Sítio, prisão, obstrução da justiça

19/06/2020 às 10:10
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A análise exige muita serenidade para deixar a situação no seu real nível, ou seja, uma pessoa foi presa, logo após ser expedido seu mandado de aprisionamento, nada mais.

O Direito Penal democrático não se coaduna com a utilização das regras que estruturam o exercício de sua função essencial de limitação do poder punitivo, conforme manifestações midiáticas ou características pessoais da pessoa acusada.

Essa premissa é essencial quando se avalia o recente e rumuroso aprisionamento de Fabrício Queiroz em um sítio de propriedade de advogado que atua na defesa do Senador Flávio Bolsonaro, situação na qual determinados setores da imprensa e, mesmo do meio jurídico, assodadamente passaram a proclamar a ocorrência de crimes de obstrução da justiça.

Deixando de lado, neste momento, discussões importantes sobre a constitucionalidade ou não dos dispositivos em que, usualmente, tem sido trabalhados para enquadrar as condutas ditas de obstrução à justiça (artigo 2º, § 1º da Lei 12.850/2013 e artigo 348, CP), há que se observar, o crescimento da referência a estas hipóteses, como uma, entre tantas, das distorções criadas no âmbito da operação lava-jato, na qual o excessivo punitivismo, conduziu até mesmo a uma tentativa de legitimação de ameaça pelo Estado, para que todas as pessoas devam auxiliar a acusação, mesmo diretamente interessados no processo.

A questão em análise no presente texto é, porém,  mais simples, pois, taxativamente pode ser afirmado que o advogado, proprietário do imóvel onde o aprisionado estava domiciliado não cometeu sequer remotamente qualquer crime, eis que Fabrício Queroz não era foragido da justiça e, portanto, não tinha qualquer pessoa a obrigação de apresentá-lo a qualquer órgão de persecução penal, igualmente, não se impondo obrigação de negar-lhe auxílio.

No caso do advogado, a questão é ainda mais profunda, pois há prevalência das regras de sigilo  ética pofissional, de sorte que não incide contra ele qualquer obrigação de delatar o endereço no qual se encontrava a pessoa investigada, cabendo à autoridade policial realizar as diligêcia para localizá-la, como ocorrido no caso.

Localizada a pessoa, expedido o mandado de prisão, foi fiel e imediatamente cumprido, ou seja, tudo aconteceu dentro de absoluta nomalidade normativa e qualquer tentativa de constranger ou criminalizar o Advogado é grave ataque ao patamares evolutivos pela civilização, no que refere a relação das pessoas com o Estado.

Sobre o dever de sigilo e a ética do advogado, na sua relação com seu cliente, é de se ter muito claro que toda estrutura do Estado de Direito depende da credibilidade da solidez destes valores, pois a fragilização da relação cliente-advogado, submetendo-a à obrigação de ser o profissional da advocacia espécie de delator em desfavor de seu constituinte, faz com as promessas constitucionais de igualdade entre as partes do processo, de indispensabilidade do advogado para a administração da justiça, de contraditórios  e de ampla defesa, entre outras, serem letra morta.

Conveniente destacar, assim, que cogitar de obstrução da justiça contra o advogado de pessoa acusada ou investigada em determinado processo equivale a proclamar deve ser a defesa formal e aparente, portanto, o próprio Estado de Direito é uma simples ilusão.

Igualmente, o fato de ser Fabricio Queiroz encontrado no sítio de advogado com relações profissionais com a família Bolsonaro, não prova absolutamente nada em relação a qualquer responsabilidade penal, de qualquer de seus membros.

O princípio do estado de inocência é incompatível com a geração de presunções de culpa, portanto, deve haver efetiva demonstração de que uma pessoa praticou um fato descrito na lei penal como crime, não servindo as situações puramente genéricas e aparentes para gerar certeza alguma, na proporção de produzir afastamento de um princípio constitucional.

Isso vale para todos os cidadãos e assim deve ser, independe de suas posições, suas posturas ideológicas, não devendo ser proclamada a prevalência das regras limitadoras do poder punitivo e dos princípios fundamentais somente em favor da parcela da sociedade com a qual se simpatize.

Talvez, justamente a defesa da inafastável aplicação universal das regras que estruturam o atual nível civilizatório em matéria de justiça, seja o grande passo a ser dado pela sociedade brasileira, após vários atos de afronta ao processo democrático que o Brasil assistiu nos últimos anos, com inclusive com sua glamorisação por setores da mídia.

Aceitar que se cogite de crime por um advogado por cumprir com suas obrigações funcionais, ou gerar presunções de culpa a partir de conjecturas, mesmo falar em proteção à criminoso quando não se tem pessoa contra quem foi previamente expedida ordem de prisão, representaria negativa de tudo que deve ser defendido para o avanço do sistema penal de uma nação civilizada.

A análise exige muita serenidade para deixar a situação no seu real nível, ou seja, uma pessoa foi presa, logo após ser expedido seu mandado de aprisionamento, nada mais.

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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