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Paternidade socioafetiva e o retrocesso da Súmula nº 301 do STJ

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03/05/2006 às 00:00
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5. Limites de aplicação da Súmula 301

Pelas razões aduzidas, melhor seria que essa súmula nunca tivesse sido editada. Por outro lado, as razões de sua edição, os limites e restrições a seu alcance que se encontram dispersos em seus precedentes referidos, tendem a não ser considerados na aplicação cotidiana do direito, ante a inclinação natural de render-se à simples literalidade do enunciado. Ainda que não tenha efeito vinculante, na prática judiciária a súmula do STJ funciona com a mesma força normativa de regra legal, para os aplicadores do direito, o que bem demonstra o risco de otimização de seus desvios e equívocos.

Todavia, enquanto essa súmula perdurar, dois grandes limites implícitos devem ser observados para sua adequada aplicação e interpretação em conformidade com a Constituição e o Código Civil: a) não pode resultar em negação de paternidade derivada de estado de filiação comprovadamente constituído; b) a presunção de paternidade, em ação investigatória quando haja apenas mãe registral, depende da existência de provas indiciárias consistentes, não podendo ser aplicada isoladamente.

A Súmula 301 restringe-se à investigação da paternidade; assim é incabível como fundamento de ação negatória ou de impugnação de paternidade. A investigação ou reconhecimento judicial da paternidade tem por objetivo assegurar pai a quem não o tem, ou seja, na hipótese de genitor biológico que se negou a assumir a paternidade. Portanto, é incabível nas hipóteses de existência de estados de filiação não biológica protegidos pelo direito: adoção, inseminação artificial heteróloga e posse de estado de filiação. É totalmente incabível para constituir paternidade desconstituindo a existente.

O Código Civil apenas admite duas hipóteses de impugnação da paternidade: uma, pelo marido (art. 1.601), outra, pelo filho contra o reconhecimento da filiação (art. 1.614). Não há, pois, fundamento legal para a espantosa disseminação de ações negatórias de paternidade, com intuito de substituí-la por suposta paternidade genética. Só o marido pode impugnar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, que não sejam biologicamente seus. Esse direito é de exercício exclusivo e imprescritível, mas desde que não se tenha constituído o estado de filiação na convivência familiar duradoura. A impugnação do reconhecimento de filiação é exercício exclusivo do filho, quando atingir a maioridade e desde que o faça dentro do prazo decadencial de quatro anos após esse evento.

A segunda grande limitação é a impossibilidade de utilização isolada da presunção, significando dizer que é apenas um dos elementos que formam o convencimento do juiz. Sem prova ou provas indiciárias convincentes, trazidas aos autos pelo autor, não pode o juiz aplicar a súmula 301. Os precedentes da súmula deixam claro tal requisito. Nos julgamentos posteriores à súmula, ao longo de 2005, o STJ tem restringido sua aplicação, como se vê no RESP 692.242-MG, cuja ementa enuncia que

Apesar da Súmula 301/STJ ter feito referência à presunção juris tantum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar, minimamente, por meio de provas indiciárias a existência de relacionamento íntimo entre a mãe e o suposto pai.


6. A questão patrimonial e a solução jurídica que preserva a paternidade socioafetiva

A profunda mudança de paradigma da paternidade, no direito brasileiro, significou centralizar a atenção na realização existencial das pessoas envolvidas (pai e filho) e na afirmação de suas dignidades; em uma palavra, na repersonalização. Os interesses patrimoniais, que antes determinavam as soluções jurídicas nas relações de família, implícita ou explicitamente, perderam o protagonismo que detinham, assumindo posição de coadjuvantes dos interesses pessoais.

Assim, não podem os interesses patrimoniais ser móveis de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretendido genitor biológico falece, deixando herança considerável. Repita-se: a investigação de paternidade tem por objeto assegurar o pai a quem não tem e nunca para substituir a paternidade socioafetiva pela biológica, até porque esta só se impõe se corresponder àquela.

Todavia como resolver o inevitável conflito que se instaura entre esses interesses, de modo a preservar a paternidade socioafetiva? Sob outra perspectiva, é razoável a pretensão patrimonial daquele que teve negado seu originário direito à filiação, cuja paternidade foi assumida por outrem. Advirta-se que o conflito apenas é possível em se tratando de situações enquadráveis na posse de estado de filiação, pois os demais estados de filiação não-biológica, isto é, decorrentes de adoção e de inseminação artificial heteróloga, cortam integralmente a relação com o passado biológico; nestas duas últimas hipóteses, a presunção legal de paternidade é absoluta, não podendo haver qualquer relação jurídica com o genitor biológico, salvo para fins de impedimento para casar.

Tampouco pode ser admitido conflito de interesses que conduza a atribuir responsabilidade jurídica a dador anônimo de sêmen ou gametas crioconservados em instituições e destinados a reprodução medicamente assistida. O item 3 do Capítulo IV da Resolução n. 1.358/1992 do Conselho Federal de Medicina, estabelece norma deontológica - que serve de norte para decisão, à falta de norma jurídica geral - assim enunciada:

Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Posta a questão dentro desses limites, de que modo podem ser compatibilizados os interesses pessoais e patrimoniais, quando o conflito se der entre paternidade socioafetiva derivada de posse de estado de filiação e o pretendido interesse em imputar responsabilidade ao genitor biológico falecido? A resposta pode ser encontrada nas categorias gerais do sistema jurídico. O estado de filiação é matéria afeta ao direito de família, inviolável por decisão judicial que pretenda negá-lo, pelas razões já expostas. Não pode haver, consequentemente, sucessão hereditária entre filho de pai socioafetivo e seu genitor biológico; com relação a este não há direito de família ou de sucessões. Mas, é possível resolver-se a pretensão patrimonial no âmbito do direito das obrigações. É razoável atribuir-se-lhe um crédito decorrente do dano causado pelo inadimplemento dos deveres gerais de paternidade (educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, além dos demais direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição) por parte do genitor biológico falecido, cuja reparação pode ser fixada pelo juiz em valor equivalente ao de uma quota hereditária se herdeiro fosse. Para isso será necessário ajuizar ação de reparação de dano moral e material, habilitando-se no inventário como credor do espólio, com requerimento de reserva de bens equivalentes para garantia da ação.


7. Aargumentação conclusiva

A paternidade socioafetiva não é espécie acrescida, excepcional ou supletiva da paternidade biológica; é a própria natureza do paradigma atual da paternidade, cujas espécies são a biológica e a não-biológica. Em outros termos, toda a paternidade juridicamente considerada é socioafetiva, pouco importando sua origem. Nas situações freqüentes de pais casados ou que vivam em união estável, a paternidade e a maternidade biológicas realizam-se plenamente na dimensão socioafetiva. Sua complexidade radica no fato de não ser um simples dado da natureza, mas uma construção jurídica que leva em conta vários fatores sociais e afetivos reconfigurados como direitos e deveres. Superou-se a equação simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação hereditária, de outro. A paternidade é múnus assumido voluntariamente ou imposto por lei no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na convivência familiar duradoura.

Toda pessoa, especialmente a pessoa humana em formação, tem direito à paternidade. Se não a tem, porque ninguém a assumiu voluntariamente, pode investigá-la para que seja reconhecida judicialmente e imputada ao genitor biológico. No plano jurídico, a afetividade é princípio e, como tal, dotado de força normativa, impondo deveres e conseqüências por seu descumprimento. Por isso, não se confunde com o afeto como simples fato anímico e psicológico. A decisão judicial no reconhecimento forçado da filiação declara e impõe a paternidade em sua total dimensão socioafetiva, cujos deveres de natureza moral e material devem ser cumpridos.

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Nem toda paternidade socioafetiva resulta da consangüinidade, pois o direito assegura igualdade de direitos e deveres ao pai que assumiu voluntariamente o estado de filiação nas hipóteses adoção, de inseminação artificial heteróloga e de posse de estado. Em todas, o estado de filiação assim constituído é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil). A paternidade desaparece em face do genitor biológico em virtude da perda do poder familiar, nas hipóteses de adoção e de declaração judicial de posse de estado de filiação, e nunca aparece nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga e de dação anônima de sêmen.

A paternidade socioafetiva decorrente da posse de estado de filiação não pode ser contraditada, mas como evitar que aquele que não cumpriu seu dever de paternidade fique impune? Cogita-se de responsabilidade civil por dano imputável ao genitor biológico quando não assumir os deveres de paternidade e quando não seja possível a investigação judicial, em virtude de outro homem já ter assumido a paternidade socioafetiva com a constituição do estado de filiação. Essa solução, no campo do direito das obrigações, somente é possível quando a paternidade resultar de posse de estado de filiação, sendo vedada nas paternidades derivadas da adoção regular e da inseminação artificial heteróloga, pois há total desfazimento de laços jurídicos com os genitores biológicos. Dessa forma harmonizam-se o princípio da imodificabilidade do estado de filiação e o dever genérico de responsabilidade por dano, o direito de família e o direito das obrigações. Esse tipo de reparação qualifica-se como punitivo, cuja excepcionalidade compreende-se no requisito que se consolida no Brasil para recepção da doutrina do punitive damage.

Posto assim o estado da arte nessa matéria, conclui-se pela impropriedade da Súmula 301. Ela é equivocada porque parte de pressuposto falso, a saber, a da identidade da paternidade com a origem genética, desconsiderando o paradigma atual da socioafetividade. Ela é inútil porque depende da existência de provas indiciárias para que a presunção possa ser aplicada Ela é injusta porque induz o réu a produzir provas contra si mesmo e porque serve de instrumento a interesses meramente patrimoniais, que nunca prevalecem quando o genitor biológico é pobre. Ela é contraditória porque indiretamente viola princípios constitucionais ressaltados no precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 71.373-RS); a recusa ao exame do DNA não pode ser tida como presunção desfavorável, pois os princípios constitucionais tutelam quem assim age, e se não se pode produzir provas contra as ormas legais, também não se pode admitir presunção que leve ao mesmo efeito. Ela é desnecessária porque há solução dentro do sistema jurídico para a pretensão de natureza patrimonial, sem necessidade de negar o estado de filiação constituído.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado. Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da Súmula nº 301 do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1036, 3 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8333. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Conferência proferida no 5º Congresso Brasileiro de Direito de Família, em Belo Horizonte (MG), no dia 27 de outubro de 2005.

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