Resumo: O presente estudo tem como objetivo esclarecer se é possível a cobrança de taxa condominial no âmbito dos juizados especiais cíveis mediante execução por título extrajudicial, considerando que o manejo dessa medida exige a comprovação, no nascedouro da ação, dos elementos liquidez, certeza e exigibilidade, como pressupostos indefectíveis para o exercício do direito supostamente contido no título executivo.
Palavras-chave: Processo – Juizado Especial Cível – Competência - Execução – Título Extrajudicial – Petição inicial – Crédito – Embargos - Dignidade – Fraternidade - Pessoa humana – Juiz.
Sumário: 1. Introdução. 2. Da competência para o conhecimento da execução promovida por condomínio nos juizados cíveis e da complexidade da causa. 3. Requisitos da petição inicial. A comprovação do crédito. 4. Dos requisitos para a propositura da execução por título extrajudicial. 5. Do excesso de execução e da ilegalidade da cobrança de custas processuais e dos honorários advocatícios no âmbito dos juizados cíveis. 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo esclarecer se é possível a cobrança de taxa condominial no âmbito dos juizados especiais cíveis mediante execução por título extrajudicial, considerando que o condomínio não está relacionado no art. 8.º, § 1.º, da Lei n.º 9.099/95, como autorizado a postular perante a justiça especializada, sendo que o manejo dessa medida exige a comprovação, no nascedouro da ação, dos elementos liquidez, certeza e exigibilidade, como pressupostos indefectíveis para o exercício do direito supostamente contido no título executivo.
A questão parece simples, mas exige pronunciamento abalizado, conquanto temos visto em alguns juizados especiais o acatamento de tais execuções em que o condomínio anexa à petição inicial apenas uma planilha de cálculo elaborada a esmo, o estatuto de sua constituição e uma ata de assembleia geral, sem referência ao nome do condômino devedor, sem o número de prestações em atraso, sem boleto, sem a prova da notificação ou interpelação do devedor para colocá-lo em mora e torná-lo inadimplente.
Não bastasse a propositura de tais execuções apócrifas, elas tramitam normalmente mediante a conivência de juízes que, desconhecendo a novel legislação processual civil, imprimem ao processo o rito da Lei n.º 9.099/95, ignorando as disposições do art. 53. do referido diploma legal, bem como o fato de que somente nas execuções por título judicial, decorrente das próprias decisões dos juizados, é exigida a garantia legal para a oposição de embargos à execução.
Esse lamentável desconhecimento ou indiferença à regra processual civil tem levado ao cometimento de inefável injustiça por parte de magistrados que ignoram completamente o direito do executado de oferecer embargos, em decorrência de execução por título extrajudicial, independentemente da garantia do juízo ou de ter bloqueado seus ativos financeiros, na conformidade do art. 9141 do CPC.
Essa prática foi constatada na pesquisa realizada, onde, antes mesmo da designação de audiência de conciliação, é determinado, em despacho padrão, o bloqueio e penhora de ativos financeiros para forçar, a todo custo, o pagamento do valor cobrado, o qual vem recheado com itens denominados “despesas” ou “acréscimos”, onde são camufladas, sem qualquer fundamento legal, verbas como custas e honorários advocatícios, incabíveis no sistema dos juizados, mas admissíveis por certos magistrados como devidos se houver previsão na convenção condominial.
A cega utilização de despachos padrões é tão corriqueira que a regra constante do art. 3.º, da Lei n.º 9.099/952, é completamente excluída, conquanto o que interessa é a constrição de valores encontrados na conta bancária do executado, ainda que o mesmo tenha o direito à prévia conciliação ou ao direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família (art. 8.º, CPC) por alguma ocorrência excepcional, como é o caso, por exemplo, de doença grave do tipo oncológica ou cardiológica.
A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por Juízes e demais sujeitos processuais (art. 3.º, § 3.º, CPC3), considerando que, no magistério de Leonardo Carneiro da Cunha4, “a melhor e a mais adequada solução do conflito, pode não ser necessariamente obtida pela decisão judicial”. Se o processo civil, cujas causas são complexas, tem enveredado por esse caminho, porque não aplicar sempre essa regra obrigatória no sistema de juizados?
Não é permitido ao Juiz especificar limites ou hipóteses para a conciliação. Como enfatiza Ronaldo Frigini5, “a conciliação tem sido a grande vedete judicial na atualidade, envolvendo todos os seguimentos do Poder Judiciário e em todos os graus de jurisdição. E finaliza o ilustre jurista e magistrado paulista, afirmando que “o resultado revela a necessidade do constante aprimoramento das formas de composição de litígios.”
A ausência de tal atitude tem levado condôminos executados a uma condição análoga à de pessoas indigentes pela situação de aviltamento e incapacidade para solucionar, de modo suasório, a pendência, conquanto a condução do processo executivo de maneira draconiana pelo Juiz, com severas medidas constritivas ab initio, sem esgotar a possibilidade de uma alternativa de pagamento negociada, em audiência prévia de conciliação, ocasiona a insolvabilidade do executado, deixando sua família e demais obrigações orçamentárias inviabilizadas, o que, em última análise, importa na ofensa à dignidade humana, sabendo-se que a execução deve ser promovida de modo menos gravoso para o devedor (art. 805, CPC/2015).
Essas e outras questões de magna importância serão examinadas neste estudo, considerando que a falta de esmero e de exame do direito aplicável à espécie tem permitido que condomínios, com vultosa e invejável arrecadação mensal, promovam execução por título extrajudicial sem o recolhimento de custas processuais e sem o risco de pagar honorários advocatícios em caso de sucumbência, sacrificando o perfil econômico e financeiro do condômino, além de inviabilizar a possibilidade da solução do processo na forma prevista no art. 916, do atual CPC.
Finalmente, deve ser relembrado que o condomínio não consta da relação das pessoas autorizadas a postular perante o Juizado Especial Cível (art. 8.º, § 1.º), somente sendo admitido a pleitear nesse microssistema por conta do enunciado n.º 9 do FONAJE que, legislando em causa própria, admite a propositura de ação nas hipóteses do art. 275, inciso II, item b, do Código de Processo Civil revogado.
2. DA COMPETÊNCIA PARA O CONHECIMENTO DA EXECUÇÃO PROMOVIDA POR CONDOMÍNIO NOS JUIZADOS CÍVEIS E DA COMPLEXIDADE DA CAUSA.
A Lei 9.099/95, em seu artigo 8.º, § 1.º, estabelece as pessoas legitimadas para a propositura das ações nos juizados especiais cíveis. Segundo o caput desse dispositivo, não podem ser partes “o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil”.
Já o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo legal dispõe expressamente que “ somente serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial: I) as pessoas físicas capazes, excluídos os cessionários de direito de pessoas jurídicas; II) as pessoas enquadradas como microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte na forma da Lei Complementar n.º 123, de 14 de dezembro de 2006; III) as pessoas jurídicas qualificadas como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, nos termos da Lei n.º 9.790, de 23 de março de 1999; IV) e as sociedades de crédito ao microempreendedor, nos termos do art. 1.º da Lei n.º 10.194, de 14 de fevereiro de 2001.”
Trata-se, como se vê, o elenco supracitado de numerus clausus, cuja relação não pode ser ignorada, nem ampliada, sob pena de violar-se o espírito da norma em comento. Sendo assim, o FONAJE não pode se arvorar de legislador e editar enunciado que viole a competência constitucional da União para estabelecer competência jurisdicional dos Juizados Cíveis.
Apesar de não se encontrar relacionado no rol de pessoas que, segundo o art. 8.º, § 1.º, da Lei n.º 9.099/95, podem figurar no pólo ativo das ações que tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis, o condomínio continua, na conformidade do enunciado n.º 09 do FONAJE6, a propor ação de cobrança nos termos do art. 275, inciso II, do CPC 1973, perante referidas unidades jurisdicionais.
Acontece que, a despeito de o art. 1.063, do NCPC, haver mantido a competência dos juizados especiais para apreciar as matérias previstas no art. 275, II, item b, do CPC/73, nada modificou em relação ao art. 8.º, § 1.º, da Lei n.° 9.099/95, nem autorizou o aforamento de demandas pelo condomínio perante referido juízo.
Muito embora assim esteja descrito, é indubitável que o CPC/2015, revogou expressamente o código anterior. Com isso, caiu por terra o enunciado n.º 09 do FONAJE, que se encontra com ressuscitação post mortem por obra de alguns Juizados Cíveis que ainda aplicam esse entendimento, inobstante não existir sua revigoração ou recepção por qualquer norma fonajeana.
Em obra de grande repercussão sobre os Juizados Especiais Cíveis, o jurista e magistrado Catarinense Joel Dias Figueira Júnior7, em lapidar lecionamento a respeito da possibilidade de o condomínio postular perante a referida justiça especializada, assim se pronunciou:
“Os que desejarem defender a tese do acolhimento dos condomínios residenciais no pólo ativo das demandas que tramitam sob a égide da Lei 9.099/1995, nada obstante a expressa proibição legal (portanto, interpretação contra legis), haverão de fazê-lo por razões sociopolíticas, teleológicas, tendo-se presente o espírito e os fins dos Juizados Especiais, que, em síntese, nada mais são do que a ampliação do acesso à justiça, notadamente aos hipossuficientes, dessa maneira reduzindo os efeitos nefastos da litigiosidade contida.
Porém, enquanto não modificado o art. 8.º, § 1.º, da Lei 9.099/1995, por mais simpáticos que sejamos a essas teses, somente em caráter excepcional podemos admití-las e, para tanto, com base no principal e único requisito: tratar-se de ente ou sociedade hipossuficiente (condomínios, entidades beneficentes ou assistenciais ou sociedades sem fins lucrativos). Não se pode negar que, por mais que nos esforcemos, elas não são ou jamais serão, em sua verdadeira essência, pessoas naturais.”
Grande parte dos Juizados Cíveis, País afora, passaram a acolher esse novo entendimento legal e justo, não aceitando demandas oriundas de condomínios, entendendo inclusive que o enunciado n.º 09 do FONAJE e o art. 275, II, alínea b, do Código de Processo Civil anterior encontram-se revogados.
Nesse sentido, transcreve-se os seguintes precedentes proferidos por Turmas Recursais, sob a égide do CPC/2015:
“Ação de Cobrança. Cotas condominiais. Ilegitimidade ativa do condomínio para demandar como autor no sistema dos Juizados Especiais Cíveis. Vedação do Art. 8.º, § 1.º da Lei n.º 9.099/95. Revogação tácita do enunciado n.º 09 do Fonaje à vista da supressão do processo sumário do CPC de 73. Extinção da ação de ofício. Recurso prejudicado.
(TJ-RS - Recurso Cível: 71007556608 RS, Relator: Cleber Augusto Tonial, Data de Julgamento: 29/03/2018, Terceira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/04/2018).”
“Recurso inominado. Cobrança de cotas condominiais. Ilegitimidade ativa do condomínio para exercer pretensão no âmbito do juizado especial, nos termos do Art. 8.º, § 1.º, da Lei 9.099/95. Extinção do feito, de ofício, sem resolução do mérito. Recurso prejudicado.
(TJ-RS - Recurso Cível: 71006559025 RS, Relator: Giuliano Viero Giuliato, Data de Julgamento: 29/06/2017, Terceira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/07/2017).”
Perceba-se que o art. 275. do CPC/73, que permitia o exercício do direito de petição, pelo condomínio, na concepção do enunciado fonajeano, para exigir o pagamento de taxa condominial perante o juizado fala de “ação de cobrança”, e não de execução, porque assim era vista a cobrança de tal verba pelo CPC revogado (art. 275).
A título de reforço, diga-se que o STJ já se pronunciou, por mais de uma vez, sobre a questão da competência dos juizados especiais, mormente quando a causa é complexa, depende de aferição de valores por perícias e as unidades judiciárias autônomas, bem como a Turma Recursal se recusam a declinar para o juízo adequado.
Neste passo, a corte retromencionada outorga ao Tribunal de Justiça, via mandado de segurança, a legitimidade para, no controle da competência dos juizados especiais cíveis e criminais, bem como das varas, decidir qual o juízo competente para conhecer da matéria submetida a julgamento, conforme pode ser constatado no RMS 33155/MA, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 29/08/2011, assim como no RMS 38884/AC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/05/2013, DJe 13/05/2013. Veja-se um dos itens da ementa dos acórdãos proferidos nos casos aqui enumerados:
“A jurisprudência do STJ admite a impetração de mandado de segurança para que o Tribunal de Justiça exerça o controle da competência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, vedada a análise do mérito do processo subjacente.”
O próprio TJMA, no julgamento do Mandado de Segurança n.º 035076/2011 (0006917-02.2011.8.10.0000) – São Luís, pelas câmaras cíveis reunidas, relator o Desembargador Kleber Costa Carvalho seguiu a linha de entendimento supracitada. Na mesma esteira também decidiu a corte maranhense nos julgamentos do AgRciv no MSCiv n.º 015868/2014, relator Des. Paulo Velten; e do MSCiv N.º 053657/2013, relator Des. Kleber Carvalho.
3. REQUISITOS DA PETIÇÃO INICIAL. A COMPROVAÇÃO DO CRÉDITO.
Superada essa questão, merece registro o fato de que, desde o diploma legal revogado (CPC 1973, art. 5858, IV9), não é permitido ao condomínio a propositura de execução extrajudicial para recebimento das taxas condominiais, salvo se se tratar de crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio.
A lei processual civil é taxativa e exige a prévia comprovação da existência de título líquido, certo e exigível. Se tal requisito não se encontrar presente, o correto é a propositura de ação de cobrança para formação do título executivo. Essa mesma regra, mutatis mutandis, ainda persiste, na conformidade do disposto no art. 78410, inciso X11, do novo CPC.
Observe-se que tanto o CPC revogado, como o atual enfatizam a expressão “o crédito documentalmente comprovado”. Portanto, quando a petição inicial da execução extrajudicial não está embasada com a ata da assembleia geral, onde conste o nome do condômino inadimplente ou devedor, bem como os meses em atraso, não pode a ação ser deflagrada com a citação do executado para pagamento e expropriação dos bens.
Do mesmo modo, quando não forem juntados avisos, notificações, e-mail, mensagens de wathsap, correspondências, boletos ou outros tipos de comunicação para configurar a mora do condômino e torná-lo inadimplente, a execução não pode ser acolhida, porque falta requisito basilar para seu desenvolvimento. Esses documentos, como será demonstrado ao longo deste trabalho, são obrigatórios; são indispensáveis, posto ser condição de admissibilidade da própria ação executiva.
Ainda na perspectiva do raciocínio supracitado, considerando que a matéria aqui discutida incide na complexidade da causa, circunstância que retira a competência jurisdicional do Juizado, o correto, nos casos em que a petição inicial da execução não preencher os requisitos legais, é a extinção do processo, a fim de que o exequente busque o exercício do seu direito numa ação de cobrança, para a formação do título executivo, no próprio juizado ou perante uma Vara da justiça comum.
Na justiça comum terá o condomínio exequente a obrigação de pagar as custas judiciais iniciais, fazer prova robusta do seu crédito, bem como do inadimplemento do condômino e se submeter ao pagamento de honorários advocatícios, acaso seja sucumbente.
Com a propositura desse “simulacro de execução”, perante o Juizado Especial, o condomínio utiliza os serviços judiciários gratuitamente, e ainda pede a condenação do executado em “despesas”, que nada mais é do que uma forma dissimulada de mascarar o recebimento de custas e de honorários advocatícios, incabíveis no âmbito dos juizados (art. 55, Lei n.º 9.099/95), locupletando-se ilegalmente em detrimento da parte hipossuficiente, que é o condômino executado.
Não raras vezes essas execuções são promovidas por condomínios clube ou de luxo, que possuem arrecadação mensal milionária, o que não deve ser aceito pelo sistema de juizados, porque, além de violar o objetivo para o qual foi criado, desvirtua também um dos seus mais expressivos pilares: a conciliação, que tem por fim evitar a análise de causas complexas, dado que sempre as execuções envolvem quantias que ultrapassam o valor de alçada e cálculos que incluem, como dissemos alhures, verbas que não podem ser cobradas no âmbito dos juizados, como honorários advocatícios e custas processuais.
Contudo, há de ser lembrado novamente que o condomínio não pode ser visto como parte hipossuficiente ou pessoa natural para outorgar-se acesso à justiça no âmbito do sistema dos Juizados Especiais Cíveis, nem o FONAJE pode outorgar-lhe essa capacidade processual por faltar-lhe o poder de legislar.
Daí porque a postulação do condomínio perante essa justiça especializada constitui locupletamento ilícito contra a administração da Justiça e o condômino como parte hipossuficiente da relação processual. No primeiro caso, porque o condomínio não paga as custas processuais, nem corre o risco de ser condenado ao pagamento dos honorários advocatícios. Na segunda hipótese, porque cobra da parte demandada e obtém, por decisão do julgador, o pagamento da verba honorária e das custas processuais.
Há nesse tipo de demanda simplesmente a instauração de lide temerária, cujo objetivo é utilizar os serviços do Judiciário sem qualquer desembolso e onerar o executado com o pagamento de verbas que não são exigidas de nenhum outro devedor no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Isto é uma tremenda desfaçatez que não pode continuar, qualquer que seja o argumento utilizado por quem defende essa ideia.