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Foro por prerrogativa de função: nova diretriz do STF

(cancelamento da Súmula 394)

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Depois de vigorar por mais de trinta e cinco anos, a Súmula 394/STF teve seu cancelamento decidido em sessão plenária do Excelso Pretório do último dia 25 de agosto, no julgamento (iniciado em 30 de abril de 1997) de Questão de Ordem suscitada no Inquérito 687-SP, em que figurava como indiciado ex-deputado federal. Continha o aludido verbete sumular, recém-cancelado, o seguinte teor: "Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício".


Ampla repercussão alcançará o mencionado leading case, alterando a competência para processar e julgar ex-ocupantes de cargos públicos e de ex-mandatários do povo. Com efeito, a partir desse pronunciamento da Suprema Corte, deve ser desencadeada uma série de decisões dos outros tribunais brasileiros acolhendo a nova diretriz do precedente na redefinição de suas competências. Editada em 03 de abril de 1964, a referida Súmula fixava como critério determinante da competência o tempo em que se verificara o fato alegadamente delituoso. Se o fato ocorresse durante o exercício da função ou do mandato, firmada estaria a competência especial. Assim, um governador que, no período de desempenho do seu cargo, praticasse um ato tido por criminoso seria julgado sempre pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda que viesse a ser cassado ou que renunciasse ao mandato, ou mesmo depois do término deste.

Pelo atual entendimento do STF, a competência por prerrogativa de função somente se firma no caso de o indiciado, acusado ou réu ainda se encontrar, no curso do inquérito ou do processo, desempenhando cargo ou mandato que lhe garanta o foro especial. Emprestou o Supremo interpretação restringente ao art. 102, I, b, da Constituição Federal – que estabelece a competência do STF para processar e julgar originariamente "nas infrações comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República" –, entendendo que aquele dispositivo não alcança pessoas que não mais exercem mandato ou cargo.

Nessa decisão histórica, foi assinalado pelo Ministro SIDNEY SANCHES, relator do caso, que a medida de cancelamento tem efeito ex nunc. Significa isso dizer que subsistem válidos todos os atos praticados e decisões proferidas com base na multicitada súmula. Gozam da prerrogativa de foro especial para processo e julgamento por crimes comuns as autoridades, ocupantes de cargos públicos e exercentes de mandato, indicados na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas leis de organização judiciária. O Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional (deputados federais e senadores) e o Procurador-Geral da República, por exemplo, são processados e julgados, por infrações penais comuns, perante o STF, que também processa e julga os Ministros de Estado, os membros de Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade.

Ressalve-se o caso de envolvimento de Ministro de Estado em crime de responsabilidade conexo a ação na qual se envolvam o Presidente ou o Vice-Presidente da República, quando então a competência será do Senado Federal. Ao STJ compete processar e julgar, nos crimes comuns, os governadores de Estado e do Distrito Federal, os desembargadores, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do DF, os juízes dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os integrantes do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais. Reconhece a doutrina a verdadeira dimensão do foro por prerrogativa que define competência especial. Pretende-se que haja certo resguardo no exercício de relevantes funções públicas, assegurando-se aos seus exercentes, em eventual julgamento, a isenção e a independência necessárias, presumíveis quando se colocam como réus autoridades de cúpula nos Tribunais Superiores.

Comenta JULIO FABBRINI MIRABETE, a propósito do tema: "Há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado e em atenção a eles é necessário que sejam processadas por órgãos superiores, de instância mais elevada. O foro por prerrogativa de função está fundado na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores." (in ‘Processo Penal’, 7.ª ed., São Paulo, 1997, p. 187). Discorre, com peculiar propriedade, FERNANDO CAPEZ: "Na verdade, o foro por prerrogativa visa a preservar a independência do agente político, no exercício de sua função, e garantir o princípio da hierarquia, não podendo ser tratado como se fosse um simples privilégio estabelecido em razão da pessoa." (in ‘Curso de Processo Penal’, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 173).

Para TOURINHO FILHO, "poderia parecer, à primeira vista, que esse tratamento especial conflitaria com o princípio de que todos são iguais perante a lei, inserto no limiar do capítulo destinado aos direitos e garantias individuais (Magna Carta, art. 5.º), e, ao mesmo tempo, entraria em choque com aquele outro que proíbe o foro privilegiado. (...) O que a Constituição veda e proíbe, como conseqüência do princípio de que todos são iguais perante a lei, é o foro privilegiado e não o foro especial em atenção à relevância, à majestade, à importância do cargo ou função que essa ou aquela pessoa desempenhe. (...) O privilégio decorre de benefício à pessoa, ao passo que a prerrogativa envolve a função." (in ‘Processo Penal’, 12.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1990, v. 2, p. 109).

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No julgamento do STF, ponderou o Min. SIDNEY SANCHES que "a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. (...) as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos."

Deixando definitivamente o cargo – por cassação, por renúncia ou por simples término do mandato –, o seu ex-titular responderá no foro comum por atos que tenham sido praticados no desempenho da função pública e que se considerem ensejadores da instauração de processo criminal. Doravante, ex-autoridades públicas passam a ser processadas e julgadas por juízos de primeira instância. Dessa forma, competirá aos juízes federais processar e julgar ex-presidentes da República, ex-ministros de Estado, ex-deputados federais, ex-senadores da República, ex-magistrados federais (mesmo os que integraram tribunais), além de outros ex-ocupantes de cargos públicos acusados da prática de crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas entidades autárquicas e empresas públicas. Em se tratando de ex-autoridades estaduais e municipais – que não se tenham envolvido em delitos de âmbito federal – caberá aos juízes de Direito o respectivo julgamento.


Estima-se que a recente compreensão adotada pelo Supremo Tribunal resultará em celeridade no julgamento dos casos em que estejam envolvidas ex-autoridades. Isso porque a apuração dos fatos dar-se-á no local onde estes ocorreram – e não a partir de Brasília (sede dos Tribunais Superiores) ou das Capitais (onde se localizam os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dos Estados) –, sem a necessidade da expedição de cartas de ordem para diligências probatórias. Bem mais ágil procederá o órgão julgador à coleta de provas para embasar a decisão do juízo. Enfim, há uma perspectiva de maior eficácia do processo penal em face da nova interpretação e aplicação da lei.

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Sobre o autor
Geraldo Magela e Silva Meneses

juiz federal em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENESES, Geraldo Magela Silva. Foro por prerrogativa de função: nova diretriz do STF: (cancelamento da Súmula 394). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/846. Acesso em: 19 abr. 2024.

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