artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor [36].

Já o uso da construção referida como limitação ao exercício dos direitos está positivada precipuamente no artigo 187 do Código Civil [37]. Enorme importância tem essa disposição, pois foi criada (ou, em outro entendimento, meramente positivada) modalidade de responsabilidade civil pelos atos ilícitos advindos do agir em desobediência ao preceito da boa fé objetiva, quando a violação ao direito cause danos (artigo 927 do Código Civil).

Dessa forma, importante é a análise do princípio que veda venire contra factum proprium, manifesto no referido artigo 187, que incide na fase de execução, mas também no período pré-contratual – negociações preliminares. Tal princípio faz ilícito o aproveitamento de situações prejudiciais ao outro, ocasionadas pelo titular do direito.

Agiria assim quem, estabelecendo critérios ou agindo de maneira a atingir certos fins, modifica tais critérios ou altera o modo de agir, em prejuízo de outrem. Exemplo é a omissão em informar ao parceiro pré-contratual acerca de certo requisito de forma e, depois, por tal motivo, requerer a nulidade do pacto ou suspender as tratativas. Dessa forma, pode ser responsabilizado civilmente, hoje, sujeito que atue em contrariedade à boa fé, mesmo que não chegue a se concretizar negócio jurídico [38].

No uso da boa fé objetiva como limitador ao exercício dos direitos, surgiu ainda, na jurisprudência [39], a teoria do adimplemento substancial, a significar que, uma vez tendo havido cumprimento próximo do resultado final esperado, fica excluído o direito à resolução do contrato, restando facultado apenas o pedido de adimplemento e de perdas e danos [40].

1.3. Deveres originados do equilíbrio contratual

Outra idéia, incrustada no conceito de contrato – por tratar-se de instrumento que envolve basicamente permuta de direitos –, correlata à boa fé objetiva – mais especificamente ao dever de cooperar para o adimplemento – e advinda da confiança – que hoje representa um dos elementos do contrato – é a exigência de um equilíbrio mínimo das prestações e contraprestações.

Era corrente, até pouco tempo atrás, o pensamento, de inspiração liberal, de que o contrato traria em si uma natural equidade. Hoje se sabe que assim não o é, e que o contrato deve ter, então, uma regulamentação sensata, com razoável distribuição de riscos e preservação das expectativas das partes.

Caso contrário, desde o nascimento ou durante a execução, cabe ao Estado, através de sua função legislativa e judicial, manter o equilíbrio, para que a avença atinja o seu fim social. Isso porque a falta de equilíbrio traz a abusividade, ou descompasso entre direitos e obrigações, que impede a realização total do objetivo contratual, frustrando os interesses básicos das partes e gerando males sociais como a exclusão e o superendividamento.

A hipóteses em que ocorra tal disfunção se aplica a teoria da lesão [41], quando a desproporção se dê desde o momento da formação do pacto e a teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico, quando o desequilíbrio se dê durante a execução do contrato.

Por base do negócio jurídico temos [42] "o conjunto daquelas circunstâncias, sem cuja existência, manutenção ou verificação futura, o escopo, perseguido pelo negócio e determinado de acordo com o seu conteúdo, não pode ser obtido através do negócio, apesar dele ter sido devidamente concluído".

Já nos dizeres do mestre gaúcho COUTO E SILVA [43]:

A "base objetiva do negócio jurídico" decorre de uma" tensão" ou "polaridade" entre os aspectos voluntaristas do contrato – aspecto subjetivo – e o seu meio econômico – aspecto institucional – o que relativisa (sic), nas situações mais dramáticas, a aludida vontade, para permitir a adaptação do contrato à realidade subjacente.

Note-se que a teoria da quebra da base objetiva do negócio tem maior abrangência do que a hipótese de resolução positivada no artigo 478 do Código Civil, porque aqui somente é admitida a resolução do pacto quando haja, além da onerosidade excessiva a uma das partes ocasionada por evento extraordinário, vantagem desmensurada para a outra. Fica muito limitada a abrangência do dispositivo, assim, ao recordar-se que a maioria dos eventos imprevisíveis (guerras, revoluções, etc) não trazem vantagem a nenhuma das partes. Além disso, a teoria da quebra da base objetiva permite uma readaptação do negócio com a manutenção da relação, enquanto o citado artigo somente prevê a dissolução do vínculo.

Importante salientar que, uma vez ocorrendo o desequilíbrio severo, além do surgimento do dever de readaptação, aparece o dever do devedor em informar o seu parceiro negocial acerca da situação.

Portanto, também em tais situações de desequilíbrio, nascem deveres jurídicos "anexos", a serem operacionalizados judicialmente [44].

Pois bem. Finalizada essa exposição acerca do nascimento e configuração dos deveres anexos, passa-se à abordagem do método utilizado hodiernamente para garantir o cumprimento dos deveres.

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Sobre o autor
Ângelo Madar Piva

advogado no Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIVA, Ângelo Madar. O uso dos mecanismos de tutela específica na implementação de deveres contratuais anexos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1023, 20 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8279. Acesso em: 28 mar. 2024.

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