Resumo: Trata-se de pesquisa doutrinária e jurisprudencial acerca da evolução da responsabilidade civil no Brasil, sintetizando as principais teses sobre a matéria, bem como posições da jurisprudência, visando a demonstrar, ante a nova legislação civil, as tendências para o futuro quanto à responsabilidade sem culpa prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. O fato, e não a culpa, torna-se a cada dia um elemento mais importante para que surja o dever de reparar o dano causado, o que implica radical evolução a respeito da responsabilidade civil. Essa mudança significa que uma atividade lícita, mas potencialmente perigosa, causando dano, pode resultar em responsabilidade mesmo que o agente tenha operado sem culpa. Almeja-se, mediante o presente estudo, identificar hipóteses de atividades submetidas, pela jurisprudência recente, à Teoria do Risco, – ou identificadas como tal pela Doutrina – e que, por sua periculosidade, embora legítimas, tragam em si riscos próprios, ocasionando danos com freqüência, podendo vir a ser enquadradas no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil Brasileiro em vigor, a fim de avaliar as tendências de aplicabilidade e alcance desse dispositivo.
Palavras-chave: Código Civil Brasileiro. Jurisprudência. Tendências. Responsabilidade objetiva. Risco da Atividade. Teoria do Risco.
Introdução
O atual Código Civil Brasileiro, em seu art. 927, parágrafo único, estabelece que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, ou seja, adota critérios de responsabilidade objetiva no âmbito do direito privado.
Isso impõe seu estudo e questionamento, principalmente no que diz respeito à interpretação da intenção do legislador, buscando estudar o alcance da norma em tela, já que sua aplicação importa significativo aumento na probabilidade de responsabilização na medida em que, a partir de agora, em certas espécies de atividade, estar-se-á sujeito a indenizar por dano ainda que se tenha agido sem culpa, o que recomendaria a adoção de maior cautela por parte das pessoas ou empresas que atuem em atividade considerada perigosa.
Tal matéria, submetida aos tribunais, tem sido objeto de entendimento jurisprudencial que, em casos restritos – e ante a dificuldade de a vítima efetuar a prova da culpa – utiliza a teoria do risco como forma de distribuir justiça, o que, doravante, passará a ter maior aplicabilidade como conseqüência da nova regra legal dispondo expressamente sobre a questão.
A responsabilidade civil extracontratual, sob o prisma da teoria clássica, decorre da existência do ato ilícito, da culpa, do dano e do nexo causal, que devem ser provados pela vítima. A teoria da culpa presumida inverteu o ônus da prova, de modo que não mais a vítima teria que comprovar a culpa do agente causador do dano, mas este teria de provar que agiu sem culpa. Já a teoria da responsabilidade objetiva, agora adotada em certos casos, não mais se baseia na culpa, mas meramente na demonstração da existência de nexo causal entre o dano e o agente que praticou a conduta lesiva.
Ocorre que, apesar de utilizar-se dos conceitos de responsabilidade objetiva, o Código não especificou quais são as atividades sujeitas a essa forma de responsabilização, atribuindo tal qualidade àquelas que, por sua natureza, impliquem risco ao direito de outrem. Esse critério de responsabilização, conseqüência do foco constitucional centrado na dignidade da pessoa humana, impõe a necessidade de análise da matéria a fim de identificar atividades que possuem natureza periculosa e que, agora, subsumem-se à égide da nova legislação.
Este é o objeto do presente estudo.
1. revisão de literatura
A vida em sociedade impõe regras de conduta aos seres humanos. No convívio diário, nas relações sociais, no exercício das atividades profissionais, no desempenho e execução do trabalho, na mercancia, enfim, em toda e qualquer forma de relacionamento, as pessoas estão constantemente sujeitas a cometer ou sofrer ações potencialmente danosas. Não por outra razão, os sistemas jurídicos prevêem formas de reparação a serem empreendidas pelo causador do dano em favor daquele que foi lesado.
O Código Civil Brasileiro atual, Lei nº 10.406, de 2002, a exemplo do código revogado, adota como regra geral a responsabilidade com culpa. Segundo a visão tradicional, o dever de indenizar, quando extracontratual, [01] guarda relação com a conduta culposa do agente. Tal modalidade denominada comumente de teoria subjetiva, ou da responsabilidade civil subjetiva, funda-se basicamente no elemento culpa, provada ou presumida, como pressuposto do dever de indenizar, e é largamente utilizada nos sistemas jurídicos em geral. Todavia, a evolução da humanidade, tanto no aspecto dos meios de produção, quanto na busca pela justiça social, produziu inovações no campo jurídico, culminado em novas formas de enfrentar a questão da responsabilidade civil.
A doutrina e a jurisprudência contribuíram significativamente na modificação das normas legislativas, alargando pouco a pouco o campo de aplicação de novas teorias acerca da responsabilidade civil, que, da indispensabilidade de existência de dolo ou de culpa grave, passou paulatinamente a admitir a responsabilização independentemente da existência de culpa, conforme consignada atualmente no Código Civil, a exemplo do parágrafo único do artigo 927, cuja análise é objeto do presente estudo.
Indubitavelmente o Direito está em constante evolução e o conteúdo do dispositivo que ora se investiga já foi mera teoria, tese doutrinária, entendimento jurisprudencial, para, agora, ser analisado como figura do direito civil positivado, de tal modo que se migra de uma "corrente de entendimento", cuja aplicação seria facultativa, para uma regra legal de aplicação geral e obrigatória cuja incidência gera importantes reflexos em diversos setores da economia.
1.1.responsabilidade civil no código de 1916
Washington de Barros Monteiro (1975, p. 386) aponta três aspectos essenciais à responsabilização civil. Os pontos ressaltados por Monteiro são: "a) a existência de um dano contra o direito; b) a relação de causalidade entre esse dano e o fato imputável ao agente; c) culpa deste, isto é, que o mesmo tenha obrado com dolo ou culpa (negligência, imprudência ou imperícia)".
Fundando-se nos ensinamentos propostos por René Savatier, Sílvio Rodrigues (1975, p. 4), afirma que responsabilidade civil é "a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam".
Acerca dos requisitos inerentes à responsabilização, decifrando o art. 159 do Código Civil Brasileiro de 1916, distingue, o referido autor, quatro pontos, a saber: "a) ação ou omissão do agente; b) culpa do agente; c) relação de causalidade; d) dano experimentado pela vítima". (ibid., p. 14)
Quanto à culpabilidade do agente, assevera que "nos termos da lei, para que a responsabilidade se caracterize, mister se faz a prova de que o comportamento do agente causador do dano tenha sido doloso ou pelo menos culposo". (RODRIGUES, 1975, p. 16)
Rodrigues (ibid., p. 155) conclui que o Código Civil Brasileiro de 1916 "assenta-se na idéia de culpa, pondo ênfase em que a obrigação de reparar o dano causado depende de uma atividade voluntária do agente, de sua imprudência ou negligência", porém, esclarece que, a despeito de a regra geral exigir a presença do requisito culpa, o Código Civil Brasileiro de 1916 admitia, em certos casos, hipóteses excepcionais de responsabilidade civil com base na presunção de culpa, ou mesmo sem culpa, apontando, a propósito, análise empreendida ao então projeto do novo código civil brasileiro, de 1972, cujo teor incluía tal modalidade.
Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 568) analisa a responsabilidade civil utilizando-se do conceito legal estabelecido no art 159 do Código Civil Brasileiro de 1916, que a define como "a obrigação de reparar o dano, imposta a todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem".
Para o referido autor, tal conceito comporta três requisitos fundamentais, quais sejam: 1) a existência de uma conduta contrária ao direito, tanto comissiva quanto omissiva, independentemente da intenção do agente de causar dano; 2) existência de dano, material ou não, patrimonial ou não; 3) relação de causa-e-efeito entre a conduta antijurídica e o dano. Essa seria a responsabilidade por fato próprio, idéia originária acerca da responsabilidade civil. Observe-se que Caio Mario (ibid., p. 570) não insere explicitamente a culpa como ponto fundamental da responsabilidade civil, pois ao tempo em que a reconhece ínsita ao ato ilícito, desde logo a considera "insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente", justificando, com base nisso, o surgimento da teoria da responsabilidade objetiva.
João Manuel de Carvalho Santos (1986, p. 318), forte na lição de Pontes de Miranda, divide em quatro os requisitos da responsabilidade civil por ato ilícito: "a) um ato ou omissão; b) imputável ao réu, salvo casos excepcionais de reparação sem imputabilidade; c) danosos, por perda ou privação de ganho; d) ilícito".
A imputabilidade pode ser considerada um dos elementos constitutivos da culpa (ALONSO, 2000) e consiste no fato de que "a obrigação de reparar o dano causado só existirá quando o ato for perpetrado por pessoa a quem se possa atribuir a livre determinação de sua vontade ou a liberdade de querer" (CARVALHO SANTOS, 1986, p. 318), ou seja, "aquele que não pode querer e entender, não incorre em culpa e, ipso facto, não pratica ato ilícito". (GONÇALVES, 1994, p.10)
Convém ressaltar que, no Código Civil de 1916, a imputabilidade é regra, sendo afastada em certos casos como menoridade, demência, consentimento da vítima, exercício normal de direito, legítima defesa e estado de necessidade, hipóteses em que não subsiste a responsabilidade. (ALONSO, 2000)
Para Carvalho Santos (1986), a imputabilidade não basta para que haja responsabilidade civil. É necessário que o fato seja culposo [02], isto é, contrário ao Direito.
O nosso legislador, não se afastando da doutrina tradicional, conserva a responsabilidade civil com fundamento na culpa, provada ou presumida, não acolhendo a nova teoria da responsabilidade sem culpa, tal como a querem UNGER e outros juristas de não menor porte. [...] Determinando o Código que quem violar o direito, ou causar prejuízo a outrem, ainda que por imprudência ou negligência fica obrigado a reparar o dano, deixa esboçados os lineamentos geras da doutrina a aplicar. E o juiz, em seu prudente arbítrio, verificará em cada caso até onde vai a culpa do agente e quando esta desaparece para os efeitos da responsabilidade civil, confundindo-se com o caso fortuito ou a força maior. O certo é que nosso Direito não admite a responsabilidade puramente objetiva, resultando do mero fato danoso. (CARVALHO SANTOS, 1986, p. 321)
Como visto, na doutrina clássica sobre a responsabilidade civil existem algumas condições essenciais para a responsabilização pelo ato ilícito, tradicionalmente reconhecidas e aceitas, consubstanciada na existência de culpa como pressuposto indispensável ao dever de indenizar. Tal linha de pensamento é consensualmente denominada de teoria subjetiva.
1.2.Críticas à teoria subjetiva da responsabilidade civil
De há muito tempo, críticas têm sido tecidas contra o regime da teoria subjetiva, cuja aplicação não permite, em certos casos, a adequada prestação da justiça. Juristas de renome reuniram inúmeras razões a justificar a insuficiência do critério clássico (teoria subjetiva) de responsabilização civil, dando lugar a outras formas de enfrentar a questão da reparação de danos. Tais críticas abriram caminho às exceções previstas já no código civil revogado, bem como hipóteses vislumbradas na legislação esparsa, que adotam outras modalidades de responsabilização, as quais afastam a necessidade de comprovação de culpa como requisito para obter-se a reparação civil de danos.
Washington de Barros Monteiro (1975) cita três pontos levantados pela doutrina que, à época em que empreendeu tal estudo, demonstravam as tendências de então. [03] São elas: a imprecisão na conceituação do que seja efetivamente culpa; a existência de normas que admitem a responsabilidade sem culpa, a exemplo da Lei n.º 5.316/67 e do art. 1208 do Código Civil de 1916; e, por fim, a excessiva valorização do individualismo jurídico, a representar fonte de injustiças perpetradas pelo sistema da responsabilidade subjetiva.
Silvio Rodrigues (1975, p. 155) aponta os avanços industriais e tecnológicos, a exemplo de maquinismo e automóveis, bem como o crescimento populacional, como fatores que contribuíram para o aumento progressivo no número de acidentes de trânsito e de trabalho, dentre outros fatos danosos que implicam diminuição da segurança da população em geral. Indica como solução ideal para resolver tal problema, a difusão de seguro de forma absoluta, mas reconhece que tal modalidade seria de difícil implementação prática em nosso país (ao menos naquele momento). Isso fez com que a jurisprudência e a doutrina – a fim de impedir que muitas vítimas, ante a impossibilidade de desincumbir-se do ônus da prova, em muitos casos permanecessem sem ressarcimento – buscassem a construção de novas fórmulas jurídicas capazes de propiciar a reparação independentemente de prova da culpa, o que se deu, "inclusive pela preconizada adoção da teoria do risco".
Nessa linha, Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 570) adverte que "a jurisprudência, em todos os países, tem alargado a idéia de culpa, e estendido o princípio da responsabilidade civil, onde não se pode encontrá-la em sentido estrito". Esclarece, o jurista, que os tribunais passaram a privilegiar a vítima, adotando o que se convencionou denominar de culpa presumida, ressaltando, a propósito, a existência de casos em que o dever de indenizar foi reconhecido ainda que a conduta não tivesse caráter de antijuridicidade, é dizer, a responsabilidade passava a ser declarada com base no dever geral não prejudicar.
No exato dizer de Caio Mário (1974), lastreado nas lições de Ruggiero, Maroi, Coli e Capitant, a questão foi assim explicitada:
O fundamento ético da doutrina está na caracterização da injustiça intrínseca, que encontra os seus extremos definidores em face da diminuição de um patrimônio pelo fato do titular de outro patrimônio. Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se o da vítima ou do causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque dos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto que o segundo estava em condições de retirar um proveito, sacar uma utilidade, ou auferir um benefício da atividade que originou o prejuízo. (PEREIRA, 1974, p. 570).
O sistema de responsabilização fundado na noção de culpa como elemento básico da responsabilidade, por ser hipossuficiente para responder aos anseios de justiça social, atraiu críticas importantes da doutrina e jurisprudência, especialmente com o incremento da atividade industrial e surgimento de novas tecnologias. Tais manifestações provocaram a expansão do uso da teoria do risco como remédio para a injustiça, de modo a permitir que o agente que, por intermédio de sua conduta, tivesse criado o risco de produzir dano, devesse de repará-lo, mesmo que não houvesse a presença de culpa.
1.3.Evolução para A responsabilidade Objetiva através da Teoria do Risco
A ocorrência de uma espécie de "transição" no pensamento jurídico culminou, segundo Caio Mário (1974, p. 570-571), para a tese da responsabilidade objetiva, que não exclui, mas convive com a teoria subjetiva, porque "a culpa, como fundamento da responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente. [...] O fundamento da teoria [objetiva] é mais humano do que o da culpa [...pois...] reparte, com maior eqüidade, os efeitos dos danos sofridos".
Observa-se que passou a existir um relativo consenso na doutrina sobre não ser razoável admitir a diminuição patrimonial de uma pessoa pelos atos de outra, pois disto resultaria verdadeira injustiça, tendo-se adotado com o decorrer do tempo algo que Rodrigues (1975) define como paliativos à teoria da culpa, soluções que, segundo ele, seriam menos severas do que aquelas decorrentes da teoria do risco criado. Os paliativos à teoria da culpa são assim exemplificados pelo citado autor: facilitação na prova da culpa; equivalência entre exercício abusivo de direito e ato ilícito; reconhecimento de presunções de culpa; incremento nas hipóteses de responsabilização decorrente do contrato; utilização da teoria do risco em certos casos.
Nessa mesma linha, Carlos Roberto Gonçalves (1994; 2003), ao analisar a evolução do pensamento jurídico acerca da responsabilidade civil, menciona cinco estágios que podem assim ser resumidos: facilitação à prova da culpa por parte da vítima, através de abrandamento do entendimento jurisprudencial; utilização da teoria do abuso de direito como forma de responsabilizar aqueles que, por seu agir, causavam lesão a terceiros em detrimento da finalidade social do direito; utilização da presunção de culpa, que representa, na prática, uma inversão do ônus da prova em favor da vítima, de tal maneira que a esta bastaria provar a ocorrência do dano e o nexo da causalidade, cabendo à parte contrária demonstrar a existência de excludentes; ampliação dos casos de responsabilidade contratual, o que implica vantagem às vitimas; e, finalmente, adoção da teoria do risco, que dispensa totalmente a verificação de culpa, bastando apenas a demonstração da existência de nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Fernando Noronha (2003, p. 434) afirma que a solução para os problemas oriundos da responsabilidade civil encontra-se na resposta "à indagação dos casos em que as pessoas lesadas podem exigir de outra pessoa a reparação dos danos que tiverem sofrido, atribuindo essa obrigação a tal pessoa". A resposta que ele mesmo aponta estaria na investigação dos dois princípios em parte antagônicos, quais sejam: o princípio da culpa e o do risco.
O princípio da culpa seria aquele de acordo com o qual "só deveria haver obrigação de reparar danos verificados na pessoa ou em bens alheios quando o agente causador tivesse procedido de forma censurável, isto é, quando fosse exigível dele um comportamento diverso". (2003, p. 434)
Quanto ao princípio do risco, conclui Noronha (ibid, p. 435) que, "ninguém poderia ser obrigado a suportar danos incidentes sobre a sua pessoa ou sobre o seu patrimônio, desde que tivessem sido causados por outrem, ainda que sem qualquer culpa, ou desde que, em casos especiais, tivessem simplesmente acontecido em conexão com certas atividades desenvolvidas por outra pessoa", de modo que, pela teoria do risco, segundo esse autor, a ênfase é posta na atividade desenvolvida privilegiando o valor da segurança jurídica.
Verifica-se, então, o progresso da teoria subjetiva – na qual o ato ilícito (do qual a culpa é imanente), somado à ocorrência de dano a terceiro e existência de relação de causalidade entre ambos são os requisitos para que haja responsabilização –, para a responsabilidade objetiva com base na teoria do risco da atividade.
1.4.A teoria do risco no direito brasileiro anterior ao atual código civil
Como visto, quando a responsabilidade de reparar advém exclusivamente do fato de o dano ter sido conseqüência de uma atividade potencialmente lesiva de alguém, tem-se a teoria do risco. Em outras palavras, "a responsabilidade desloca-se da noção de culpa para a idéia de risco" (GONÇALVES, 2003, p. 309).
Sergio Cavalieri Filho (2002, p. 166) define risco como sendo perigo, probabilidade de dano, de tal modo que quem atue num ramo considerado perigoso deve assumir os riscos de reparar eventuais danos decorrentes de sua atividade, é dizer, "todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano".
Tal teoria, como era de se esperar, recebeu, e ainda recebe, críticas da doutrina. Não obstante, ainda que em caráter excepcional, foi admitida no sistema jurídico brasileiro, inicialmente em casos raros, para, aos poucos, ir se alastrando.
De fato, há algum tempo eram poucas as hipóteses de responsabilidade civil baseadas na teoria do risco admitidas pela legislação brasileira. De acordo com Sílvio Rodrigues (1975, p. 162), a mais antiga, prevista no art. 26 da Lei n.º 2.681/1912, atribuía às operadoras do transporte ferroviário a responsabilidade quanto aos danos causados aos proprietários existentes às margens das estradas de ferro. Outra hipótese, prevista no Decreto n.º 24.687 - Lei de Acidentes do Trabalho, de 1934, que imputava ao empregador a responsabilidade objetiva "pelo dano experimentado por seu operário e derivado de lesões corporais de que lhe resultasse morte ou ferimento", só podia ser afastada em caso de dolo comprovado do empregado, conforme alteração promovida pelo Decreto-lei n.º 7.036/44.
Neste ponto, Caio Mário da Silva Pereira (1975) e Sergio Cavalieri Filho (2002), na mesma linha, também mencionam a legislação relativa aos acidentes de trabalho como exemplo típico de responsabilidade extracontratual objetiva admitido pela legislação pátria. A propósito, Cavalieri (2002, p.165) afirma que "foi no campo dos acidentes de trabalho que a noção de culpa, como fundamento da responsabilidade, revelou-se primeiramente insuficiente".
A terceira hipótese legal de responsabilização sem indagação de culpa, existente no direito pátrio na década de 70, estava prevista no Código Brasileiro do Ar de 1938 (Decreto n.º 483), o qual estabelecia "a responsabilidade objetiva do proprietário das aeronaves por danos causados em terra, por coisas que delas caíssem, bem como por danos derivados de manobras das aeronaves em terra" (RODRIGUES, 1975, p. 163), ressalvando que existia atenuação legal e até previsão de exclusão do dever de indenizar em caso de culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Tal regra permaneceu no Decreto-lei n.º 32/66 e Decreto-lei n.º 234/67, que posteriormente passaram a regular a matéria. Carlos Roberto Gonçalves (2003, pp. 311-312) cita os mesmos dispositivos apontados por Rodrigues e acrescenta a Lei n.º 6.453/77 (acidentes nucleares) e Lei n.º 6.938/81 (danos ao meio ambiente), citando ainda os artigos 1528 e 1529 do Código Civil revogado.
Carlos Alberto Bittar (2001) acrescenta a exploração de minérios (Código de Minas, Decreto-Lei n.º 1.985/40 e Decreto-Lei n.º 318/67) e as leis sobre comunicações (Direitos Autorais, Lei n.º 9.610/98; Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei n.º 4.117/62 e Decreto-Lei 236/67e Lei de Imprensa n.º 5.250/67).
O Anteprojeto de Código Civil, de 1972, bem como suas diversas redações posteriores, que culminou na Lei n.º 10.406/2002, previa a semente da responsabilidade civil objetiva com aplicação, de modo genérico, da teoria do risco no âmbito civil, conforme dispunha o parágrafo único do art. 986, litteris:
Art. 986 – [...]
Parágrafo único. Todavia haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas tecnicamente adequadas. (in RODRIGUES, 1975, p. 164)
Para Sílvio Rodrigues (1975, p. 165), tal hipótese era a materialização direta da teoria do risco, alegando, no entanto, que "o texto é justificadamente tímido, pois a responsabilidade só emergirá se o risco criado for grande e não houver o agente causador do dano tomado medidas tecnicamente adequadas para preveni-lo". Esse autor adverte que o projeto permitia grande flexibilidade de interpretação ao juiz, mas que tal abertura não deveria causar preocupação com arbitrariedade judicial, tendo em conta a existência do duplo grau de jurisdição e do recurso extraordinário, para concluir que "o preceito do Anteprojeto representa um passo à frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade" (ibid., p. 166).
Mais recentemente, o reconhecimento da condição de inferioridade jurídica do consumidor, quando comparado aos fornecedores de produtos e serviços, e a massificação dos contratos, fizeram com que a teoria do risco encontrasse terra fértil nesse campo, de tal modo que o Código de Defesa do Consumidor atribui aos fornecedores de produtos e serviços a responsabilidade objetiva por danos causados aos consumidores.
1.5.As modalidades do risco
Para que se possa avaliar adequadamente a teoria da responsabilidade objetiva decorrente da atividade de risco, entendido este como perigo ou probabilidade de dano decorrente de uma determinada atividade, faz-se necessário identificar as modalidades em que o risco se desdobra.
A doutrina, correntemente, costuma desmembrar o risco em várias modalidades. Noronha (2003) afirma serem, essencialmente, três os riscos de atividade abrangidos pela responsabilidade objetiva inserta no parágrafo único do artigo 927 do CCB, nominando-os em risco de empresa, risco administrativo e risco-perigo, assim sintetizados pelo referido autor:
Quem exerce profissionalmente uma atividade econômica, organizada para a produção ou distribuição de bens e serviços, deve arcar com todos os ônus resultantes de qualquer evento danoso inerente ao processo produtivo ou distributivo, inclusive os danos causados por empregados e prepostos; que a pessoa jurídica pública responsável, na prossecução do bem comum, por uma certa atividade, deve assumir a obrigação de indenizar particulares que porventura venham a ser lesados, para que os danos sofridos por estes sejam redistribuídos pela coletividade beneficiada; que quem se beneficia com uma atividade lícita e que seja potencialmente perigosa (para outra pessoas ou para o meio ambiente), deve arcar com eventuais conseqüências danosas. Na evolução do direito da responsabilidade civil, a idéia do risco-perigo precedeu as do risco de empresa e administrativo, mas, com o desenvolvimento destas, passou a assumir um papel meramente complementar delas. (NORONHA, 2003, p. 486)
Cavalieri (2002), por sua vez, resume em: risco-proveito; risco profissional; risco excepcional; risco integral e risco criado, os quais passamos a analisar.
1.5.1.Teoria do risco-proveito
A responsabilidade teria uma relação direta com o proveito decorrente da atividade realizada, de tal modo que o responsável seria aquele que obtivesse os frutos gerados pela atividade que provocou o dano, é dizer, "onde está o ganho, aí reside o encargo – ubi emolumentum, ibi onus" (CAVALIERI FILHO, 2002, p. 167). Diz o referido autor que tal linha de pensamento encontra críticas pela dificuldade de definir-se o que seja proveito, especialmente porque, se vinculado proveito ao fator lucro ou vantagem econômica, haveria exclusão de responsabilização de todos aqueles que não fossem industriais ou comerciantes. Por outro lado, se mantido à vítima o ônus de provar a existência de proveito, teríamos um retorno ao sistema subjetivo, com todas as dificuldades a ele inerentes, não resultando, portanto, tal concepção, em real evolução.
1.5.2.O risco profissional
"A teoria do risco profissional cuida do risco pertinente à atividade laboral na relação jurídica de vínculo empregatício que se forma entre o empregador e o empregado" (ALONSO, 2000, p. 61).
Tal modalidade, segundo Cavalieiri (2002), pretende justificar o dever atribuído ao empregador de reparar, independentemente de culpa, os danos sofridos pelo empregado no desempenho do trabalho, que, não fosse assim, quase sempre permanecia sem indenização, por conta das dificuldades para realizar provas acerca da culpa de seu patrão, comumente enfrentadas nas ações acidentárias antes do advento das teorias objetivas. Observe-se que Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 310), em leve desacordo com o pensamento de Cavalieri, aponta como exemplo de risco profissional a atividade "desempenhada pelos bancos, nas suas relações com os clientes".
1.5.3.O risco excepcional
A teoria do risco excepcional reconhece certas atividades, como, por exemplo, relacionadas à energia nuclear ou manipulação de materiais radioativos, ou, ainda, redes de energia elétrica de alta tensão, como extremamente perigosas para a coletividade, de tal modo que, em caso de eventual dano, o dever de reparação surge independentemente da qualquer indagação acerca da existência de culpa.
1.5.4.Teoria do risco integral
Colocada no limiar do razoável, e aceita em casos excepcionalíssimos, a teoria do risco integral atribui a obrigação de indenizar pelo simples fato de ocorrência do dano, independentemente da existência de qualquer outro fator, como culpa ou nexo de causalidade. Nessa condição, a responsabilidade pela indenização permanece mesmo ante a existência de "culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior". (CAVALIERI, 2002, p. 169)
Acerca dessa questão, Paulo Sérgio Gomes Alonso (2000, p. 57) alerta, lembrando Alvino Lima, que "a teoria do risco integral é taxada, por aqueles que defendem a responsabilidade subjetiva, de brutal, levando a conseqüências iníquas".
1.5.5.O risco criado
"Se alguém põe em funcionamento uma lícita atividade perigosa, responderá pelos danos causados a terceiros, em decorrência dessa atividade, independentemente da comprovação de sua culpa". (ALONSO, 2000, p. 66)
Pode-se dizer que a teoria do risco criado atribui a responsabilidade decorrente do fato de alguém sofrer dano decorrente de atividade de outrem, sem que se necessite perquirir acerca de que o dano tenha se originado por negligência, imprudência ou imperícia, e sem que haja necessidade de que de tal atividade resulte algum proveito para aquele que criou o perigo. Observe-se que, desse modo, resta afastada a dificuldade apontada por Cavalieri acerca da teoria do risco-proveito, cujo ônus pela comprovação da vantagem (econômica ou não) auferida pelo causador do dano seria causa dificuldades para a vítima e, de certo modo, um retrocesso à teoria subjetiva.
1.6.Críticas à teoria da responsabilidade civil objetiva
Já em 1974, advertia Caio Mário da Silva Pereira (1974, p. 572) que "a teoria do risco ou da responsabilidade objetiva não logrou aceitação legal, e na atualidade encontra a resistência da doutrina, no tocante sua aplicação ampla com que se defendeu o seu préstimo".
De fato, Sergio Cavalieri Filho (2002, p. 169) refere existirem críticas ferozes dos adeptos das correntes subjetivistas contra as teorias de responsabilização objetiva. Para uns, "a demasiada atenção à vitima acaba por negar o princípio da justiça social, impondo cegamente o dever de reparar [...] o risco, por si só, não basta para ensejar o dever de indenizar, porque risco é perigo, é mera probabilidade de dano. Ninguém viola dever jurídico simplesmente porque exerce uma atividade perigosa, muitas vezes até socialmente necessária".
Segundo Cavalieri (2002), uma das críticas mais contundentes às teorias objetivas reside no fato de, sob seus auspícios, não se distinguir entre comportamentos lícitos e ilícitos do agente, o que, pode-se perceber a injustiça, lança na vala comum pessoas com comportamentos absolutamente diferentes.
Não obstante, Fernando Noronha (2003, p. 436) enfatiza que "cada pessoa tem uma esfera jurídica que, precisamente porque é jurídica, deve ser tutelada; por isso, todos nós temos o direito de não ser afetados por atuações de outras pessoas, ainda quando estas procedam com todas as cautelas exigíveis. Os riscos de cada atividade devem ficar com a pessoa que a realiza".
Existe consenso de que a teoria da culpa, em nosso direito, continua a ser fundamental na definição da responsabilidade civil, mas que evoluiu para as novas teorias do risco, que vêm ocupando cada vez mais espaço, culminando, atualmente, num certo ‘equilíbrio’ entre os dois pensamentos.
Ainda prevalece, de um modo geral, o princípio da culpa, mas, tendo em conta a insuficiência desse conceito ante as exigências da sociedade atual, passa-se a considerar cada vez com mais intensidade o fato de que vítimas inocentes não podem ser deixadas ao desamparo diante de prejuízos decorrentes do exercício de certas atividades reconhecidamente perigosas e, por isso mesmo, causadoras de freqüentes danos.
1.7.o parágrafo único do artigo 927 do atual código civil brasileiro
Conforme se depreende da leitura do artigo 927 do Código Civil, abaixo transcrito, há duas hipóteses de reparação independentemente de culpa previstas no parágrafo único do referido dispositivo. A primeira trata das hipóteses previstas em lei, como é o caso, por exemplo, acidentes de trabalho, relações de consumo, Código Brasileiro do Ar, legislação do direito ambiental, atividades nucleares, dentre outros inúmeros casos albergados por legislação específica que, juntamente com as questões de responsabilidade objetiva decorrentes da responsabilidade contratual e da administração pública, identificados, serão postos de lado, pois não estão compreendidos no foco principal do presente estudo.
Efetivamente, é a parte final do citado dispositivo que interessa ao objeto em estudo, qual seja, as atividades de risco que, quando exercidas e uma vez reconhecidas pelo prudente arbítrio do juiz, poderão conduzir ao dever de reparação independente de culpa no caso de produção de algum dano.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Trata-se de hipótese de responsabilidade de cunho objetivo, em que se dispensa a demonstração do elemento culpa, bastando a existência do dano e do nexo causal entre o fato e o dano. Portanto, não há necessidade de se examinar se o ofensor laborou em culpa.
Todavia, nos termos dos princípios que informam o Direito, dentre os quais o da razoabilidade, é preciso ter cautela na interpretação deste dispositivo a fim de evitar exageros capazes de transformar a responsabilidade objetiva, de exceção, à regra.
Para Fernando Noronha (2003) o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil é uma ‘cláusula geral’ de responsabilidade objetiva comum [04].
A propósito, esse autor tece críticas severas ao atual Código, no que toca à responsabilidade civil, afirmando:
[...] temos um Código novo mas que, quanto à responsabilidade civil, nasce velho. Não trouxe regulamentação para algumas situações que eram deixadas ao trabalho criador da jurisprudência (ainda que a lacuna agora seja mais facilmente suprida, com recurso a algumas normas bem amplas que meritoriamente foram incluídas, do tipo geralmente designado por ‘cláusulas gerais’ (e que seriam melhor designadas de normas abertas, elásticas ou flexíveis, por contraposição às normas rígidas tradicionais), das quais é exemplo destacado a do art. 927, parágrafo único, parte final) e, por outro lado, em certas matérias consagra soluções que, se eram as prevalecentes nos tribunais em 1975, foram posteriormente superadas (como é o caso da responsabilidade puramente objetiva dos pais pelos atos danosos de seus filhos, que no final do século XX já era coisa do passado e que agora é de novo imposta, por força dos arts. 932, I e 933). (NORONHA, 2003, p. 549)
Carlos Roberto Gonçalves (2003, p. 313), por sua vez, afirma que tal dispositivo representa "um elogiável avanço em matéria de responsabilidade civil, pois aproxima o nosso Código Civil dos de outros países, que já alcançaram, nesse ponto, estágio superior, como o Código Civil italiano e o Código Civil português".
A relevância da inovação promovida pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil Brasileiro reside no fato de que a responsabilidade objetiva, antes do advento do novo Código Civil, somente ocorria nos casos especificados em legislação especial, o que, agora, já não prevalece, pois "atualmente, mesmo inexistindo lei que regulamente o fato, pode o juiz aplicar o princípio da responsabilidade objetiva [...] quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" (GONÇALVES, 2003, p. 313).
A responsabilidade civil adotada pelo atual Código Civil é, ainda, de cunho subjetivista, pois, em regra, se baseia na culpa do agente, como observado. No entanto, o legislador, atento às lições da doutrina e jurisprudência, afastando-se levemente da teoria subjetiva, introduziu no novo ordenamento a responsabilidade objetiva com base na teoria do risco, com o objetivo de minimizar as injustiças provocadas pelas regras rígidas da teoria da culpa, o que representa algum avanço, sem dúvida.
1.8. atividade de risco, elemento Perigo e interpretação jurisprudencial
De acordo com Alexandre Miguel (2005), as atividades perigosas [05] podem ser identificadas por meio de processos diretos, naturais ou jurídicos, e por exclusão (quando o senso comum facilmente percebe que não se enquadram como não-perigosas). É natural a classificação quando os meios empregados no desempenho da atividade são facilmente identificados como perigosos pelo senso comum (v. g. explosivos, venenos, etc.).
Carlos Alberto Bittar, lembrado por Paulo Sergio Gomes Alonso (2000), para demonstrar tal diferença, exemplifica as indústrias de explosivos, as fábricas de produtos venenosos ou tóxicos, as produtoras de energia elétrica, contrapondo-as às empresas que trabalham com prestação de serviços administrativos, consultorias e outros serviços dessa natureza, cujo desempenho, em princípio, não apresenta risco.
Sustentando-se em conceito apresentado por Carlos Alberto Bittar, Carlos Roberto Gonçalves (2003) considera perigosa aquela atividade que, comparada com outras por intermédio de estatísticas, características técnicas e mesmo pela experiência comum, revela-se potencialmente mais danosa e com maior probabilidade de causar danos. Rui Stoco (2003, p. 812), por sua vez, lembra que o risco criado deve ser "especial e permanente".
Induvidoso que, dentre as atividades desempenhadas pelo homem, umas podem ser consideradas mais perigosas para a saúde, a vida e o patrimônio, que outras. A lei pode qualificar como perigosas determinadas atividades. Entretanto, quando o texto legal não define o que seja atividade perigosa, como sói acontecer com o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, é possível dar-se uma interpretação evolutiva [06] ao dispositivo. Portanto, quem vai dizer quando determinada atividade implica risco para os direitos de outrem é o Judiciário, analisando os diversos casos que lhe forem apresentados. Se o Judiciário entender que se trata de atividade potencialmente perigosa, independentemente da existência de lei especial que assim a considere, poderá aplicar simplesmente o parágrafo único do artigo 927, decidindo que a responsabilidade, no caso sub judice, é objetiva, e impor o dever de indenizar, independentemente de investigação acerca da existência de culpa por parte dos responsáveis pelos danos causados, o que tornará mais justa e equilibrada a relação jurídica entre vítima e agente na medida em que a responsabilidade será analisada tão somente pelo fato (existência do dano) e nexo causal.
A propósito, esclarece Gonçalves (2002, p.50) que, na Itália, segue-se muito o critério estatístico. "Se uma determinada atividade estatisticamente causa danos a muitas pessoas, então ela é considerada uma atividade potencialmente perigosa. Provavelmente, esse critério será adotado também no Brasil".
Nesse contexto, desponta a importância da análise da jurisprudência acerca do assunto, não apenas através do estudo de casos isolados, mas também mediante a investigação estatística dos fatos levados a juízo, pois, a partir do momento em que determinada atividade comece a figurar como fonte de freqüentes disputas judiciais, com significativa ocorrência de prejuízos a terceiros, possivelmente estar-se-á diante de uma atividade de risco. [07]