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A responsabilidade civil do administrador não-sócio, segundo o novo Código Civil

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02/05/2006 às 00:00
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4. A RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR NAS HIPÓTESES DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A primeira inserção legislativa, em nosso ordenamento jurídico, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também chamada disregard doctrine se deu com o Código do Consumidor (Lei 8.708, de 11.09.1990), cujo art. 28 estabeleceu:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

A partir daí, tornou-se patente a orientação de nosso legislador de incorporar, pouco a pouco, a disregard doctrine ao ordenamento legal. Nesse sentido veio dispor o art. 4.º da Lei 9.605/98, que tratou dos crimes contra o meio ambiente:

"Art. 4.º Poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos à qualidade do meio ambiente".

Observe-se que, até então, não se mencionou expressamente a responsabilidade de quem não era sócio da pessoa jurídica. A desconsideração da personalidade civil sempre teve como conseqüência a constrição pessoal dos bens dos sócios.

A partir da entrada em vigor do novo Código Civil, e dentro dessa linha de ampliação da responsabilização civil do administrador, veio a lume a norma consubstanciada no art. 50, versando sobre desconsideração da personalidade jurídica e prevendo expressamente a constrição de bens particulares de administradores não-sócios, sempre que tiver havido uso abusivo da empresa, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, imputável ao administrador.

Eis o dispositivo:

"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".

O artigo transcrito, portanto, permite a desconsideração, necessariamente por decisão judicial, sempre que houver abuso da personalidade jurídica. A fórmula sugerida – extensão dos efeitos obrigacionais aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica – visa a superar a discussão sobre se esta responde ou não, conjuntamente com os sócios ou administradores, além de esclarecer que também o administrador não-sócio poderá ser chamado a responder pessoalmente.


5. CRITÉRIOS PARA SE AFERIR O VALOR DA INDENIZAÇÃO IMPOSTA AO ADMINISTRADOR

O principal critério é o da extensão do dano, tal como posto no art. 944 do CC ("A indenização mede-se pela extensão do dano"). Ou seja, o administrador será responsabilizado pelo valor integral do prejuízo que houver causado à sociedade ou a terceiros. Essa regra, no entanto, não é absoluta, tendo sido mitigada pelo próprio Código, ao dispor que "se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização" (art. 944. parágrafo único). [19]


6. CONCLUSÃO

Com o advento do novo Código Civil, foi ampliado de forma significativa o enfoque da responsabilização dos administradores das sociedades. Portanto, cabe a eles adotar as cautelas necessárias nos atos de gestão, a fim de evitar as hipóteses de responsabilidade solidária, decorrentes das relações de direito privado – societária e de consumo, bem como das decorrentes de previsão legal do direito público (tributário, previdenciário, trabalhista e ambiental).

E a cautela a ser adotada pode ser resumida a uma única atitude: observar rigorosamente ao que dispõe o art. 1.011 do novo CC. O dispositivo trata do dever de diligência dos administradores das sociedades e foi copiado da Lei das S.A., art. 153, que dispõe:

"O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios".

Esse dever de diligência e lealdade representa o principal parâmetro de aferição dos atos de gestão praticados pelo administrador. Para Joaquim Manhães Moreira, "o Código exige que os administradores utilizem no desempenho das suas atribuições os mesmos cuidados e diligência que todo homem ativo e probo emprega na administração do seu próprio patrimônio. Se o Código exigisse dos administradores apenas o cuidado dos homens probos, certamente eles não precisariam se preocupar em aumentar o patrimônio da empresa, mas apenas em conservá-lo. No extremo poderiam entender que o cumprimento das suas missões deveria consistir apenas em manter a empresa inativa. Mas ao exigir também a diligência do homem ativo, o Código impõe aos administradores o dever de aumentar o patrimônio da empresa, através do aproveitamento das oportunidades de mercado". [20] No oposto da diligência, tem-se a negligência, que significa "desídia no cumprimento das funções. O administrador que permite atrasos na escrituração contábil ou na elaboração das demonstrações financeiras, ou que por qualquer modo consente no descontrole dos bens, direitos e passivos da empresa, age com negligência. Também age com negligência o administrador que toma conhecimento de uma oportunidade comercial para a empresa e não determina a tomada de ações para o seu aproveitamento". [21]

Ressalta, finalmente, Fábio Ulhoa Coelho que "quando o administrador não cumpre seus deveres de atuar como homem diligente e leal, e, em decorrência, a sociedade sofre danos, ele está obrigado a ressarci-los. É o caso, por exemplo, do diretor que não cota preços, ao adquirir insumos para a empresa; que não se dedica a negociações constantes com os fornecedores sobre valores e condições de pagamento; que não exige dos empregados o cumprimento integral da jornada de trabalho; que, identificando uma oportunidade negocial interessante, aproveita-a para si, mas não para a sociedade. Nessas situações, as perdas e os lucros cessantes da pessoa jurídica devem ser indenizados pelo mau administrador". [22]

Em suma, poderemos concluir que a responsabilidade civil do administrador não-sócio terá lugar sempre que desatendido o dever geral de diligência e lealdade.


NOTAS

  1. Como a coisa ainda não estava individualizada, a sua perda ou deterioração, ainda que por caso fortuito ou força maior, não aproveita ao devedor, vale dizer, a obrigação de entregar permanece. Assim, se um fazendeiro se obrigou a entregar 10 (dez) sacas de milho e, antes da entrega, todas as sacas desse produto existentes em sua fazenda venham a perecer, ainda estará ele obrigado a fazer a entrega, mesmo porque poderá obter em outra fazenda, ou mesmo no comércio, o milho prometido. A não ser que o gênero da obrigação seja limitado. Digamos, voltando ao exemplo anterior, que o fazendeiro tivesse se obrigado a entregar 10 (dez) sacas de milho de sua fazenda. Aí sim, perecendo todas, a obrigação estaria resolvida.

  2. Na impossibilidade da prestação por caso fortuito ou força maior, estes ocorridos antes da mora, em regra, nenhuma responsabilidade poderá ser imputada ao devedor. Se a impossibilidade ocorrer depois da mora, o devedor responderá por perdas e danos, pois assumiu o risco de permanecer com a coisa ou de retardar o cumprimento da obrigação.

  3. Discute-se, atualmente, qual seria o percentual dessa taxa. Para alguns, aplicar-se-ia a Selic, para outros o percentual de 1% ao mês previsto no Código Tributário Nacional.

  4. 38 – Art. 927: "A responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade" (Enunciado 38, aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002).

  5. 42 – Art. 931: "O art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos". 43 – Art. 931: "A responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento" (Enunciados aprovados na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002).

  6. Note-se que, para exercer cargo de administrador, não é necessário ter concluído o curso superior de administração de empresas e encontrar-se inscrito no conselho profissional respectivo; a lei não o exige.

  7. Os tipos societários personificados regulados pelo Código Civil são os seguintes: sociedade simples (arts. 997-1.038), sociedade em nome coletivo (arts. 1.039-1.044), sociedade em comandita simples (arts. 1.045-1.051) e a sociedade limitada (arts. 1.052-1.087). As sociedades anônimas continuam a ser regidas por lei especial – Lei 6.404/76 (Lei das S.A.).

  8. "Art. 1.012. O administrador, nomeado por instrumento em separado, deve averbá-lo à margem da inscrição da sociedade, e, pelos atos que praticar, antes de requerer a averbação, responde pessoal e solidariamente com a sociedade."

  9. "Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais."

  10. Pela teoria ultra vires qualquer ato praticado pela pessoa jurídica que extrapole o seu objeto social é nulo.

  11. Marlon Tomazette, As sociedades simples no novo Código Civil, Jus Navigandi, a. 7, n. 62, Teresina, fev. 2003. Disponível em: <jus.com.br/artigos/3691>.

  12. Idem, ibidem.

  13. Dispõe o art. 1.016: "Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções". Se a administração da sociedade competir a duas ou mais pessoas, serão elas solidariamente responsáveis entre si, perante os sócios e também perante terceiros. Essa responsabilidade é solidária entre os administradores, o que significa dizer que pela ação ou omissão de um deles todos responderão com seus respectivos patrimônios pessoais. Observe-se, no entanto, não se tratar de solidariedade entre os administradores e a sociedade, mas entre os administradores. Nada obsta, entretanto, que o prejudicado acione diretamente a sociedade, a qual, como regra geral, responderá pelos atos de seus administradores, salvo as exceções previstas no parágrafo único do art. 1.015, cabendo-lhe o eventual direito de regresso.

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  14. Dispõe o art. 1.013, § 2.º, que "responde por perdas e danos perante a sociedade o administrador que realizar operações, sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a maioria". Para que incida a responsabilidade pessoal do administrador, é preciso que ele tenha, ou devesse ter, o conhecimento de que estava contrariando a maioria dos detentores do capital. Daí por que, nas situações concretas, aconselha-se ao administrador não-sócio observar rigidamente os limites de poderes estabelecidos no contrato social ou no instrumento de nomeação, não devendo, jamais, excedê-los, ainda quando eventualmente instado pelos sócios.

  15. A dicção do art. 1.017, caput, é expressa ao dispor: "O administrador que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá". Trata-se de obrigação de indenizar, em sentido amplo, vale dizer, além de restituir, o administrador poderá ser compelido a pagar juros à sociedade, calculados com base nas taxas que ela deixar de auferir, se os recursos estivessem aplicados no mercado financeiro, ou ainda os juros que ela tiver sido obrigada a pagar, nos casos em que houver captado empréstimo.

  16. Dispõe o art. 1.017, parágrafo único, que ficará "sujeito às sanções o administrador que, tendo em qualquer operação interesse contrário ao da sociedade, tome parte na correspondente deliberação". Ou seja, o administrador não poderá, sob pena de responder com o seu patrimônio pessoal, tomar parte em uma decisão na qual possua interesse contrário ao da empresa. Esse dever de abstenção abrange todo tipo de decisão, seja comercial, trabalhista, civil ou tributária.

  17. A responsabilidade pessoal do administrador sob o novo Código Civil. Disponível em: Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) e Intelligentia Jurídica (www.intelligentiajuridica.com.br).

  18. Idem, ibidem.

  19. Para desestimular a indústria das indenizações e evitar situações caricatas, como as seguintes, todas ocorrentes nos EUA: 1 – Carl Truman, 19 anos, de Los Angeles, ganhou o reembolso de despesas médicas e US$ 74 mil de indenização do motorista de um carro que passou em cima de sua mão. O motorista deu partida e andou, sem perceber que Truman estava roubando suas calotas. 2 – Terence Dickson, de Bristol, roubou uma casa e quis sair pela garagem. Portão enguiçado. Tentou voltar para a casa, mas a porta tinha batido e se trancara. Passou oito dias na garagem, com algumas latas de Pepsi e um saco de ração de cachorro. Só saiu quando os donos voltaram de viagem. Ganhou US$ 500 mil de indenização por "angústia mental indevida". 3 – Merv Grazinski, de Oklahoma, levou o motor-home para a estrada, regulou a velocidade em 120 km/h e saiu do volante para fazer um cafezinho. O motor-home saiu da pista e capotou. Grazinski processou a fábrica porque o manual não dizia que o motorista precisa ficar na direção com o veículo em movimento. Ganhou um motor-home novo, mais US$ 1,75 milhão de indenização.

  20. Ob. cit.

  21. Idem.

  22. A sociedade limitada no novo Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 52.

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Sobre o autor
Mário Luiz Delgado

Advogado. Mestre (PUC-SP) e Doutor em Direito Civil (USP). Professor de Direito Civil na EPD - Escola Paulista de Direito e na FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado. Diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP e do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Mário Luiz. A responsabilidade civil do administrador não-sócio, segundo o novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1035, 2 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8320. Acesso em: 26 abr. 2024.

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