A contribuição social para financiamento da Seguridade Social – COFINS – foi instituída pela Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991, com fundamento no inciso I, do art. 195 da CF, sem prejuízo do Programa de Integração Social – PIS – e do Programa de Formação do Patrimônio de Servidores Públicos – PASEP.
Tem como fato gerador o faturamento mensal, assim considerando a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e serviços de qualquer natureza.
Entretanto, excluiu, expressamente, da composição da hipótese de incidência, os serviços prestados pela sociedade de profissionais liberais nos termos do art. 6º, II, in verbis:
‘Art. 6º. São isentos da contribuição:
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II - as sociedades civis de que trata o art. 1º do Decreto-lei nº 2.397, de
21 de dezembro de 1987’.
O art. 1º do Decreto-lei nº 2.397/87 dispõe que: ‘a partir do exercício de 1989, não incidirá o imposto de renda das pessoas jurídicas sobre o lucro apurado no encerramento de cada período-base, pelas sociedades civis de prestações de serviços profissionais relativo ao exercício de profissão legalmente regulamentada, registradas no registro civil de pessoas jurídicas e constituídas exclusivamente por pessoas físicas domiciliadas no país’.
Logo, os serviços prestados por sociedades formadas por profissionais liberais, entre elas, as constituídas por advogados, estão isentas de COFINS.
Entretanto, o fisco passou a argumentar que as sociedades de profissionais liberais, que se amoldaram aos termos das Leis nºs. 8.383/91 e 8.541/92, optando pela tributação dos resultados pelo lucro presumido, perderam, de imediato, o direito ao benefício da isenção fiscal.
Reiteradas decisões do STJ, no sentido da irrelevância do regime jurídico de apuração do lucro para efeito do imposto de renda, conduziram à edição da Súmula 276, nos seguintes termos:
‘As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas de Cofins, irrelevante o regime tributário
A tese da exclusão da isenção para sociedades optantes pelo regime do lucro presumido continuou sendo defendida pelo fisco mesmo na vigência da Lei nº 9.430/96, cujo art. 56 teria revogado a isenção dada pela Lei Complementar nº 70/91, o que, representou a confissão do princípio de que uma lei só pode ser revogada por outra que tenha obedecido o mesmo processo legislativo.
Entretanto, nos últimos anos, o fisco mudou de argumentação. Curiosamente o fisco foi levado a inovar sua argumentação em razão do posicionamento adotado pelos próprios contribuintes, que passaram a sustentar a inconstitucionalidade da Cofins, sob o fundamento de que a lei complementar, em virtude de sua ‘superioridade eficacial’, não poderia ser revogado por lei ordinária.
Só que, quando vencido o contribuinte em primeira instância, este passou a ingressar, sistematicamente, com recurso especial para se abrigar na Súmula 276 do STJ, e não com o recurso extraordinário, meio processual adequado para discussão da inconstitucionalidade do tributo.
Disso resultaram inúmeras reclamações do fisco junto ao STF sob o fundamento de que a tese acolhida pelo STJ, no sentido de que a lei complementar só poderia ser revogada por outra lei complementar, estaria negando o efeito vinculante da decisão da Corte Suprema, proferida no ADC nº 1-DF, onde teria firmado a tese de que a LC nº 70/91 teria natureza de lei ordinária (lei complementar extravagante).
Nas duas primeiras reclamações (nº 2475, Rel. Min. Carlos Velloso e nº 2.517, Rel. Min. Joaquim Barbosa), as liminares foram indeferidas entendendo que a questão envolve apenas matéria infraconstitucional. Porém, na Reclamação nº 2.613, Rel. Min. Marco Aurélio, foi concedida a liminar para sustar até final decisão os efeitos do acórdão proferido pelo STJ.
Há indicadores no sentido de que o STF irá apreciar a questão à luz de matérias inseridas no texto constitucional como sendo de reserva do legislador complementar. Em suma, saber se uma lei ordinária pode ou não revogar lei complementar resumir-se-ia em saber se a Constituição reservou ou não à lei complementar a disciplina de determinada matéria.
Todos nós sabemos que a instituição da Cofins não foi reservada à lei complementar, pois ela consta expressamente do elenco do art. 195, da CF.
Com a devida vênia, penso que a questão não pode ser colocada nesses termos. A lei complementar extravagante, ou não, pouco importa, só pode ser revogada por uma outra lei complementar, pela aplicação do princípio de que uma lei só pode ser revogada por outra que tenha obedecido o mesmo processo legislativo, consoante magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho [01].
Por outro lado, sem embargo de respeitáveis opiniões em contrário, parece equivocada a tese que proclama a impossibilidade de a lei ordinária revogar a lei complementar em razão da superioridade eficacial desta última.
Como preleciona o preclaro jurista Souto Borges Maior, os planos de validade e de eficácia das leis são distintos. A validade é uma propriedade das normas, porque há normas jurídicas válidas e inválidas. Ela é identificável sempre que se verifica ter o órgão que a editou atuado dentro da competência que lhe conferiu o órgão superior e com observância dos requisitos processuais estabelecidos para a sua criação. Já a eficácia é uma qualidade da conduta real dos homens.... a afirmação de que o direito é eficaz significa apenas que a conduta real dos indivíduos se ajusta às normas jurídicas’ [02].
Logo, eficácia pressupõe prévia existência de lei válida. E só é válida a lei que obedeceu o processo legislativo previsto na Constituição, donde a impossibilidade de buscar no quorum qualificado a superioridade eficacial da lei complementar, pois sem ele nem existiria a lei complementar.
Do ponto de vista jurídico, lei complementar e lei ordinária têm a mesmíssima eficácia, contanto que tenham observado o respectivo processo legislativo. Poder-se-ia dizer que, do ponto de vista político, a lei complementar tem maior representatividade à medida que maior número de representantes do povo participaram de sua elaboração e aprovação.
É importante constatar, ainda, que não há definição material do que seja lei complementar, mas apenas a sua definição formal, isto é, aquela aprovada por maioria absoluta (art. 69 da CF). Ela difere da lei ordinária apenas pelo seu processo legislativo, pelo que descabe, também, por essa razão a cogitação de sua superioridade eficacial.
Outrossim, se é verdade que a Constituição reservou determinadas matérias à disciplina da lei complementar, que não forma uma categoria uniforme, é verdade, também, que não vetou à disciplina de qualquer matéria por lei complementar, nem o poderia, pois seria contrário ao bom senso proibir a participação maior dos legisladores, ou seja, não poderia impugnar o excesso de quorum, mas apenas a sua falta.
Oportuno a lição de Hugo de Brito Machado que assim se expressa:
‘É certo que a Constituição estabelece que certas matérias só podem ser tratadas por lei complementar, mas isto não significa de nenhum modo que a lei complementar não possa regular outras matérias, e em se tratando de norma cuja aprovação exige quorum qualificado, não é razoável entender-se que pode ser alterada, ou revogada por lei ordinária. É a tese que temos sustentado, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. (...)
Necessário, portanto, se faz que uma lei complementar altere o disposto na Lei Complementar n0 70/91, para que seja efetivamente exigível a COFINS sobre receita diversa daquela integrada no conceito de faturamento’ [03].
Assim, pouco importa se o legislador tem a faculdade de instituir o tributo por meio de lei ordinária, pois no momento em que elegeu a via da lei complementar, pela qual, não apenas instituiu o tributo, mas também criou o regime isencional, este passou a ser passível de alteração tão só pela lei complementar.
Disso resulta que o tributo definido pela Lei Complementar nº 70/9, na forma do art. 146, III, a da CF, incidente sobre receita bruta de venda de mercadorias e serviços, menos daqueles serviços prestados por sociedades de profissionais liberais, não pode sofrer alteração de seu fato gerador a não ser por uma outra lei complementar, por aplicação do princípio geral de direito.
Nunca é demais lembrar que a isenção prevista na mesma lei que institui o tributo, ainda que em dispositivo diverso, implica ipso fato, alteração do conteúdo da norma jurídica de tributação (incidência tributária). No momento em que o legislador institui o tributo, definindo o fato gerador respectivo, ele subtrai, ao mesmo tempo, dessa definição determinados fatos ou atos que passam a compor a norma jurídica de isenção.
Em outras palavras, se os serviços prestados por sociedades de profissionais liberais compõem a norma de isenção é claro que não podem estar compondo, ao mesmo tempo, a norma jurídica de tributação. Por isso, costuma-se dizer que isenção é hipótese de não incidência tributária legalmente qualificada.
Logo, o campo de incidência tributária, delimitado pela atuação dos legisladores, por maioria qualificada, não pode sofrer elastecimento por ação de uma minoria. E isso, repita-se, nada tem a ver com hierarquia da lei complementar. Tem a ver com o princípio da segurança jurídica que impede de uma minoria desfazer o que a maioria construiu.
Colocada a questão nestes termos, a instância derradeira para o exame dessa matéria é o STJ. Não há questão constitucional a ser debatida como quer o fisco, apegando-se, data vênia, a uma tese que não resiste a uma análise mais acurada, considerada a ordem jurídica como um todo.
Notas
01
Curso de direito constitucional, 10ª edição. São Paulo:Saraiva, 1981.02
Lei complementar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.03
Contribuições Sociais - Problemas Jurídicos. São Paulo: Revista Dialética de Direito Tributário, Coordenador Valdir de Oliveira Rocha, p. 112.