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A resolução por onerosidade excessiva no novo Código Civil:

uma quimera jurídica?

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25/06/2006 às 00:00
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5. Visão crítica do instituto no Novo Código Civil

            Induvidosamente, o tratamento conferido ao instituto no Código Civil de 2002 não é merecedor de elogio; contrariamente, é passível de crítica, uma diatribe inclusive.

            ‘Re vera’, da forma como se acha previsto nos artigos 478 a 480 a sua aplicação prática será remotíssima, haja vista que será praticamente inatingível a reunião dos cinco requisitos exigidos para o reconhecimento do instituto, conforme já aventado.

            Vejamos a casuística!

            Por exemplo, imagine-se a hipótese de um pequeno empreiteiro alegar e provar em juízo a ocorrência simultânea dos cinco requisitos, quais sejam: o contrato de trato sucessivo; a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis; a prestação excessivamente onerosa para ele empreiteiro; a exagerada vantagem para a outra parte, o dono da obra; e, por fim, pleitear tão somente a resolução?...Sem dúvida, vê-se que é uma tarefa árdua, uma prova diabólica, até porque não socorre ao prejudicado(diga-se, o empreiteiro), o princípio da inversão do ônus da prova, por se tratar de um contrato civilístico e não consumerista.

            E não é só isso. A meu juízo, outros graves empecilhos de ordem prática são facilmente perceptíveis, senão vejamos:

            5.1) O requisito da extrema vantagem para a outra parte(art. 478), consoante já demonstrado, se traduz em algo completamente desarrazoado, uma vez que a comprovação da onerosidade excessiva por si só basta para atestar-se o desequilíbrio do contrato, até porque há inúmeras situações em que a onerosidade excessiva é patente sem que haja extrema vantagem para a outra parte, ou melhor, o lucro indevido. Nesse sentido, pois, é o magistério do Professor Rogério Ferraz Donnini [13]: "Apenas exemplificando, numa relação entre particulares, se determinados contraentes ajustam a compra de dado produto importado, e, após o pagamento de várias parcelas do pacto, o governo, repentinamente, modifica a alíquota dessa mercadoria, tornando-a cem por cento mais cara, há, no caso, uma onerosidade excessiva do contrato para o vendedor. Não de pode afirmar, todavia, que necessariamente o comprador teve lucro indevido. Isso porque o comprador pode não conseguir, eventualmente, repassar esse acréscimo numa venda posterior, não se configurando a existência de lucro excessivo."

            5.2) O requisito da resolução do contrato como único remédio para a onerosidade excessiva(art. 478) igualmente se traduz em algo disparatado, haja vista que, de regra, o

            que o contratante prejudicado deseja é a continuidade do contrato(princípio da conservação), desde que reajustado a níveis razoáveis. Na sistemática atual, contudo, não obstante almejar o escopo do contrato(a aquisição da casa própria, por exemplo), o contratante prejudicado não pode requerer a revisão e sim a resolução, o que se reveste numa flagrante injustiça, em detrimento mesmo da nova principiologia do direito contratual.

            Em contratos como tais(de financiamento da casa própria, por exemplo), ainda que civilísticos sejam classificados, é imperioso que se observe que a eventual onerosidade excessiva da prestação deve permitir a revisão contratual, até porque, na grande maioria dos casos, o mutuário não pretende mudar-se para outro imóvel - um outro bairro por exemplo - uma vez que ali já reside há muito tempo, inclusive já estabelecido relações dos mais variados matizes(profissionais, comerciais, culturais e sociais), dele próprio e da sua família.

            Nesse sentido, eis o exemplo da lavra da Advogada Mônica Yoschizato Bierwagen [14], em igual sintonia: "Assim, se alguém compra uma casa a prestações, prevendo que tal negócio compromete determinado percentual de seu orçamento e, repentinamente, tais prestações se elevam, impossibilitando-o de honrar outros compromissos mais prioritários, é evidente que a decisão de desfazer a compra da casa vincula-se não à perda de interesse no negócio(mormente se estiver prestes a terminar a execução), mas na impossibilidade de assumir a diferença imposta pelas circunstâncias."

            5.3) Nos termos do artigo 479 do CC/02, que assim exara: "A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato", demonstra cabalmente que o Novo Código ao prever, como regra, a resolução no seu art. 478, excepcionalmente permite a revisão, se e unicamente o réu, ou seja, a parte não prejudicada assim concordar.

            Sem dúvida, eis uma regra absurda! À luz dessa paradoxal literalidade legal, a parte prejudicada, de resto o devedor, deve requerer apenas a resolução, conforme expresso no artigo 478, sendo que, acaso o réu(o credor) aceite ou concorde, é possível ao Juiz revisar o contrato.

            Trata-se de uma situação insólita, antinômica até, haja vista que a opção pela revisão do contrato só é cabente à parte não prejudicada(ao réu, o credor), não sendo permitida à ambas as partes.

            Em suma: a única possibilidade de revisão se acha em poder e ao arbítrio da parte não prejudicada(o credor), sendo certo que, acaso o prejudicado(devedor) venha a requerer a revisão do contrato e não a resolução, o Juiz só poderá revê-lo se o prejudicado provar o requisito da extrema vantagem para a outra parte, ou seja, o lucro indevido do credor, bem como se este(a parte não prejudicada) concordar com a revisão, pois, consoante já dito, a revisão é uma prerrogativa sua, exclusivamente;

            5.4) Por derradeiro, um outro disparate salta aos olhos, à luz do estatuído no artigo 480: "Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva".

            De ‘per si’, a compreensão do dispositivo é fácil, sem qualquer reparo a fazer.

            Nada obstante, uma vez confrontado com o artigo 478, exsurge um grave imbróglio

            jurídico, senão vejamos: em se tratando de contratos unilaterais, ou seja, de contratos em que as prestações só recaem para um dos contratantes(doação, comodato, depósito, mandato, p.ex.) ou em que apenas uma das partes se obriga em face da outra, a parte prejudicada pode requerer a revisão com base apenas na onerosidade excessiva; contudo, em se tratando de contrato bilateral(art. 478), a parte prejudicada só pode requerer a resolução(e não a revisão), desde que com base na onerosidade excessiva e também na extrema vantagem para a outra parte.

            De conseguinte, instaura-se o descompasso: para os contratos unilaterais(art. 480) a solução é menos gravosa, menos exigente, e permite a revisão do contrato, enquanto que para os contratos bilaterais(comutativos, art. 478), a solução é mais gravosa, exigente e só permite a resolução, resultando num tratamento diferenciado para uma mesma situação fática – o desequilibro contratual em decorrência da onerosidade excessiva – e que vai de encontro à moderna principiologia do contrato(princípios da função social, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico do contrato).


6. Proposta para alteração legislativa do instituto

            Indubitavelmente, à vista do aqui expendido, o instituto da resolução por onerosidade excessiva, da forma como se acha insculpido no Novo Código Civil, redunda numa construção jurídica monstruosa, obsoleta, ou, como alhures vaticinado: numa quimera jurídica!

            A sua aplicação prática é de remota ocorrência, infrequente, à vista da prova diabólica a cargo do contratante prejudicado, além de compelido a reunir os cinco requisitos exigidos pelo artigo 478, conforme já mencionado.

            Para o Novo Código Civil, o perfil do instituto se cinge essencialmente à resolução do contrato(art. 478) e, excepcionalmente, à revisão contratual(art.479), ficando esta ao arbítrio exclusivo do contratante beneficiado, resultando assim numa fantasia jurídica, de interesse meramente acadêmico e completamente dissociado da realização prática do Direito, ou melhor, da sua efetiva concretude, na esteira do chamado Direito Civil-Constitucional.

            Todavia, malgrado tão funesta conclusão, advogo e propugno a alteração legislativa do instituto a fim de adotar o mesmo perfil expresso no Código de Defesa do Consumidor, ou seja, a tônica revisional – segundo a dicção do princípio da conservação do contrato – admitindo-se, em caráter excepcional e à escolha de qualquer dos contratantes, também a opção pela resolução do contrato.

            Basicamente, ‘de lege ferenda’, entendo deva ser expurgado do instituto os requisitos da ‘extrema vantagem para a outra parte’, bem como o da necessidade de ‘acontecimentos extraordinários e imprevisíveis’, além do que entendo imprescindível a admissão do direito de revisão para ambas as partes(prejudicada e não prejudicada), e alternativamente o direito de resolução, igualmente facultado para ambas as partes, cabendo ao Juiz decidir pela manutenção(revisão) ou resolução(extinção) do contrato.

            Nesse diapasão, ainda ‘de lege ferenda’, o instituto exigiria apenas quatro requisitos, seguindo o mesmo enfoque adotado pelo CDC, a saber:

            a)vigência de um contrato comutativo ou unilateral oneroso de trato sucessivo e diferido, inclusive contrato aleatório;

            b)modificação considerável das condições econômicas no momento da execução do contrato, diante de acontecimento imprevisto, em confronto com as do momento de sua formação;

            c)onerosidade excessiva para qualquer dos contraentes;

            d)revisão e, alternativamente, resolução do contrato.

            Dessarte, nessa perspectiva de mudança, até o mesmo a nomenclatura da teoria seria alterada, ou seja, de Teoria da Imprevisão(segundo uma parcela considerável da doutrina) para Teoria da Excessiva Onerosidade, posto que, de acordo com parcela minoritária da doutrina, a qual também acompanho, os institutos sempre tiveram natureza jurídica diferenciada, jamais se confundindo entre si.

            Em corolário, pois, trago à baila a sugestão legislativa propugnada e de autoria de Regina Beatriz Papa dos Santos [15], e que ora adoto, ‘mutatis mutandis’:

            "DA EXCESSIVA ONEROSIDADE

            Art...Nos contratos de execução sucessiva e diferida, inclusive aleatórios, caso as prestações tornem-se desproporcionais ou excessivamente onerosas, diante de fato superveniente à celebração do contrato, pode a parte prejudicada requerer a sua revisão ou resolução.

            Art...Na hipótese de ser requerida a revisão do contrato, pode a outra parte opor-se ao pedido, pleiteando a sua resolução, caso a manutenção do contrato lhe provoque danos, diante das modificações das cláusulas contratuais."

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            Portanto, à vista do aqui exposto, convencido estou de que a resolução por onerosidade excessiva se acha epigrafada no Novo Código Civil de forma acanhada, coxa, perfunctória e pueril, beirando mesmo ao doce vivenciar do mundo dos Deuses, mas colossalmente distante do mundo dos Homens – do homem globalizado, brasileiro, nordestino...

            Enfim, trata-se uma quimera jurídica, eis o meu vaticínio!


7. Conclusão

            Apesar de anunciado como sendo uma das grandes inovações do Novo Código Civil, a resolução por onerosidade excessiva – capitulada nos artigos 478 a 480 – guarnece cinco requisitos de difícil aplicação prática. Os requisitos da ‘extrema vantagem para a outra parte’ e os ‘acontecimentos imprevisíveis e extraordinários’, afora a possibilidade única do prejudicado requerer a ‘resolução’ e não a revisão, transmudam o instituto em algo obsoleto, muito aquém do tratamento conferido ao mesmo perante o Código de Defesa do Consumidor, pois, neste Diploma, a tônica é o direito de revisão do contrato, uma vez presente a onerosidade excessiva advinda de fatos supervenientes.

            A grafia do instituto no Novo Código Civil é a um só tempo paradoxal e meramente teórica, não atendendo aos reclamos de uma sociedade plural, massificada e globalizada.

            De conseguinte, propugna-se que se produza uma mudança legislativa, expurgando do instituto, ‘de lege ferenda’, os requisitos da ‘extrema vantagem para a outra parte’ e dos ‘acontecimentos extraordinários e imprevisíveis’, além de conferir a ambos os contraentes o direito de revisão do contrato e, alternativamente, o direito de resolução, sendo certo que, em não havendo qualquer alteração legislativa ‘ad futuram’, a resolução por onerosidade excessiva dormitará no Código Civil, tal qual uma quimera jurídica.


Bibliografia

            BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002.

            DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999.

            GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações. Parte Especial. Contratos. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6.

            GOMES, Orlando. Contratos. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

            JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: RT, 2002.

            MORAES, Renato José. Cláusula Rebus Sic Stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001.

            NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.

            NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002.

            SANTOS, Regina Beatriz Papa dos. Cláusula "rebus sic stantibus" ou teoria da imprevisão – revisão contratual. Belém: Cejup, 1989.

            VENOZA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, v. 2.

            YOSHIZATO, Mônica Bierwagen. Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.


Notas

            01

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 156.

            02

GOMES, Orlando. Contratos. 16ª edição. Rio de Janeiro: Forense. 1995, p. 79.

            03

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, v. 2, p. 465.

            04

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações. Parte Especial. Tomo I – Contratos. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 51.

            05

BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 147.

            06

MORAES, Renato José de. Cláusula rebus sic stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001, p..281.

            07

DONINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 169.

            08

BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 70.

            09

DONNINI, Rogério Ferraz. Op. cit., p. 65-66.

            10

JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: RT, 2002, p. 193.

            11

NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 118.

            12

Acórdãos. In: Revista do Direito do Consumidor. São Paulo: RT, janeiro-março, 2002, v. 41, p. 296-297.

            13

DONNINI, Rogério Ferraz. Op. cit., p. 64.

            14

BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Op. cit., p. 72

            15

SANTOS, Regina Beatriz Papa dos. Cláusula "rebus sic stantibus" ou teoria da imprevisão – revisão contratual. Belém: Cejup, 1989, p. 54.
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Sobre o autor
João Hora Neto

juiz de Direito no Estado de Sergipe, professor de Direito Civil da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Novo Direito Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HORA NETO, João. A resolução por onerosidade excessiva no novo Código Civil:: uma quimera jurídica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1089, 25 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8514. Acesso em: 27 abr. 2024.

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